Negrinhas de Freixo

Azeitonas, e Alcaparras delas

 Gosto delas, gosto

até da toma daqueles vocábulos!

As causas dos agrónomos. Esta olea drupa

étimo grego que outrora terá personificado a azeitona madura ─ o somatório do epicarpo, mesocarpo e endocarpo ─ é o nobre fruto da oliveira. A azeitona que procria as [nossas] alcaparras. Atinge a plena maturação no período outono-invernal, mais ou menos entre a apanha da castanha listada e o findar do chorincar dos recos; mas, a partir do momento em que fica agordalhada, bem cheia e disponível prás sortes

pode [re] colher-se, ripando-se, em diferentes fases  

verdes, mistas e pretas, do verde pálido ao negro tisnado, para conservar uns bons tempos, para consumo em fresco, e levar à mesa, após tratamento específico, ou para azeitar se forem dessa laia ou ano de fartura delas e o destino patronal assim o determinar. Em condições climáticas normais, com uns bons arejos na altura da floração e umas trovoadas ajuizadas de permeio, este processo de crescimento leva-lhe cerca de cinco e não mais de seis meses […] Nas contas colheteiras, à ripa e ao cesto, os historiadores mais habilitados no percurso das suas serventias conserveiras admitem que foram os helénicos [os primeiros] a utilizá-las para consumo directo, à mesa e de mero acompanho, aí pelo século V a.C., entre os conflitos culturais do expansionismo persa e as platónicas ironias socráticas. Curtidas e em pastas

eliminando-lhe parte do amargor proveniente da oleuropeína

 (o principal composto fenólico de protecção à oxidação natural dos frutos), mediante banhos e mais banhos de água corrente e um acabamento com vinagre de qualquer vinho, cascas e sumos de frutas ácidas, conservando-as inteiras, apenas picadas ao de leve, às vezes descaroçadas depois de britadas, tão-só cortadas ou cortilhadas, golpeadas, socadas, quebradas, esmagadas, piladas ao fogo, ressecadas ao sol e no forno (…) ou numa salmoura com ervas aromáticas que lhe induziam outros sabores mais ressabidos. Considerando, então, a longevidade da árvore de Minerva e do mito de Aracne, o Homem teve tempo suficiente e a paciência necessária para aprender a servir-se dela, a manuseá-las, sobretudo no destino a dar aos seus frutos tão medonhamente amargos ― ao sabor das ideias de cada curadeira e da arte de cada povo. A sorte estava lançada. Por cá, por Trás-os-Montes e Alto Douro

território olivícola de arrumo alicerçado há mais de 400 anos

a Negrinha, não borraceira, a Negrinha de Freixo para curtir, Azeitoneira de talha, ainda hoje é a única variedade transmontana de uso quase exclusivo para conserva. É [muito] boa para botar em cima da mesa e de ajuda ao petisco, porque, na sensatez das curadeiras, a carabunha dela é pequena e solta-se facilmente da carne. Para os dendrólatras olivícolas, taxonomistas de artes agronómicas, a [nossa] Negrinha é um arborico de porte ligeiramente atarracado, reboquinha, sapuda, de arborescência amoitada mas de bom penteio à limpa (e à ripa), com ramificações medianas e folhas decussadas a dar para o pequenote, curtas e estreitas. É uma oliveira precoce e bastante produtiva, bem mais que as suas aparentadas(…) Brota regularmente floração temporã e arreia facilmente quando estacada em sairinhos de chão fundo e dotada de água de boas regueiras. É de frutificações regulares, equilibradas, manifestando boa capacidade de propagação quer por estaca herbácea quer lenhosa. Os frutos, as tais drupas de peso generoso, ficam ovoides à medida que engrossam ou elipsoidais em terras esqueléticas e quando os anos são de águas minguadas. São luzidios, lisos, de meio tamanho, consistência firme, ligeiramente assimétricos, com fracos rendimentos em azeite, pobres em ácido linoleico – ingrediente funcional e de defesa antioxidante – e aromaticamente pouco expressivos. São azeitonas de colheita fácil e com queda acentuada em plena maturação. É uma azeitoneira de satisfatória resistência às maleitas da gafa, alguma rejeição ao bicho da azeitona – a principal praga da região ribeirinha ao Douro e de consequências desastrosas na queda prematura dos frutos, além da diminuição dos rendimentos em azeite e deterioração da qualidade por aumento da acidez – mas melindrosa aos andaços de tuberculose e à cochonilha-negra que induz ao aparecimento de fumaginas. Quanto à provável procedência, quanto à sua naturalidade, julga-se que os primeiros exemplares desta azeitoneira de nomeadas em fartura só vieram de Cáceres, ou que fosse dali perto, talvez das cercanias ao cerejeiro Valle del Jerte ou dos chãos do madrileno Campo Real, talvez dos termos realengos de Toledo ou dos olivares de Ciudad Rodrigo, aí pela sequência dos séculos XIII/XV e à boleia da dinâmica estalajadeira associada aos caminhos de peregrinação a Santiago

 [primeiro] para os domínios do Mosteiro de Sᵗᵃ Mª de Aguiar

 [daí] para terras avistadas da Sapinha, até São Cibrão, ao sítio da Brita, das arribanzas aos chãos da Ribeira do Mosteiro, e à beira Douro, onde se conservam exemplares notoriamente plantados nestas datas de (e pós) Reconquista, algumas delas com ‘capado’ de mais de oito metros, mas, na sequência da colonizações filipinas e em anos já acercados aos dias de hoje, muito a proveito da chegada dos primeiros rabelos comerciais a Barca d’Alva [por volta de 1811] e do comboio até bem longe da vizinhança, ou da dinâmica dos lavradores da época, por ser uma azeitona apropriada para a guarda em verde, também de maturação temporã, a primeira delas, debandaram, espalharam-se com sucesso por todo o Vale do Douro Superior e um pouco pela Terra Quente Transmontana.

Conservar. Curas, curtimenta e identidades.

Desde que qualquer transmontano se deite às lembranças, desenvolveu-se por toda a região uma autêntica romaria de sabores azeitonados… Azeitonas aromatizadas com ervas de recolha, conservadas em salmoura de sementes salseiras com mosto cozido e águas meladas, ao estilo dali ou dacolá, à moda desta ou daquela, mais ou menos fermentadas, simplesmente inteiras ou cortadas a rigor, apenas golpeadas, divididas a preceito ou enviesadas, quartilhadas, desidratadas, fatiadas depois de descaroçadas, recheadas do que fosse possível, amanhadas em vinagretes de vinho, secas ao sol, de escabeche simples, aromatizado ou em molho vilão, picantes ou não, curtidas em cinzas carrasqueiras ou conservadas em azeite, esmagadas ou britadas, às rodelas, em alcaparras delas, e por aí adiante… O importante era que durassem muito, muito, pelo menos até se abeirar a nova colheita, e evidenciassem a gana e a artimanha de cada curadeira. Tratar o amargor da drupa azeitona, (curti-las com conta peso e medida), ainda hoje é uma rotina de época; e escolhem-se sempre as melhores das Negrinhas ou de outras variedades também apropriadas para a conserva ― da medrada Redondal, ou das ambivalentes Carrasquenha e Cobrançosa, à gordalhuda Santulhana. E poucas já serão as mesas (não só as de engenho caseiro) que dispensem – a seu tempo – a presença de azeitonas de entrada ou de acompanhamento a qualquer tipo de refeição. No [nosso] vocabulário gastronómico, as azeitonas de mesa – e as alcaparras delas – encaram-se como comidas de lastro, sustento de mero lambisco, como perfeitos ajudantes de afiar o dente e fazer a boca, em comeres de merendeiros ou de pura cortesia

enfim, são azeitonas de bô cadorno.

Adoçar azeitonas p’rá talha, refreá-las do excesso de acidez, quebrar-lhe os teores da tal oleuropeína, amansá-las de amargor e perfumá-las com ervas e sabores de outras proveniências, foi em tempos uma tradição popular associada ao aproveitamento dos frutos caídos ainda em verde e já grandotes ou das primeiras azeitonas das árvores mais jovens ― das variedades mais precoces, as temporãs, e/ou de rendimentos fracotes em azeite, pela acção dos rebusqueiros, por norma os vileiros mais carenciados ou sem pertenças, principalmente nos períodos pós-vindimas ― deixadas a perder o verdor em nassas, côvos, cestos peixeiros e sacos de rede colocados de cascalheira e em contra-corrente na ribeira mais próxima de casa e do local de recolha ou nas pesqueiras mais discretas.

Azeitonas quartilhadas

Preparar a cura das “azeitonas quartilhadas”, a designação mais corriqueira para estes amanhos de resguarda, em método tão popularizado como ancestral nos créditos dos mais antigos, é tão simples como isto […] talham-se as mais carnudas em retalho longitudinal, em dois a três cortes, e põem-se de repouso numa água bem frescota que deve ser mudada de três em três dias, durante duas semanas (…) até adoçarem ao gosto de cada um. Depois trabalha-se a salga, testando-se (outros tempos!) a eficácia com o aboiar de um ovo do dia ― se o ovo ficar meio de fora da água quer dizer que a salga está no ponto, se ficar tapado de água, o sal é insuficiente, e se flutuar por inteiro é porque tem saleira a mais; [a seguir] já de salga aprontada, juntam-se as azeitonas golpeadas e os temperos de uso na casa com uma benzedura de alento à sua sorte.

           As [nossas] Alcaparras, as Origens.

           Em juízo das curadeiras mais abalizadas pelo seu desempenho (e testemunhos não faltam), as melhores alcaparras no Vale do Douro Superior aprontavam-se das Negrinhas ainda verdes, sem amostra de pintas, ainda bem tesas, e de recolha no tempo do varejo da amêndoa até à plena vindima. Na Terra Quente Transmontana e no Douro de arrumos pombalinos as contas varietais alcaparreiras são de outras competências. [Faziam-se, assim, de traquejo, horas a fio], tal como o guardo na memória

esmagavam-se em cima de um bruíço

que – a seu tempo – era desviado das partidelas da amêndoa, com o auxílio de um maçóco madeireiro, removendo-lhe o caroço britado. De seguida colocavam-se [apenas as polpas] em vasos de barro e lavavam-se em água fervente, retirando-se ainda morna para ser substituída por água de fonte fria. Quantas mais lavagens tivessem, Melhor! Passado uma semana, sempre a bom ritmo de banhos adoçantes, estariam – à certa – prontas para consumo, depois de temperadas de sal na última muda de água e de nêvedas no acabamento. Também não negavam o empenho e uma boa ajuda de outras notas ervanárias. Quanto à origem do vocábulo, «alcaparra», porque o assunto se apropria à argumentação denominativa, aquela denominação livremente perfilhada para esta forma de tratamento dado às azeitonas verdes depois de descaroçadas

apenas por estas bandas transmontano-durienses já no início do século XIX, terá resultado, independentemente da paternidade e das voltas fónicas do vocábulo, da ambígua confusão utilitária com os botões florais das primogénitas alcaparras do subarbusto Capparisspinosa L., usados para disfarçar as carnes atardadas, como condimento de conservas várias ou – mesmo – de recheio a azeitonas descaroçadas.

Verifica-se, ainda, da parte destas florais alcaparras uma imaginativa paridade com os frutos verdes das oliveiras lentisqueiras e zambujeiras, principalmente depois de britados. Argumento mais pertinente e menos insuspeito. Mas… caparrar, acaparrar, [al] caparrar (…) por aqui, ainda hoje quererá dizer esmagar, mascarar, enganar, desenfastiar ou [até] capar; e a esta mania de tratar as azeitonas verdes bem se podem aplicar aqueles procedimentos operativos [!] Posta de lado a semelhança física, as imitações corpóreas, analogias nutricionais ou similitudes medicinais, que não conferem nem em sombria aparência, o distinto perfil familiar ou o sabor bem afastado que de caprino nada tem, a inexistência do dito arbusto por terras transmontanas e o consequente arredio das nossas mesas

o que é acertado é que esta designação adoptada

provavelmente, ainda em finais do século XVIII nas cozinhas abadescas e mais enricadas da região, época cimeira da utilização daqueles botões florais nos molhos e cozimento das tais carnes difíceis, entrou definitivamente no dia-a-dia dessa gente já de hábitos azeitoneiros. E mais: Tudo o resto são negociatas da imaginação! É produto de época e uma reclamada identidade gastronómica regional. Confusões à parte. Em memórias, costumes ou meras parecenças, [al] caparrar azeitonas é – assim – uma prática ancestral de conservação tradicionalmente transmontano-duriense, com pelo menos dois séculos reconhecidos nos nossos hábitos alimentares e com esta similar denominação, que passou da mais simplória utilização caseira a uma generalização restaurativa e – quiçá – mercantilista a nível global. Não só para enfeitar as xurunfadas nos copos de cocktail, alegrar vontades aristotélicas, iludir devaneios de mentes abstractas ou acirrar outros apetites, mas, cada vez mais, como elemento convincente na confecção de variados pratos e participante activo em actos de estímulo gastronómico. Todavia, para que ninguém se embale em arrufos despropositados ou inopinadas loucuras, o melhor é agraciar as lazeiras e amaneirar os dentes à comezaina com uns nacos de pães d’alcaparras bem mais medrados que a ortodoxia dos parelhos helénicos ou com as panochas dos antigos rogadores durienses para qualificar a gozo os pães da ricalhada quinteira, ou – em tempos idos – no recheio das bolas lamecenses, obradas de azeitonas d’aproveito em cadornos aquentados com um traço de carne da barbada acabada de sair das brasas, empurrá-los com a delicadeza de um vinho de fazer soltar euforias e cantar como cantarolavam as nossas apanhadeiras – missionárias destes talentos de relevar a Natureza – embaladas num arreganhado contento ao sabor de uma sanfonada de outras ideias.

As manhas. Pastas, massas e pastadas.

 [Já celebradas in Elogio ao Azeite] Quando as azeitonas desmaiavam no palato, quando já chocavam de velhas e ficavam moles com um ligeiro gosto a couro sapateiro, desgastadas, prontas a deitar fora, incluindo as alcaparras delas esquecidas e as menos conseguidas na cura, quando o tempo da ripa se abeirava e havia que despachar as sobrantes, quando sendo tão novas não passavam de um rebotalho ao curtimento, quando o querer assim o determinasse, logo depois de descaroçadas, eram esmagadas num almofariz e transformadas numa pasta enriquecida de azeite temperada com sumo de limão ou de laranjas amargas e folharicos de salporinha, e engrossada de acabamento com um esfarelado miudinho de pão ainda fresco (e de pouco fermento). No Vale do Douro Superior, em lugares, aldeias

onde, em épocas de míngua apertada

como foram os anos de guerra e de fome, e se avivaram muitas destas memórias de desenrasque ao sustento, esta massa grumosa era consumida à merenda em cadornos de pão meado e nas cozinhas menos enricadas como tempero dos refogados mais esmerados ou de presumido apuro em assados festeiros. E mais certo o foi, até aos anos próximos do pós-guerra, um avio de bom sustimento muito utilizado pelos guardadores de gado nos pastoreios de percurso ou pelos segadores que se ausentavam de casa por períodos mais ou menos longos e as azeitonas ainda não tinham compostura razoável nem estavam prontas para a cura das alcaparras. Quando a patroa-cozinheira pretendia transformá-la em comer de substância, para refeições do dia-a-dia ou dotar merendas de jornada, de botar em cima de “pão de companhia”, acrescia-lhe um migado grosseiro de atum de lata. Algumas donas de casa, mais criativas, também a ensaiavam com picados miudinhos de anchovas enlatadas e, tantas vezes, de acréscimo com tomate seco em conserva azeitada. Comeres de alívio e de conforto!

Molho de alcaparras picantes

[…] Tapava o fundo da sertã com um bocado de azeite, azeite do cedo e de bom aparto, sempre que possível das borraceiras, porque, ao certo ou nas sábias vivências de muitos, era mais amargo e a puxar a um picante pouco severo. Era o mais ajuizado para estes destinos. A prova do vinho novo ou de encosto aos merendeiros saídos das primeiras ordenhas da época […] Deixava aquentar um nadinha, até espirrar o azeite. De seguida juntava-lhe três dentes de alho inteiros, bem grandotes e um tanto esmagados. Mexia, remexia, acrescentava-lhe duas malaguetas assanhadiças partidas a meio, o sumo e a casca de um limão mais uns cheirinhos doces de tomilhinha. Misturava tudo e retirava do fogo. Depois de esfriar o refogado, descascava os alhos salteados na fritura e esmagava-os novamente com o cutelo da faca. À parte, num frasco de vidro das compotas e de fecho ratoeiro, com tamanho avantajado, acomodava mais ou menos um quarto de quilo de alcaparras das mais tesas que tivesse à mão, cobrindo-as com o molho acabado de aprontar e duas ou três folhas de louro. (O frasco tinha que ficar bem atarraxado, no mínimo três dias e não mais de cinco, para ganhar o gosto da fritada.) Na altura das provas do vinho novo e de cadorno de pão na mão, preferindo o escuro de centeio, sugeria, em jeito de obrigação, um picado miudinho de cebola crua à mistura com uns folhicos de hortelã da horta e umas meias rodelas de salpicão de talha para colocar por cima das alcaparras. Naquele dia até os palhetos taberneiros pareciam ser pinga a sério! (…)

As Alcaparras de Azeitonas

as alcaparras transmontanas ─ azeitonas verdes curtidas em água depois da extracção do caroço ─ integradas na enorme família das [nossas] “Azeitonas de Mesa”, tanto das Negrinhas não borraceiras como de outras boas conserveiras ou de dupla aptidão (…) até podem não saciar a gula dos estômagos mais inconformados, nem alimentar apertos fisiológicos ou refrear apetites demandados, nem aligeirar acalentadas volúpias de quem quer que seja, mas, que fazem peito para um copo bem bebido, Lá isso fazem! São comeres de elogio fácil. História e estórias não lhe faltam.

Há quem pense, até se exceda e cisme à sobreteima, que um tal grego, Aristóteles, já filosofava sobre o perfume daquelas bolinhas escuras, desses verdes pecados em negras perdições, que, agora, tanto boiam nos copos de outros cocktails.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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