Porque vemos tantos erros nas legendas?

Factores de qualidade da tradução – I Parte

Todos nós gostamos de criticar as legendas que vemos na televisão ou no cinema. Seja em conversas com amigos, em críticas escritas, em fóruns de tradutores ou por esse Facebook fora, todos caímos na tentação do humor de tradução.
Nada contra. Os erros de tradução são divertidos (mesmo os nossos próprios erros de tradução). No entanto, se queremos ser bons críticos de legendagem e saber um pouco mais daquilo de que estamos a falar, talvez seja bom olhar para tudo o que rodeia esta actividade, talvez a forma de tradução mais visível na nossa sociedade.
Esta informação é importante não só para os tradutores de audiovisuais. Afinal, a imagem que a profissão de tradutor tem aos olhos de toda a gente deve muito àquilo que vemos na televisão todos os dias. Por isso, é importante saber enquadrar as nossas críticas ao trabalho de tradução audiovisual, sem alimentar mitos e erros de quem não sabe em que condições e com que constrangimentos se traduz para legendagem.
Vejamos, então, que factores têm implicações na qualidade das legendas — e na percepção da qualidade das legendas. Talvez assim possamos melhorar a qualidade das nossas críticas.

O espaço para a tradução é limitado
Isto é óbvio, mas nem sempre nos lembramos deste facto: as personagens podem falar a 100 km/h, podem até atropelar-se—mas o tradutor só pode usar duas linhas, com um número limitado de caracteres, linhas essas que têm de ficar visíveis durante o tempo suficiente para que os espectadores as consigam ler confortavelmente e sem prejudicar demasiado a atenção ao resto da imagem. Este constrangimento é muito mais sério do que parece a quem nunca experimentou legendar uma série ou um filme.
Quais as implicações? Bem, o tradutor tem de seleccionar qual a informação a omitir e tem ainda de fazer um esforço de resumo. Por vezes, quando ouvimos qualquer coisa que não está na legenda, o problema não é a desatenção do tradutor (garanto-vos que ninguém presta mais atenção ao filme do que o tradutor que o está a traduzir), mas antes a absoluta falta de espaço. Claro que podemos ter ideias diferentes no que toca àquilo que devia ter sido suprimido ou à melhor forma de resumir o diálogo, mas é um facto da vida que tradutores diferentes chegam a soluções diferentes.

Os prazos são curtos
A maior parte dos tradutores/legendadores trabalha sob prazos muito apertados. Porquê? Essa discussão levar-nos-ia por caminhos demorados, que não cabem num artigo desta dimensão. A verdade é esta: por vezes é preciso traduzir e legendar um filme em um ou dois dias ou um episódio numa tarde. Não é possível explicar a quem nunca tentou o quão apertados são estes prazos, mas, acreditem: há muito pouco tempo para deixar o trabalho tão bom como os tradutores, muitas vezes, querem. É uma tarefa onde, de facto, se pede para trabalhar bem e depressa. (Para complicar mais as coisas, o resultado final está muito mais exposto do que as traduções doutras áreas.)
Lembrem-se ainda que a tradução e legendagem são dois processos separados — embora realizados, na maioria das vezes, pela mesma pessoa. O tradutor começa por criar as legendas, traduzindo a partir do filme (com ou sem acesso ao guião). Posteriormente, introduz as legendas no filme, usando software próprio para isso. Os prazos habituais seriam apertados para uma destas tarefas, quanto mais para as duas.

O original é falado, a tradução é escrita
Este é um constrangimento mais importante do que se pensa. A linguagem oral e a linguagem escrita obedecem a convenções muito diferentes. Palavras que todos usamos na oralidade são consideradas inapropriadas na escrita. Da mesma forma, há expressões que são comuns nos diálogos dos filmes que, uma vez passadas a escrito, adquirem uma agressividade muito distante do impacto do original. Além disso, somos muito mais tolerantes para frases deixadas a meio ou hesitações quando estamos a ouvir do que quando estamos a ler. O tradutor de audiovisuais tem de saber navegar estas diferenças, alterando o tom do diálogo de forma a ter um impacto semelhante ao original. Na prática, isto significa a omissão de muito calão (ainda por cima, há pouco espaço…) e a reformulação de partes do diálogo. Alguns dos erros de que acusamos os tradutores têm origem nestas alterações que são, na realidade, sinal dum bom trabalho de legendagem.
O tradutor tem de seguir as instruções dos clientes
Continuando no exemplo do calão, há filmes que são legendados tendo em conta determinadas instruções do cliente no sentido de eliminar calão, para que o filme tenha uma classificação adequada para a hora ou contexto em que vai ser exibido. Nem tudo está nas mãos do tradutor.

As legendas nem sempre são revistas
Quase todas as traduções são revistas — ou deviam sê-lo. Ora, no caso da legendagem, é muito habitual vermos legendas na televisão que nunca passaram por outros olhos que não fossem os do próprio tradutor. Nem o melhor tradutor consegue evitar erros graves uma vez por outra (quem julga que está imune a erros estará, certamente, desatento). Qualquer tradutor, mesmo quando revê a sua própria tradução de forma cuidada, deixa passar frequentemente qualquer coisa que outra pessoa conseguiria apanhar porque está a ver com novos olhos. Assim, a revisão devia ser parte obrigatória do processo de tradução para legendagem.

Há outras áreas da tradução mais bem pagas
Dir-me-ão algumas pessoas que este não devia ser um factor a ter em conta na análise da qualidade das traduções. Se aceitou um trabalho, um tradutor deve dar sempre o seu melhor. Se as condições não forem aceitáveis — bem, não devem ser aceites e ponto final. Ora, mesmo que isto seja assim e possamos ignorar a pressão que qualquer profissional independente sente para aceitar todos os trabalhos que puder mesmo quando não tem as condições adequadas para tal, há que explicar isto: se a legendagem for mais mal paga que outras áreas da tradução, os tradutores desta área tenderão a mudar-se para outras paisagens mais apetecíveis quando começam a ganhar mais experiência. A legendagem ficará entregue a profissionais com menos experiência ou que apostam em preços baixos para arranjar trabalho. Não posso afirmar com segurança que isto seja assim e há indícios que, a ser verdade, só o será de forma parcial — afinal, todos conhecemos excelentes profissionais nesta área. Dito isto, não podemos negar que melhores preços atraem melhores profissionais. Tendo em conta o risco social que as más legendagens implicam, esta devia ser uma área com preços mais elevados do que áreas de tradução com menos impacto e com menos visibilidade. Não caberá aqui — como devem compreender — uma discussão sobre a forma de corrigir esta situação. Mas não deixa de ser um factor a ter em conta ao avaliarmos a qualidade das traduções que vemos na televisão.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Parte II

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