Obra de Capa

Girouette

Fiando — Desfiando — Desenfiando

Dificilmente se perde o fio à meada com a obra da Sónia Aniceto. Ela está lá para nos lembrar o essencial de uma existência: a felicidade, a identidade, a travessia de territórios, a interioridade, a ambivalência, o desespero, a evidência e o seu contrário. Neles respira-se a liberdade de ver e de sentir, com todas as emoções, sempre à flor da pele, como é próprio de um(a) artista.
Sónia não pretende orientar-nos por um só fio, ao contemplar este sugestivo “Girouette”. Ela deixa-nos livres no emaranhado da trama com que o teceu, sem nos dirigir para qualquer um dos pontos cardeais indicados pelo vento, nem pelos pontos erráticos da máquina de costura, na mira de encontrar um porto de abrigo. Eu deixo-me guiar pelo grande vate Luís de Camões, no seu eterno peregrinar, acompanhando-o sôbolos rios que vão de Babilónia a Sião. Enterneço-me ao ver crianças, jovens, menores não acompanhados que conservam ainda raízes no amálgama da noite escura onde foram gerados. Mas, entrelaçados, constituem agora uma força viva, uma entidade diferente que os transporá para um território onde poderão organizar um modo de vida nunca visto nem imaginado. Da fronteira de todos os perigos com que tecerão suas vidas, contemplam uma luz intensa que lhes cobre os rostos, os deslumbra, lhes estende os braços e os empurra para um território desconhecido onde poderão contemplar os ocres matizados e diáfanos do pôr do sol, o azul do céu e do mar, a azáfama das andorinhas. Suspensos em vidas frágeis, é a força da juventude que os empurra para uma teia densa e desconhecida que a sociedade lhes tecerá. E, na confusão dos corpos, alguns orientar-se-ão pelo struggle for life do darwinismo, esgotar-se-ão na travessia de desertos, travarão combates reais ou imaginários. Outros serão atraídos pela suavidade do som da máquina de costura, a desenhar a floresta densa de fios que nos conduzem para o lançar da âncora, prenúncio do termo de uma longa e feliz viagem. O esvoaçar de pombas brancas anunciam-nos um tempo de paz propício ao desabrochar de uma juventude que tem ainda muito caminho a percorrer.

Texto: Joaquim Tenreira Martins, filósofo, jurista, escritor



2 Comentários

  • Joaquim Tenreira Martins
    3 anos ago Publicar uma Resposta

    A artista Sónia Aniceto abarca, na sua obra, a complexidade do mundo de hoje, executando-a com a ligeireza cromática de quem se senta ao cravo para nos transmitir, em contraponto, o ambiente de uma bela sonata de Domenico Scarlatti ou de Carlos Seixas.

  • José Carlos Lages
    3 anos ago Publicar uma Resposta

    Profundo e cromático pensamento de Joaquim Tenreira Martins para emoldurar a obra de Sónia.
    Sinto que a obra já não pode andar separada do pensamento. Ficaram os dois cosidos para a eternidade.

    Parabéns aos dois criativos artistas.

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