Guardião de memórias

O meu filho mais velho faz vinte e quatro anos no último dia do mês de Julho (quando esta crónica sair, já os terá feito). Eu, com vinte e quatro anos, conheci o pai dele, e agora pergunto-me como é possível que o tempo tenha passado tão depressa. Quando temos a idade dele, achamos que a idade é uma fronteira que separa as pessoas em crianças, jovens, adultos e velhos. Mais tarde percebemos que a idade não existe, o que existe é o tempo a passar e as marcas inerentes a essa passagem, como as dunas que se alteram no deserto ou a rocha que se erode ao sabor das correntes marítimas. As estrelas que avistamos já morreram todas e, contudo, ainda lá estarão quando for a nossa vez de fechar os olhos.

Lembro-me de quando, teria ele uns onze, doze anos, me sobressaltava nas poucas vezes em que telefonava para casa e me atendia a voz de um homem desconhecido (não era o meu marido, apesar da voz ser quase igual). Quem era aquele estranho que estava lá em casa? Depois, no segundo seguinte, reconhecia-o e não conseguia conter uma gargalhada. Esses primeiros tempos em que eles se transformam gradualmente aos nossos olhos passam tão depressa que, se não fossem as poucas fotografias que insistimos em tirar (o que para eles é um suplício) não ficariam na memória. A Terra gira em torno do sol a uma velocidade aproximada de cento e sete mil quilómetros por hora, e desconfio que quanto mais avançamos, mais evidente se torna esse girar estonteante, até toda a nossa vida ficar contida dentro do segundo em que mergulharemos no grande desconhecido.

Talvez não devesse falar na morte enquanto me refiro ao nascimento do meu filho, mas creio, cada vez mais, que uma e outra estão ligadas. Não sei se devido ao avançar da idade, mas penso amiúde na morte. Penso também naqueles que já partiram. Sonho bastante com eles (com os meus avós, por exemplo). Não são sonhos angustiados, pelo contrário; o que sobra é uma satisfação amena por os voltar a ver. Não me perco a pensar em possíveis interpretações para estes devaneios oníricos, porque é claro para mim: o meu corpo guarda as memórias, e estas visitam-me em sonhos. A memória é o único testemunho do que vivemos e de tudo aquilo que já morreu, que são uma e a mesma coisa.

A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico

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