Comeres de inverno

botelos, e as sorças de adobar carnes

Depois do chorincar do reco acomodam-se as carnes.

           La çuça, dito e escrito deste jeito por Terras de Miranda, a surça ou sorça, que de um modo ou de outro assim se deitam às falas da minha terra, Torre de Moncorvo, e assim se vai escrevendo por lá, tal como em seu redor e por outras bandas já mais apartadas, é o [nosso] molho indispensável ao temperar daquelas chichas de amanhar os enchidos de botar ao vareiro. É uma espécie de poção mágica. Tal molho pode ser de meia ou de pura vinha-d’alhos, ou apenas de água-d’alhos como de costume se ajeita em grande parte do Praino Mirandés. É, em boa obrigação, um adobo de base preparado em vinho, só em água ou à mistura deles, preferencialmente com vinhaça da branca, alhos e mais alhos

           colorau doce e/ou picante e um ajuste de sal.

           Pode ser acertado no remate com erveiras aromáticas, condimentares, até com bulhacos de nebro, com frutos cítricos, especiarias e um cachico de vinagre de vinho tinto.

           […] “Este picado é posto em suça, como lá dizem, que é o mesmo que adubo ou um tempero feito com água, sal e alhos. Alguma gente ainda usa temperar com vinho, ao que chamam vinha de alhos, mas hoje esse tempero é pouco usado, e quase geral só o uso da suça.” Foi o mestre do conto rústico, Trindade Coelho, quem o escreveu a propósito da confecção das linguiças da sua terra, Mogadouro, na revista mensal de etnografia portuguesa ilustrada A Tradição. Também nos explicou (entre Março de 1900 a Abril de 1901) “cada um, (dos enchidos), para se saber como é que são feitos”. E contou-nos, em Gente da minha terra (1967), o mirandelense Nuno Nozelos, “se Cristo por aqui passasse, era lombo de porco em adobo que se lhe oferecia”.

           O primórdio das palavras. A poetisa santiaguesa, Rosalía de Castro, em 1863, no canto à [sua] Galiza rural, os Cantares Gallegos, fala-nos pela pena, cantando loas ao povo de Breogán e à língua gallaica, de uma surça [sorsa] para ajeitar febras de porco certamente a seu gosto e muito provavelmente à moda dos raxoeiros da Terra Nai. Por sua vez, agora numa interpretação de agrónomo mais preocupado em excomungar dietas apátridas que transportam o acto de comer para a brutidão do automatismo do que no enredo destas causas do palavreado, direi que o professor argentino a ensinar «português da Galiza» em Buenos Aires, o filólogo Higino Martins Esteves, situa a sua origem entre o fim do séc. XVIII e meados do séc. XIX (com a escrita de Rosalía?) ou, talvez, naqueles anos de convivência entre galegos e britanos no decurso das guerras napoleónicas, tomada [SORÇA] por empréstimo do inglês sauce (sōs) [sors], [do fr. sauce; <lat. salsa], através de uma aselhice fonética e de caprichos semânticos bem aligeirados.

           A cantada e a argumentação são suficientemente sedutoras

           e o chamariz é irrecusável! Também o lexicógrafo Cândido de Figueiredo do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o filólogo de Ribeira de Piquín, Aníbal Otero Álvarez, o linguista Constantino García do programa televisivo Cousas da língua, a professora Mª do Carmo Salido in Léxico de O Grove (…) ou o escritor A.M. Pires Cabral na [sua] Língua Charra, entre outros, a registam com semelhantes predicados, descrevem-na com mais ou menos adereços, ou sentenciam-lhe outras progenituras. Não com este sentido aqui atribuído — elixir de imortalizar a estafa das carnes — nem a sinalizar a identidade valdostana daquele guisote batateiro e de legumes avinhados que alguns dos restaurantes de tradições locais oferecem pelo Valle d’Aosta [sorça con polenta …] muito menos a valer uma valente piela para alguém menos habituado à raça destes enfeitiçares [“Agarrou uma sorça de meter medo ao diabo!”], a [nossa] palavra çorça (ou sorça), em deriva greco-latina soracum, já aparece citada no decorrer dos séculos XV/XVI — nas ‘trovas (caricaturistas) que Afonso Valente fez em Tomar a Garcia de Resende, sem lhas mandar’, integradas na compilação organizada pelo próprio Garcia de Resende, o Cancioneiro Geral (1516), também nos cadernos culinários da neta de D. Manuel I, o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, na odepórica Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (…) ou nos vislumbres das Lendas da India de Gaspar Correa — sempre com os mesmos melindres e o mesmo significado, de capoeira ou de termo próximo para o engaiolar de aves, feita de vimes entretecidos. Nunca a valer as honras de preparar as carnes para os génios do nosso fumeiro. Confuso! Hoje já ninguém tranca galináceos naquelas çorças, sorças…

Pondo de lado canhenhos que só me aportariam enfados, e distrações.

           Quanto à origem de outros étimos apalavrados ainda mais reinante é tal barafunda. Talvez o seja porque pouco me entenda nestas demandas. É, a bem dizer, aquela arte, tal ciência, que firma argumentações contestatárias mas, para desentendidos como eu, muito atrapalha consequentes insinuações. Assim […] «Molho», deles, o mais modesto nestes alcances

            parece que provém do latim vulgar molliare que, no séc. XIII, aparece em ‘mollar’ e no séc. XIV já como molhar. Molhar e molho relacionam-se etimológica e morfologicamente. É simples! Sobre a palavra «adubo», ou qualquer outra forma próxima [adobo, adobe…], é a obscuridade etimológica. O chinfrim dos filólogos! Uns dizem, afirmando, que vem do frâncico dubban (dobba), que significaria ‘armar um soldado para a guerra’, evoluindo para ‘preparar alguém, deixar apto, adequado’, que é o que se faz ao solo quando se prepara para promover o crescimento das plantas. Entre outros, alguns diligentes curiosos fazem-nos este curioso percurso arabizado: al+tobo> attobo> addobo> adobo> adubo, em que attobo significa ‘especiarias’. E grande parte da nossa lexicografia histórica já atribuía ao vocábulo “adubo” dois significados distintos: (i) um produto que serve de fertilizante (ii) o tempero ou a iguaria que se mistura à comida para lhe dar um sabor especial. Mas será que temperar a terra não é o mesmo que fertilizar a comida? Coisas de poetas ou causas de filólogos? Nesta perspectiva é normal a curiosidade de qualquer falante do português e/ou mirandês em saber se tal palavra, com imaginados significados tão distintos, tem ou não a mesma origem etimológica (?), ou é um falso cognato? E sabe-se lá porquê, mas, para molhar os temperos, ajeitar as carnes pró enchimento, ‘sorçá-las’, ‘adubá-las’, por aqui [ainda!] não se achegou a moda do afrancesado mariner, ou do marinare italiano, nem ficou do latim a (aqua) marina, nem se habituaram às ‘marinadas’ citadinas de adopção estrangeirada. Ficou, isso sim, na alma Nordestina e no orgulho do Planalto, a sorça de água-d’alhos, la çurça d’auga d’alhos, em contraponto à tradicional sorça de vinha-d’alhos de toda a região alto-duriense.

           Adobadas as carnes, venham os BOTELOS!

           Pelo que [nos] dizem as palestras mais aferradas de alguns guias turísticos leoneses, e a sua materialização nos tão didácticos passeiosculturais do historiador José António Balboa (de Paz), acerca dos [seus]”butyros”, “botulus” ou “botillos” [IGP «Botillo del Bierzo»], julgo que as referências [escritas] mais antigas encontradas na península ibérica (ou dos alfarrábios do meu conhecimento) datam do séc. XI/XII, relativas a uma obrigação de entregar “botellus” ao poderoso Mosteiro de San Pedro de Montes pelos dignatários dos seus termos ― modo de doacção extensiva, posteriormente, ao beneditino Mosteiro de Carracedo. Talvez o seja! Aceito com naturalidade esta deferente especulação. Também não estão assim tão longe das Terras Transmontanas. E, por estes tempos de reconquistas e de retomas charcuteiras, vivíamos a mando dos mesmos senhores ou, mais tarde, em vivência cultural herdada. Por isso, ainda lhe confio a vaidade da frase: “la historia del Bierzo es la historia del botillo.”

           Resultado do que anotei das muitas botilladas

           tenho por mim que a primeira descrição conhecida no «meio gastronómico espanhol» se deve ao escritor astorgano, que cedo (re) xurdiu pela cultura galega, Antonio Fernández y Morales, no livro Ensayos poéticos en dialecto berciano publicado em 1861, onde o definiu como “tripa ancha y corta llena de huesos y carne de cerdo adobados con mucho pimiento, que hacen para las matanzas”. Mais tarde, em 1929, é o jornalista gaditano Dionisio Pérez Gutiérrez, no Guía del buen comer español – laborioso retrato da Espanha gastronómica – que o define como “un embutido de carne y huesos de cerdo no muy mondados”, elevando-o a um“manjar tan apetitoso que ciega y no cansa”. Já o coruñés Verardo García Rey, in Vocabulario del Bierzo (obra publicada a título póstumo, em 1934) caracteriza-o como um “chorizo gordo, lleno de carne picada y adobada con mucho pimiento picante o dulce, en el cual entran algunos huesos picados, y que se hace en todo el Bierzo en la época de la matanza”. E por aí adiante. São testemunhos bem emparelhados com a demonstração etimológica proporcionada pelo icónico texto de Amadeu Ferreira, “Bulhos, botielhos i botelos” [in www.diariodetrasosmontes.com (09/01/2005)]

           No entanto, nestes folheados [tão] livreiros

           e em tantas peregrinas conversas não fiquei a conhecer bibliografia sugerida que não [me] remetesse os ditos “botellus” para os carniceiros romanos vendedores de carne de porco ou para as extravagâncias gastronómicas de Apicius transpostas em De Re Conquinaria. Os modos de confecção eram muito próximos, naturalmente sem a adição do colorau. Outros leoneses também apostam na lendária ressurreição através das paixões monásticas pela arte de bem comer. Hipótese sempre a considerar e de meditação a bem imitar. Quanto à humildade do recheio, por lá e por cá, tem perdurado ao longo do tempo com as adaptações de ajuste à arte da sobrevivência, às circunstâncias do desenrasque e às ganas das [nossas] chouriceiras.

Então, qual será a origem desta apetitosa palavra  

           que os dicionários dizem que é obscura? Para mim é suficiente a proposta de Corominas&Pascual que aponta para o latim “botellus”, que quer dizer intestino (DCECH, botiellu), acrescentando que a mesma origem tiveram outras formas como budiello (aragonês), budell (catalão), budello (occitano) e boyau (francês). Ou seja, a palavra começou por querer dizer tripa gorda e acabou por significar o que se mete na dita tripa – o enchido, o fumado.

Sem qualquer convicção de quem tenha sabedoria para estes artifícios da história das palavras, anoto este aporte (…) Sendo *botelo (e não butelo)a palavra que à larga maioria dos estudiosos parece ser a mais adequada, ou mesmo a mais correcta e mais agradecida aos seus reais progenitores, para nos referirmos a este enchido d’ossos e de borralheira, o «boto» ― termo proveniente do germânico bauth [obtuso, descomposto…], significar odre para líquidos feito da pele de certos animais, objecto grande, deformado, torto, pessoa gorda e bem anafada, e o sufixo –elo muito produtivo a fazer palavras na primeira fase da Reconquista e no noroeste peninsular ― porque não, tal como diziam (ou ainda dirão?) por Tourém, Padornelos (…) por terras de Couto Misto, chamar-lhe “boto” ou “chouriço (do) boto”?

          E que dizer do bulho de Trindade Coelho? Apenas um sinónimo perfeito? Ou uma influência galega? [Não] Também se refere ao estômago do animal, sendo, isso sim, sinónimo de bandulho (palavra portuguesa, mirandesa, galega, leonesa e castelhana). Quanto à sua origem, por agora, talvez não valha a pena ir mais longe — embora Corominas diga que bandulho provem do árabe “batn” (ventre).

           Produto de identidade territorial, de facto.

           Embora existam citações escritas que registam esta tipologia de enchidos, dispersas e desarrumadas gastronomicamente, incluindo os seus modos de confecção, conservação e consumo, coevas às do botillo berciano, seja do filólogo Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1888/1889) ao prior de Argozelo, José Manuel Miranda Lopes (1933), ou do etnólogo António Jorge Dias (1953), que anotou a «fiêsta dos butiêlos» como refeição obrigatória no Entroito de Rio de Onor, foi com a matriarca das feiras de fumeiro

           a Feira do Fumeiro de Vinhais já a decorrer desde 1981

           que estes “chouriços d’ossos” [«e de alguma chicha»], em prato obrigatório nos Domingos Gordos, saíram do aconchego das tradições familiares e das saudades da diáspora para a comercialização generalizada. Além de consumidos (cozidos) nesses (e noutros) dias de libertação do vício e de conexão com as alegrias da cultura gastronómica, por todo o Nordeste Transmontano, independentemente das nomeadas que lhe foram atribuindo ao longo dos anos e de terra em terra, são produtos de acompanho basilar à causa das «cascas» (as casulas, a palhada ou palhoça, as vasas…) ou integrados nos lendários “cozidos regionais” daquele período. Botelo com cascas é capaz de ser a denominação mais vulgarizada para este comerote de arrebenta-bois! São dois produtos indissociáveis.

Como se fosse para um almoço de quatro a seis comedores sob a forma de cozido mirandês[…]De véspera coloque um pouco menos de meio quilo de cascas de molho em água fria. No (próprio) dia, a meio da manhã, leve o dito a cozer durante cerca de duas horas. (Convém ir verificando com um garfo a partir da hora). A chouriça de carne pode cozer em conjunto com o botelo, mas em tempo bem menor. Noutra panela cozem-se as cascas, coisa que dura mais ou menos uma hora, quando a sua cozedura passar de meio podemos juntar duas batatas por pessoa (Cozê-las à parte, talvez seja melhor!). Quase no final do apronto das cascas, controlando a cozedura através dos feijões que se soltam, junta-se-lhe o boto e as outras carnes (chispe, orelheira, pernil, entrecosto … presunto), que têm tempos de cozedura diferentes e temperos apropriados (…) Servir o botelo partido à mão em pedaços sobre as cascas bem escorridas e regado com bastante azeite.

           Até a água da cozedura daqueles dois serve para amanhar uma boa arrozada, um caldo tão saibinho ou uma sopa com batatas e pão de atraso!

           Sistematizando, num possível arrumo agro-alimentar

           — a actual IGP “butelo de Vinhais” [desde 20080728], o botelo mirandês (“bulho”, “botielho” ou, raramente, “bucho” [Planalto Mirandês] e o “palaio d’ossos”, “chouriço d’ossos” ou “salpicão d’ossos” [Vale do Douro], a integrar numa putativa família de «enchidos de carnes, ossos, gorduras, vísceras e/ou sangue» — são, então, fumados de formato e dimensões variáveis, cor vermelho-alaranjada, obtidos a partir de carnes, gorduras, ossos e cartilagens, provenientes das partes da costela e coluna vertebral do porco, cheios em estômago (bucho, bulho, paloio, boto, gaiteiro, bandulho, pastor…), bexiga (palaia, palagaio, pigureiro…) ou tripa do intestino grosso (botelo ou butelo, paio, palaio, butelgo ou botelgo, androla, andoia…). As carnes e ‘ossadas’ são adobadas com sal, pimentão-doce e/ou picante, alhos, folhas de louro, ervas aromáticas e/ou condimentares, vinho tinto e/ou água — surçam-se em vinha-d’alhos [Terra Fria Transmontana], apenas em água-d’alhos [Planalto Mirandês], ou ficam pelo meio-termo [Vale do Douro]. Aquelas diferentes denominações indicam particularidades locais (e familiares), muito a condizer com a disponibilidade dos territórios e o comportamento dos costumes. Respeitam a simplicidade das opções. Tanto se recheiam só com as pontas das costelas como se enriquecem com a carne da caluga, troços de rabo e ossinhos da suã. Enfim! São enchidos discretos no saber, modestos na confecção, reservados no consumo e louvados no sabor.

           Por último — uma das muitas receitas de botelos

 «(…) Há que partir as costelas do porco em pedaços pequenos, e colocá-los num alguidar de barro preto (O alguidar é de comprar na feira de Chaves ao Silva ou ao Ferreira de Vilar de Nantes, são deles os menos quebradiços). Temperar depois com sal solto, alhos esmagados e folhas de louro. Tudo a gosto. Mistura-se vinho tinto (o melhor é capaz de ser do bastardo que ficou do ano passado) em boa quantidade, e até cobrir as costelas partidas. Deixar na adoba dois a três dias, não mais, mexendo-as diariamente. No momento de preparar o enchido deve começar por retirar-se o excesso de vinho, ou separar para outro alguidar os pedaços das costelas, tanto dá; juntar depois à adoba uma cebola picada, e temperar com colorau (pimentão doce). Meter este preparado no estômago do porco (também se pode usar a bexiga ou o intestino grosso do porco). Os pedaços devem ficar bem acomodados, sem espaços vazios entre si. Apertar muito bem, de ajuda com um botelico e com fio grosso de algodão. Após três semanas de secagem (mais ou menos isso) está pronto para comer.» [do receituário da família de Clara de Jesus Baptista, Travancas/Roriz, Chaves, com modo de fazer reportado aos anos meados do século XIX.]

           Para aquela família de origens flavienses (maternas) e vinhaenses (paternas), encher um botelo, dois, três, ou mais, consoante os porcos de matança, disponibilizá-los para a troca do bem receber com outros – familiares, amigos e agraciados – era a demonstração aos vindouros do domínio da arte herdada, a manifestação da segurança social conseguida, a convivialidade proposta de encurtar distâncias e relembrar feitos passados. Era a expressão do ritual ancestral e a celebração do adeus à carne das tradições cristãs. Pois, então, que assim seja!

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