Conjugar o verbo amar

De vez em quando, lá se inflamam as hostes da pureza linguística, a propósito da apropriação da virgem e imaculada língua lusitana pelo português do Brasil. A última de que tenho memória foi a propósito de um significativo número de meninos de finas origens ter começado a utilizar, de forma indiscriminada, impropérios vocabulares como “grama” ou “gramado” para se referirem aos relvados dos estádios de futebol, influenciados por youtubers e tiktokers brasileiros, profanadores sem vergonha da língua mãe.

Eu que o diga. Corria o ano de 1975 quando Portugal foi acometido por uma febre desconhecida, de sintomas derradeiros à hora do jantar: a novela brasileira. Tinha cinco anos e ainda me lembro da comoção social de tão nefasta epidemia. O país parava, e muitos pais de família suspiravam, inconformados, por não poderem assistir à programação alternativa na RTP2. Desde aí, a maleita tomou proporções assustadoras. No princípio dos anos 80, começámos a despedir-nos com um monossílabo assaz suspeito: o “tchau”! Quem, nos anos 70, o utilizava? Ninguém! Mas veio a telenovela e a etiqueta dos bons costumes ressentiu-se. Esse, porém, foi um mal menor. Que dizer da quantidade de vezes que as personagens se dirigiam umas às outras com um “Eu te amo”? Alguém contou? Um número obsceno! E ainda se fosse só entre marido e mulher, mas valha-nos Deus, aquilo era a toda a hora, entre mãe e filha (estranho!), mãe e filho (ainda mais!), pai e filha (já imaginaram?) e, horror dos horrores, pai e filho (abrenúncio!).

Pois quem ousava, nos anos 70, em Portugal, conjugar o verbo amar? Desconfio que nem nas aulas de português tal era permitido, não fossem as criancinhas ficar com ideias. Para mim, a introdução deu-se, como não podia deixar de ser, com a novela O Casarão, onde a Maria do Carmo apanhava do pai por estar apaixonada pelo Jacinto. E um belo dia ela escreveu no quadro de ardósia uma mensagem para o seu amado, que me deixou curiosíssima: “Mãe, o que é que ela escreveu?” “Amo-te” “O que é isso?” Posso garantir que, do alto dos meus seis ou sete anos, e em termos de ignorância, eu era um sujeito representativo da minha faixa etária.

Uns anos mais tarde, os ânimos alvoroçaram-se novamente quando Odorico Paraguaçu entrou em cena. Pois não era que estava promovendo um mau uso do português? E desta vez não havia dúvidas, o vocabulário desta carismática personagem da novela O Bem Amado corrompia todas as regras linguísticas. Quem pode garantir que não restem, em regiões remotas do país, portugueses a usar o termo “emboramente” e outros pecados gramaticais? Eu instaurava já um inquérito nacional para averiguar.

O português puríssimo, a língua afamada de Camões, nunca mais foi a mesma. E, como se não bastasse, os próprios brasileiros começaram a migrar em massa para Portugal, e hoje em dia um cidadão não pode dar dois passos sem ouvir o tal do português do Brasil, é como se vivesse numa telenovela ambulante! Estamos a ser colonizados, e ninguém diz nada! Imaginem se nos tiram o fado e o substituem por um fado sambado, ou um samba fadado, ou coisa do género? Eu começava já a rezar à Nossa Senhora de Fátima. Se bem que o melhor talvez fosse acender uma vela para Yemanjá. Ou as duas. Sei lá.

A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico

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