Miragem no deserto
No Reino Unido, Diana Abbott foi acusada de anti-semitismo e afastada do Partido Trabalhista por ter escrito, em resposta a uma carta de um leitor num jornal, que os judeus não sofrem de racismo. Nas semanas seguintes, e em consequência disto, a sua reputação foi completamente dizimada por um sem-número de artigos de opinião.
Quem se indignou parece não compreender que ela não pôs em causa a existência de discriminação contra os judeus, apenas questionou se essa discriminação poderá ser designada por racismo, e se não seria melhor arranjar outra palavra (que, curiosamente, já existe: anti-semitismo). Ou seja, esta é apenas uma questão ideológica (uma discussão de ideias ou conceitos) e não uma discussão sobre se existe ou não discriminação contra os judeus. Porém, hoje em dia, as pessoas parecem não distinguir uma coisa da outra, ou seja, quando se discutem ideias subentende-se que se está a falar sobre pessoas, ou sobre experiências concretas. Assim, as afirmações de Diana Abbott foram entendidas como um ataque ao povo judeu, e as pessoas reagiram atacando-a a ela.
Vejamos: uma coisa é a experiência da discriminação vivida no dia-a-dia, outra coisa são as palavras que usamos para designar esse fenómeno. Por exemplo, faz sentido dizer que as mulheres sofrem de racismo para nos referirmos à discriminação sexual? Com certeza que não, existe uma palavra para isso: sexismo (ou machismo; já são duas). Faz sentido dizer que os negros sofrem de anti-semitismo? Se forem negros judeus, fará, mas para nos referirmos à discriminação racial temos a palavra racismo. Da mesma forma, fará sentido dizer que os judeus sofrem de racismo?
Mas, afinal, o que é o racismo, ou melhor, a que nos referimos quando usamos essa palavra? Discriminação baseada na raça de um indivíduo parece-me a definição mais adequada. O conceito de raça, apesar de não fazer sentido de um ponto de vista biológico, ganha dimensão social perante a complicada rede de fenómenos discriminatórios que se baseiam nos fenótipos associados a determinados grupos étnicos, como a cor da pele.
Sim, é verdade que existem características físicas associadas ao povo judeu, mas estas não são tão evidentes como a cor da pele ou os olhos rasgados dos asiáticos. Não conseguimos saber com certeza que um sujeito é judeu só por olhar para ele; já os negros não têm como fugir do seu fenótipo. Por este motivo, a discriminação de que são alvo é de natureza diferente, e daí Diana Abbott achar que não faz sentido chamar-lhe racismo.
É claro que podemos discordar, ou concordar, o que seja, e poderíamos (e deveríamos) discutir estas questões, para que possamos entender-nos. O que não podemos (na minha opinião) é confundir conceitos com experiências concretas da vida das pessoas, e partir para o ataque pessoal quando alguém ousa questionar ideias, como se fossemos todos um bando de grandes narcisos que, lá está, confundem questionamento e crítica com ataque pessoal e, por conseguinte, reagem atacando. É vergonhoso ver como não houve um único membro do Partido Trabalhista que defendesse Diana Abbott ou, pelo menos, questionasse a sua expulsão (por medo de serem os próximos, como é evidente) e, que eu saiba, nenhum artigo de opinião a insurgir-se contra isto.
E aqui estamos, em pleno século XXI: privados da discussão de ideias por opção própria, para não cairmos em desgraça; desgraçadamente, o que cai é a capacidade de comunicação, pois sem discussão e clarificação conceptual ela torna-se apenas uma miragem.
A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico