Libertem as Crianças


Ao longo da minha atividade profissional tenho verificado que as crianças estão cada vez mais dependentes dos adultos e muito menos autónomas.
As crianças não vão para a rua brincar, nem à mercearia na porta ao lado e muito menos sozinhas para a escola.
Os pais, quando questionados sobre estes factos, referem que o índice de criminalidade é muito maior hoje em dia e consideram, globalmente, estarmos perante uma sociedade muito mais insegura.
Com o início de mais um ano escolar, proponho-me fazer, neste artigo, uma reflexão da mudança de hábitos na vida das nossas crianças e as repercussões motoras, psicológicas e sociais que daí advêm.
Pretendo levar-vos numa estrada de perguntas e respostas, de modo a refletirmos em conjunto sobre estes temas.
Antes do 25 de abril, Portugal era profundamente ideológico na defesa dos valores tradicionais “Deus, Pátria, Família”.
As mulheres ficavam em casa na lida doméstica, com um rol de filhos atrás, e os homens dedicavam-se ao trabalho para sustentar a família.
As mulheres casadas só podiam sair do país com autorização dos maridos.

A escolaridade devia ser básica, de 4 anos e visava que todos aprendessem a ler, escrever e contar. O acesso aos outros graus de ensino e à universidade era para uma pequena elite.
As escolas tinham uma turma de cada sexo, uns da parte da manhã, outros da parte da tarde.
A mortalidade infantil e o analfabetismo atingiam níveis escandalosos.
Antes do 25 de abril, muitas crianças e jovens não tinham possibilidades de ir à escola e eram obrigados a trabalhar, isto numa idade em que deviam estar a estudar e a brincar.
O brincar era colocado para segundo plano. Não era valorizado, nem tão pouco se tinha tempo para tal.
“Brincar é um comportamento de escolha livre, dirigido pessoalmente, com um propósito explorador, de risco e procura adaptativa, aprendizagem e com enorme empenho de imaginação e fantasia. Os benefícios são muito significativos em termos de capacidade adaptativa (motora, cognitiva, emocional e social), cultura de sobrevivência, confronto com a adversidade, regulação emocional, autoconfiança, relação social e de ganhos significativos de competências motoras, cognitivas e sociais.” (Carlos Neto, 2020).

As conquistas de Abril, no seu enquadramento histórico, foram bem mais extensas e não se esgotaram no que diz respeito à liberdade e à associação política.
Os filhos do 25 de abril foram a primeira geração a crescer num ambiente de descompressão, com liberdade de expressão.
Provavelmente, terá sido a última geração de crianças com liberdade de movimentos, habituadas a ir sozinhas para a escola desde cedo. Passavam as tardes a brincar na rua com os vizinhos, sem controlo parental, correndo grandes perigos.
(…) Quando eramos pequenos viajávamos em carros sem cintos e airbags (…) comíamos batatas fritas, bebíamos groselhas com açúcar e coca-cola, mas nunca engordávamos porque estávamos sempre a brincar na rua (…) Estávamos incontactáveis e ninguém se importava com isso (texto: “Se nasceste antes de 1986”).
A imaginação era a líder de todas as brincadeiras.
Estivesse o calor mais abrasador ou a chuva miudinha, a diversão só acabava quando o Sol começava a pôr-se e as mães iam à janela chamar para jantar.
O grande elemento aglutinador do imaginário dos anos 80 foi, sem dúvida, a televisão. A RTP era a única estação, dividida por dois canais complementares. As emissões não duravam 24 horas
Em casa, o ecrã da televisão servia para dois propósitos: para ver os desenhos animados, servidos em doses moderadas nas tardes de semana e nas manhãs de fim-de-semana, e as novelas e concursos ao serão, em família.
A televisão passou a ser um eletrodoméstico de massas, indispensável em qualquer casa. Mais tarde, nos anos 90 surgem as televisões privadas.
A comunicação social (CS) tem um papel importante no campo político, social e económico de toda sociedade. A CS incute na população uma consciência, uma cultura, uma forma de agir e de pensar.

Não existem estudos científicos que validem de que forma é que os meios de comunicação social influenciam a opinião pública, no entanto, parece existir uma relação sólida entre o discurso sobre a criminalidade e a sensação de insegurança.
Na realidade, o principal objetivo de alguns canais de televisão é chamar a atenção do público e obter lucro. Assim, são exímios no uso de notícias sensacionalistas, principalmente de factos negativos, como homicídios, raptos, assaltos e violações, disseminando um sentimento de insegurança no seio social, ocasionando o surgimento da cultura do medo e formando uma “Sociedade do Medo”, Bauman (2010).
A televisão tenta retratar os factos de forma a tornar a informação o mais real possível aproximando os acontecimentos do quotidiano das pessoas e fazendo-as crer que aquela situação de risco poderá acontecer a qualquer momento dentro de suas próprias casas, nos seus grupos sociais. Assim, os telejornais propagam informações sensacionalistas através da exploração da dor alheia, do constrangimento de vítimas desoladas e da violação da privacidade de algumas pessoas.
Podemos considerar a investigação desenvolvida por Maria Benedicta Monteiro (1984), sobre “A Construção Social da Violência – Perspetiva Cognitiva e Desenvolvimental”, enquadrável numa perspetiva global dos efeitos dos Media. Este estudo teve como objetivo principal explorar os efeitos da violência filmada sobre os comportamentos agressivos dos pré-adolescentes e sobre as suas representações da realidade social.
Num dos estudos desenvolvidos, foi apresentado a um grupo de pré-adolescentes do meio urbano, um filme violento e um filme não violento.

A autora concluiu então que, depois de ver um filme violento, os pré-adolescentes sentem medo de serem vítimas e acreditam que os crimes tendem a aumentar e consideram que é bem justificada a intervenção de agentes de autoridade. Quando são colocados numa situação experimental de agressão e têm oportunidade de punir um companheiro que os tenha provocado, eles não hesitam em fazê-lo. Ou seja: depois de passar por uma experiência emocional de medo, de insegurança e de apelo à proteção ao ver um filme violento, segue-se um comportamento de agressão. Benedicta Monteiro comenta estes resultados referindo que “os sujeitos procederam provavelmente a uma elaboração cognitiva do seu estado emocional em função destes signos, o que os leva a reagir agressivamente”.
Posto isto, dei por mim a procurar dados reais, com o

intuito de validar se a criminalidade seria muito maior hoje comparativamente com a existente nas décadas de 80/90. Tendo por base, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), entre 2008 e o ano de 2020, a criminalidade geral passou de 421.037 participações para 298.787 (redução de 29%) e, dentro desta, a criminalidade violenta e grave diminuiu 48,7%. Atualmente, a criminalidade violenta e grave representa 4,2% de toda a criminalidade participada.
Nesta figura, retirada do RASI do ano de 2020, podemos apurar que o crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo continua a ser a tipologia criminal mais participada em Portugal. Nas burlas, destaque para o crime de burla informática e nas comunicações que, pelo terceiro ano consecutivo, regista aumento superior a 20%.
Outra grande preocupação dos pais é o número de crianças desaparecidas/raptadas.

Vamos a dados reais, de facto desaparecem mais de mil crianças todos os anos em Portugal. No entanto, segundo dados do Instituto de Apoio à Criança, a fuga de casa ou de uma instituição é o principal motivo do desaparecimento, seguindo-se o rapto parental.
No portal da Polícia Judiciária, desde o ano 1990, existem 7 crianças que continuam desaparecidas. Obviamente, que basta uma criança para que este número seja considerado hediondo. No entanto, tenho a certeza que a opinião pública considera que este número é muito mais elevado.
De acordo com o Global Peace Index (2021), Portugal ocupa o 4.º Lugar dos países mais seguros do mundo. A Islândia ocupa o topo da lista, seguida por Nova Zelândia e pela Dinamarca.
Em suma, tem-se verificado nas últimas décadas, um declínio da autonomia e independência das crianças

com consequências inevitáveis no desenvolvimento de competências motoras, cognitivas, emocionais e sociais. Pelo contrário, constata-se um aumento significativo de patologias mentais, nomeadamente, ansiedade, depressão e pensamentos suicidas na transição da adolescência para a idade adulta, já para não falar, na tendência crescente para o excesso de peso, obesidade e diabetes.
Ainda é cedo para percebermos as reais consequências desta mudança de paradigma, mas já existem sinais bastante preocupantes. Importa não esquecer que todos nós, individualmente ou em grupo, somos intervenientes ativos da sociedade em que estamos inseridos.
Neste sentido, espero ter contribuído para uma reflexão entre os dados concretos e os mitos que restringem e condicionam o desenvolvimento pleno das nossas crianças.

Libertem as Crianças

Carlos Neto, 2020

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