Os brasileiros, os galegos e os portugueses

Nós e os brasileiros

Gostamos muito de falar dos brasileiros.
Alguns de nós, mais inclinados para a pureza, reclamamos muito por causa da suposta brasileirização da cultura portuguesa, a começar no excesso de telenovelas brasileiras (tópico na moda há uns anos, entretanto apagado por via duma dieta prolongada de novelas da TVI) e a terminar no horror ao Acordo Ortográfico, para muitos uma cedência imperdoável da nossa alma linguística ao Brasil.
Outros de nós gostamos do Brasil porque nos dá uma sensação de grandeza, chamemos-lhe lusofonia ou a tal pátria que é a língua portuguesa. Sem o Brasil, a lusofonia seria uns pedacinhos de terra europeus e africanos. Quem gosta de sentir uma identidade mais misturada em direcção ao sul gosta muito do Brasil e não se importa com miscigenações culturais e linguísticas. Fica até aliviado, que isto da pureza cansa muito.
Há ainda quem misture um pouco as coisas e goste que os brasileiros falem a nossa língua, mas gostava mais se não tivessem esse desplante de a falar doutra maneira.
Para o mal e para o bem, o Brasil é uma das balizas da nossa identidade: pelo medo ou pelo fascínio, está bem presente nas discussões sobre o que é ser português.
Ora, para os brasileiros, somos pouco mais do que um povo europeu como os outros (que por obra do mero acaso lhes deu o nome à língua e aparece nos livros de história). Enfim, também lhes demos alguns imigrantes, umas boas anedotas e, agora, alguns actores desempoeirados. Pouco mais do que isso.
Os brasileiros conhecem Portugal, até têm avós transmontanos, mas estamos longe de ser uma das balizas da identidade brasileira. Somos uma curiosidade histórica.
A língua portuguesa é parte, claro, da identidade brasileira, mas sem que por isso os brasileiros sintam uma ligação especial ao longínguo país donde a língua veio (e donde vieram os brasileiros quase todos, claro). Para os brasileiros, o nome da língua é um pormenor: o importante é não ser a mesma língua dos vizinhos.
Em suma, o que para nós é um foco de tensão identitária, para eles não aquece nem arrefece.

Os galegos e nós

Ora, curiosamente, há um povo que parece ter uma relação connosco parecida com esta nossa relação com os brasileiros: os galegos.
Sim, os galegos olham para Portugal e sabem que a relação com o vizinho do sul é significativa: seja para se afastarem e ficarem imersos na nação espanhola, seja para se afirmarem como algo diferente dos restantes espanhóis.
Mesmo na ortografia da língua, os galegos têm este foco de tensão: ou se aproximam dos espanhóis, com “ñ” e tudo o mais, ou se aproximam de nós, com os “nh” e outros que tais.
Por cá, ignoramos olimpicamente as questões existenciais dos galegos. Sim, conhecemos a Galiza, sabemos que é uma região dos nossos vizinhos, e até sabemos que há por lá uma outra língua, que mal sabemos reconhecer (na escrita até vemos algumas parecenças com o português, mas quando os galegos falam soa tudo a espanhol e pronto). Para lá desses factos soltos, a Galiza não entra no radar dos portugueses.
É assim na cabeça dos portugueses — tal como muitos brasileiros nem sabem que os portugueses têm outro sotaque, poucos portugueses sabem que o galego tem uma relação tão íntima com o português.
Talvez fosse engraçado começarmos a virar a nossa atenção também para os vizinhos de cima. A Galiza é essa curiosa região espanhola onde vemos muito de Portugal, mas com alguma distorção, o que nos dá aquela vertigem de espelho ondulado. É como se voltássemos à nossa terra muitos anos depois: reconhecemos algumas coisas, outras são-nos estranhas, mas há uma mistura de conforto e diferença que sabe bem.
Entretanto, podemos esperar, sentados, que os brasileiros descubram a cultura portuguesa — quando um dia acontecer, ganharão muito com isso, tal como ganham imenso os leitores portugueses que ultrapassam certos bloqueios mentais e começam a ler literatura brasileira, para lá dos lugares comuns dos medos e dos fascínios.



O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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