A arte de dizer a verdade

De muito nova trago eu na memória o encanto das Áfricas, a sul.
Um encanto desconhecido de outros continentes, palpável, quase, genuíno, único, hostil pela intensidade das cores, do clima, da paisagem, pelos aromas, pela coragem dos animais selvagens. O mar é revolto, embora possa parecer sereno, e profundamente azul. A terra tem a cor do ouro, e sucede-se por infinitas paragens. O céu, às vezes fingindo bonança (sempre que a tempestade, ruidosa e assoladora, intimida o ar) dá-nos cambiantes imensos, e tão depressa se põe cristalino como se cobre do negro das nuvens que, num ápice, o assolam. Depois, a noite cai fulgurante, tão inesperadamente que quase assusta, como se para sempre encerrasse, acredita-se naquele instante, a magnanimidade do pôr-do-sol. Vale sempre a pena descrever o lugar onde se vive, onde se trabalha, porque tudo muda se o lugar muda, sobretudo para esta classe de nómadas que todos nós diplomatas somos – em permanente transformação, sem a possibilidade de fazer planos, sem se saber que país nos calhará em sorte a seguir; tão depressa em locais onde a guerra deflagra, imprevista, como em sítios pacíficos e plenos de amenidades; tão depressa em países mais exigentes, em vários sentidos do termo, como em Estados com os quais a agenda bilateral com Portugal se mostra ágil, florescente e multifacetada. Não deve esquecer-se nunca a importância do lugar físico, no trabalho de um diplomata, porque ele toma conta de nós e abraça-nos o quotidiano. Faz-se de certo modo ali, na cidade imensa, vibrante de acontecimentos e de progresso, longe da natureza e de certas coisas simples, quase fechada à individualidade. Mas já tem de se fazer de modo diverso nesse outro burgo, mais pequeno, onde os habitantes se cruzam todos os dias, ou então nesse outro, pobre, onde os cidadãos lutam para sobreviver, onde o Verão dura o ano todo, ou não. Porque os lugares e os povos, sendo profundamente diversos, obrigam o diplomata a saber adaptar-se, para se sentir em casa e poder exercer as suas funções proficientemente.

O posto era em África, num clima tropical e por vezes sufocante, um lugar novo, ainda que antigo de séculos, onde a natureza, com a sua pujante verdade, nos mostrava, dia a dia, um real inalterável. Afeiçoei-me a ele, sim, à sua gente feliz, ao absoluto de uma realidade jovem, à robustez da terra selvagem, onde esvoaçantes sementes tomavam assento, para aí fazerem crescer frondosas árvores de fruto, de que ninguém cuidava por não ser preciso, que o tempo disso se encarregaria, através da chuva, intercalada de céu azul. E os troncos dessas árvores serviam para a brincadeira e os seus frutos alimentavam os largos sorrisos das crianças. Nem ruídos que não proviessem da luxuriosa natureza nem bulícios artificiais aborreciam aquela cidade. A vida era autêntica ali e isso refletia-se no nosso trabalho, na Embaixada, gosto de acreditar que positivamente.
Um trabalho que incluía muitas valências, parte de uma agenda bilateral intensa, completa e diversificada, como na cooperação e ajuda ao desenvolvimento, em saúde, educação, formação e treino, intercâmbio de experiências no campo institucional, judicial, económico, fiscal, agrícola, no relacionamento político-diplomático e no setor consular, quer em relação a cidadãos portugueses, residentes ou de passagem, quer em relação a cidadãos locais. Da Chancelaria via-se o mar. Arranjei forma de me sentar em frente da janela, para que, em horas de silêncio, pudesse ouvir a moção inalterável das ondas. Que privilégio. Depois, o lindo edifício da Embaixada ficava ao lado de um liceu, pelo que os alunos, demoradamente, se sentavam nos muros do paredão da praia, em intervalos das lições, mirando com doçura o oceano com os seus rires plenos, como se tudo lhes fosse benevolente, sempre. Lembranças, muitas, desse tempo. Uma vez, assisti a uma Missa numa pequena igreja. Quando entrei, apercebi-me da singeleza do altar e das figuras de santos esculpidas, que pareciam povoar de movimento o pequeno templo. Mas só quando só saí me dei conta de que, olhando através da porta aberta, toda a Igreja era afinal um corredor sacro, que do altar, em linha reta, parecia desembocar diretamente no azul do mar e na espuma branca das suas ondas.
São pormenores líricos, dir-me-ão, que nada significam em termos da ação de um Embaixador de Portugal, mas é um engano. O lugar também integra a minha profissão, as pessoas igualmente, o modo de viver e de ser, o passado na História, o presente imbuído de atualidades, por vezes dramáticas, como a pandemia ou a guerra, o presente cheio de acontecimentos e de eventos destinados a marcar momentos, a comemorar, a firmar contratos entre empresas, ou Tratados entre os Estados, o futuro nas previsões de agendas, na definição meticulosa de calendários para a realização de ações em comum, a negociação de ideias do interesse de ambos os países, a preparação de diligências, quando um Embaixador é chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do país anfitrião para lhe serem pedidas explicações sobre este ou aquele tema, ou então para lhe serem adiantadas informações, por vezes de enorme interesse para o seu país, por vezes graves, por vezes muito positivas.

Tive, ao longo da minha carreira, alguns momentos delicados, sobretudo depois de ser Embaixadora, porque a responsabilidade, claro, muito recrudesce quando se exerce a função de representar formalmente a nação portuguesa junto do Estado onde somos acreditados (ou junto de uma Organização multilateral). Penso muitas vezes, ainda que sempre com boas recordações, nesses episódios um pouco mais embaraçosos. Aprendi com cada um deles. Aprendi sobretudo – ao contrário do que parece ser a ideia generalizada que prevalece na opinião pública a propósito do trabalho de um diplomata – que a arte da diplomacia consiste em saber como dizer a verdade, mesmo se essa verdade for incómoda para o nosso interlocutor. Depois, o conteúdo da verdade não varia, não pode variar, senão desvirtuá-la-íamos e deixaria de ser verdade. O propósito com que temos de a dizer é simples, passar a mensagem ao nosso interlocutor. Pode ser uma verdade relativa a Portugal ou relativa ao Estado onde servimos, pode ser uma verdade positiva, mas também pode ser negativa, relevante ou não tanto. O que não se deve é dizê-la de qualquer modo, nem em qualquer circunstância.

Exemplifico.
Acontece o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Estado no qual servimos, nos pedir ao Chefe de Missão uma justificação sobre algo sucedido em Portugal relacionado com esse Estado. Há, com efeito, ocasiões, todos as conhecemos, em que se alude publicamente, de forma deveras negativa, a outro país, seja por parte de entidades, instituições ou altos oficiais, seja em deliberações do Parlamento português (lembro-me, nomeadamente, de um voto de pesar na Assembleia da República, sobre o genocídio arménio). Esse outro país, tendo-se apercebido da situação pelos Media ou por relatos feitos pelo seu Embaixador em Lisboa, pode pretender, por razões suas, pedir esclarecimentos ao Embaixador de Portugal. Ora como justificar deliberações ou sequer opiniões, por mais negativas que sejam, proferidas em liberdade a propósito de outro Estado soberano? Não existem manuais de instruções sobre este tipo de episódios, até porque, como precedentemente frisei, o tipo de explicações a dar e a forma como as damos muito dependem do lugar, dos nossos interlocutores e do país em si. Dependem, evidentemente, também, do assunto em causa, das circunstâncias em que foi abordado e por quem, em Portugal. Por vezes, sabemo-lo, não há realmente uma justificação – o que se passa numa nação soberana e livre simplesmente passa-se. Uma opinião de alguém, expressa publicamente, sobre outro Estado pode ser apenas uma opinião e pode até ser errada. Mas são circunstâncias, de uma forma ou de outra suscetíveis de criar dificuldades ao Embaixador que, sem melindrar os visados, tem sempre de defender o interesse nacional. Se uma fórmula genérica houvesse para situações assim, seria, a meu ver, a seguinte – deverá começar-se por detalhadamente ouvir o que o interlocutor tem para nos dizer, entender, com a profundidade possível, o teor de quanto nos diz, incluindo os pormenores factuais que corrige, em relação por exemplo a um texto aprovado em Lisboa. Já me sucedeu determinada deliberação em Portugal conter erros factuais de datas, sobre a história de uma nação onde servi. Nesse caso, conferidos que estejam esses erros, acabei por agradecer a correção, notando que a mesma seria transmitida às minhas autoridades. Depois, cumpre tentar explicitar ao interlocutor a razão que levou à adoção da dita deliberação ou à expressão de uma opinião ou ponto de vista. Normalmente essa razão tem plausibilidade, pois Portugal é um país extremamente cuidadoso – embora a certos atores políticos possa faltar contenção – não só na ação diplomática, mas também no modo como alude a outros Estados, na vida política quotidiana. Por outro lado, a difícil arte de saber dizer a verdade, sem ocasionar suscetibilidades no outro, deverá sempre evitar o caminho do confronto, da contradição por contradizer. Ainda que não estejamos de acordo, há sempre modo de acordar que em certos pontos discordamos, mas que em outros coincidimos.
Depois, a situação inversa.
Recordo uma ocasião em que um membro do governo do Estado onde servia, numa cerimónia pública, em que eu e esse Ministro eramos oradores, criticou abertamente o governo português da altura, ainda que de forma simpática, perguntando-me como era possível que o meu governo fosse daquele determinado partido e não de outro, que, em seu entender, teria sido o real vencedor das eleições. Há sempre um momento, neste tipo de situações, em que o pensamento voa à procura da resposta acertada que consiga, a um tempo só, não vulnerar o visado – a quem teremos sempre (e rapidamente, noto) de retorquir, pois o silêncio implica consentimento, não sendo opção – mas também defender, com a necessária veemência, o nosso país e o nosso governo. Também para ocorrências assim, inesperadas, não existem manuais, muito dependendo do bom senso, do raciocínio e da habilidade de cada um. Se me saí, na ocasião, bem ou mal, a outros caberá dizer, mas sei que a minha resposta fez o Ministro acenar com a cabeça, parecendo esclarecido.
Igualmente recordo, nos tempos da crise financeira, haver sido quase invetivada, juntamente com o colega grego, numa reunião com várias Organizações Não-Governamentais e Think tanks, sobre a situação complexa que os dois países enfrentavam. Como pudemos, respondemos ambos, procurando justificar algo dificilmente justificável, como era a quase bancarrota em que vivíamos e que parecia incompreensível àqueles ouvintes pragmáticos, exigentes e distantes, que desconheciam por completo a realidade portuguesa, mas a quem os dados macroeconómicos objetivos traziam à expressão do olhar e ao tom da voz certo desdém.
Outra vez aconteceu que atores políticos portugueses decidiram apoiar, presencialmente, um candidato da oposição às eleições, no Estado em que eu me encontrava acreditada. A ocorrência enfureceu o governo em funções desse mesmo Estado, e tenho de reconhecer que com alguma razão, tratando-se de uma nação soberana. Vários Ministros me chamaram, então, bramindo a ameaça de que expulsariam, de imediato, todos os portugueses que se tinham deslocado ao país, no propósito de apoiar a campanha eleitoral desse candidato da oposição, caso não partissem os mesmos, de imediato, por sua livre vontade. Era inaceitável a ideia. Seria vista em Portugal como uma afronta e tudo fiz para que não se concretizasse. Entretanto, a situação tornava-se cada vez mais volátil pela atitude expansiva dos apoiantes do referido candidato, entusiasmados com a solidariedade prestada, in loco, pelos cidadãos portugueses presentes. Aqueles decidiram então promover um enorme ajuntamento no jardim da Embaixada e em torno do edifício. Terá sido porventura das gestões mais difíceis que me vi constrangida a fazer, não só pelas ameaças que referi, mas também pelas manifestações e arruadas eleitorais a decorrerem na Embaixada de Portugal. Tudo acabou em bem, felizmente, entre vaivéns de Ministério para Ministério, dentro e pelas imediações da Embaixada, em conversas com responsáveis vários, pessoas de bem, cuja posição eu até entendia, mas que não podia aceitar. A fórmula dessa gestão não foi estudada, por falta de tempo, antes surgiu de forma quase instintiva. Ainda assim revelou-se eficaz, entre o equilíbrio do interesse nacional que tinha de ser – e sempre deve ser – impreterivelmente prosseguido e alguma capacidade de persuasão, desvalorizando factos que irritavam os interlocutores, amenizando impactos e exortando os manifestantes a adotarem uma postura de adicional sobriedade. Certo foi que nenhum compatriota veio a ser expatriado e que – ironia a que evidentemente Portugal se deve considerar alheio – o referido candidato da oposição acabou por vencer as eleições.
Ao longo da minha carreira nunca estive colocada em países em guerra ou sujeitos a calamidades naturais que afetassem diretamente a capital, onde residem os Chefes de Missão. Não vivi, portanto, esse tipo de terríveis situações. Ainda assim, aconteceram incidentes de alguma gravidade, ameaças de golpes de Estado, tiroteios esporádicos, demasiado perto da Embaixada e casos de confrontos e de protestos com alguma gravidade. O bom senso aconselha a que nos protejamos, bem como à nossa equipa, e ajamos com serenidade, pois quanto mais tensa for a ocorrência mais precisa se torna a ponderação. O stress, as reações intempestivas, quando acontecem situações inesperadas que envolvam alguma violência, nunca ajudam e nada resolvem. O Chefe de Missão tem sempre de dar o exemplo e convém que esse seja um bom exemplo. O repto será justamente quando a violência ameaça eclodir, ou se já eclodiu, manter essa tão preciosa calma…
Ocorrem depois, na vida diplomática, episódios quase caricatos que devemos encarar com descontração, no intuito de os não valorar. Sucedeu-me, numa cerimónia formal, estender a mão para saudar um interlocutor, conforme fiz com muitos outros presentes na dita cerimónia, e este haver ostensivamente recusado o meu cumprimento, por razões religiosas. Não se trata de um problema grave ou sequer digno de particular nota, mas na presença de tantas outras pessoas, o ostensivo da recusa perturba, fazendo-nos sentir o centro das atenções, não pelos melhores motivos.

Nesta carreira outro elemento existe que, pelo menos a mim, e sobretudo no início, inquietava. Trata-se da exposição, da necessidade de falar em público, de subir tantas vezes ao palco para discursar, olhando lá de cima a mancha inerte de espectadores suspensos do que dissermos, em língua outra que não a nossa; se nos enganamos, se esquecemos o texto, ou a razão de ali estarmos, como algumas vezes, nos exames orais da Faculdade de Direito, me aconteceu, só me valendo a extrema compreensão do docente que me avaliava. Os portugueses, pelo menos no meu tempo assim sucedeu, não são na escola ensinados a discursar, povo tímido, e algo introvertido que somos, privilegiamos certo recato e contenção, ao invés de extroversões, o que nos traz encanto e talvez se possa relacionar com a propensão que temos para o recolhimento, com méritos únicos na poesia. Hoje em dia, aliás, essa tendência será agravada, por todo o mundo, com a desvalorização, nos sistemas de ensino, das disciplinas de Humanidades, para um foco cada vez maior nas matemáticas e ciências, em detrimento da cultura geral, da filosofia e da história. Certo é que, na carreira diplomática, a todo o momento, sejamos ou não Chefes de Missão, precisamos de ser dinâmicos e algo afirmativos, sobretudo em eventos públicos, onde invariavelmente deveremos discursar para audiências mais ou menos alargadas. Com o decorrer dos anos, todos nos habituamos a tal, claro, mas falar bem em público, preparar uma alocução com interesse e ideias novéis e originais, sobre seja que tópico for, desde questões de energia até à apresentação do Prémio Nobel português de literatura não é nunca tarefa fácil. Pelo menos para mim. Um aspeto deveras importante no exercício da minha profissão, prende-se com o lado humano, e tantas vezes deveras perturbador, com que somos frequentemente confrontados. Colocada num país paradisíaco, aonde muitos portugueses viajavam como turistas, soube um dia que, num restaurante famoso, um pouco distante da cidade capital, um turista fora atingido pela queda de uma árvore milenar, que, inopinadamente, se despenhara sobre o telhado do espaço. Para voltar ao meu lema de que os lugares onde estamos fazem a diferença, diria que também neste tipo de tragédia assim sucede. O posto era numa nação pequena, onde todos se conheciam, pude por isso não só saber imediatamente do sucedido, mas também juntar-me à vítima, mesmo antes de a ambulância chegar ao hospital, a fim de, com a minha presença ali, seguir os acontecimentos, apoiar no que fosse necessário e confortar, quanto pudesse, a mulher do ferido, que se encontrava em estado de choque, como se compreende. Caso o acidente tivesse ocorrido numa grande capital dificilmente eu saberia do mesmo tão depressa, dificilmente poderia estar no Hospital a tempo da ambulância, dificilmente teria obtido um apoio quase exclusivo, e tão humano, diretamente de Ministros, para ultrapassar certas formalidades locais. O caso que ora relato teve um triste desfecho porque o cidadão veio a falecer no hospital. Sua mulher estava desesperada e só, num país de si desconhecido, sem família e sem realmente entender o que tinha ocorrido. O apoio das autoridades locais para que, o mais depressa possível, o corpo pudesse ser trasladado para Portugal, em termos da emissão da certidão de óbito e de outras formalidades necessárias, foi excecional, e eu lembro-me que um dos Ministros até se deslocou ao hospital, no sentido de acelerar o processo. A disponibilidade e a generosidade de todos os meus interlocutores ensinaram-me muito, de como a bondade também pode ser institucional… Um elemento que igualmente reputo de importante, no exercício da função diplomática, prende-se com o espírito de equipa que um Embaixador deve saber incutir a todos os funcionários de uma Missão. No caso em apreço, os meus colegas da Embaixada foram todos inexcedíveis, trabalhámos sem horas nem descanso por toda a noite. Nesse espirito de equipa a que aludo, cumpre precisar que todos são importantes, ainda que a hierarquia deva, claro, estar presente; tanto representando Portugal (em sentido prático e não formal, mas relevantemente) o rececionista, que atende as pessoas e as reencaminha para os serviços competentes da Embaixada, como eu própria. Um Embaixador, embora tenha opinião e seja seu dever expressá-la aos seus superiores, em última instância, cumpre ordens. Por outro lado, nos tempos que correm, atenta a velocidade com que a informação circula, um golpe de Estado ocorrido de madrugada será instantaneamente conhecido em Lisboa, antes mesmo de o Embaixador haver conseguido iniciar o seu relato ou telefonar às suas autoridades. Noto, outrossim, a miríade de opiniões e de ideias expressas a cada momento, sobre todos os assuntos, relevantes ou superficiais, pela sociedade civil, redes sociais, Media, ONG’s, pela Academia e por todos os atores políticos, económicos e culturais. Há ainda a revolucionária realidade da Inteligência Artificial, que tanta apreensão causa e em relação à qual estamos a procurar, quer o modus faciendi, quer o modus vivendi. Os diplomatas, entendendo a vertigem da mudança que em recentes décadas radicalmente alteraram o nosso modo de viver, também a essa novidade tiveram de se adaptar, como todos, aliás. Poderia, em conformidade, pensar-se que a função de um Embaixador haverá perdido relevância. Não é assim. O contacto humano continua a ser indispensável, a abordagem certa traz a um Estado ganho de causa. Mas, atualmente, um relato endereçado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, se se referir a assuntos do domínio público, tem de pressupor que os factos que relata são já conhecidos de todos. Cumpre, por conseguinte, adicionar à informação factual valores acrescentados. O conhecimento que se tem do país de onde se escreve, a enunciação de possíveis motivações mais obscuras que os jornais não identificaram, a definição de eventuais consequências para Portugal de quanto se relata, a antecipação de caminhos que dessa informação factual possam vir a desenhar-se, quer internamente para o país em causa, quer na cena bilateral, regional ou internacional…

A quem me peça conselho sobre a vida diplomática eu diria ser enleadora, envolvente, comovedora e única. Mas também diria ser necessária alguma coragem. Para viver em postos longínquos, alguns com menos boas condições, outros de difícil adaptação por questões de clima ou de estilo de vida. Coragem para nunca parar, para de quatro em quatro anos mudar, para ver a casa, na véspera da mudança para outro país, atulhada de enormes caixas de cartão com as coisas de sempre, aquelas coisas eternas que fazem de um sítio qualquer um lar só nosso, livros, retratos, lembranças. Pensar no futuro. Para onde vou no futuro? Em que lugar estarei? Perto, distante, fácil, exigente, soalheiro ou cinzento. Essa sensação de não pertencermos a lado nenhum, embora sejamos mais portugueses do que nunca, porque ao representar o país, tornamo-nos, um pouco, ele. Essa sensação de a nossa vida ser decidida por outrem, de acordo com o interesse nacional. Coragem para conseguir acolher e gerir, de bom grado, o espírito nómada a que nos vergamos por escolha e por paixão, mas pelo qual se paga o preço da instabilidade, da insegurança e da incerteza. Coragem para se enfrentarem, além disso, os males da nossa família, que anda de lugar em lugar, sem ter escolhido tal modo de vida, que é só nosso, os filhos adolescentes que se queixam ruidosamente de deixar para trás amigos do coração, o cônjuge que não pode trabalhar…

Se eu voltasse atrás, digo – com a noção de se tratar de um clichet – faria exatamente o que fiz e haveria de escolher para mim esta profissão que amo. E, no entanto, há quase quarenta anos, quando me tornei funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois de ter sido advogada e de ter dado aulas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, parecia-me tudo estranho e demasiado vago. Nos primeiros anos, não acreditava na solidez de nada, e muitas vezes pensava em mudar de ofício. Foi paulatinamente, quase sub-repticiamente, que passei a amar o que fazia. A carreira diplomática representou, na minha existência, um acaso que correu bem, desses que nos mudam para melhor a vida, ainda que o meu casamento não tenha resistido a tão ambiciosa escolha.

Também queria sublinhar o orgulho que tenho em Portugal, pesem embora as tantas vicissitudes que a carreira diplomática enfrenta, por escassez de recursos humanos e financeiros. Aprendi, com enorme aprazimento, que o nosso é um país profundamente respeitado pelo mundo fora, em todos os continentes. Essa simpatia generalizada facilita muito o nosso trabalho, ajuda os assuntos a evoluírem com fluidez, permite aos nossos compatriotas acederem a lugares de enorme relevo em Organizações Multilaterais. Ao contrário de outros pontos de vista, deveras em voga, diria, depois, não ser Portugal um país pequeno, nem em território nem em população. A nossa dimensão acaba por ser média. Mas o mais relevante não se prende com a dimensão física, julgo, mas sim com o alcance da História de Portugal, com o facto de sabermos ouvir e entender e aceitar e apreciar qualquer outra cultura, longínqua, ou próxima, de sermos, todos os portugueses, diplomatas, ao longo dos séculos, e de assim havermos forjado quase 900 anos de História e de soberania.
Enfim, parece tempo de terminar tão breves palavras, que, de nenhum modo, se destinam a resumir a essência da tão nobre carreira diplomática, mas sim a dar conta, aos leitores desta prestigiada revista, de alguns casos que vivi, mais ou menos difíceis, que assim é a vida, mas que tanto me ensinaram, de mim própria, dos outros, da História universal, da História de Portugal, do lastro do tempo, da imensa variedade dos povos, da sua forma de ser e de agir, do modo como o passado das nações lhes influencia o presente e, tantas vezes, quase completamente, lhes determina o futuro, da relevância de estarmos disso cientes, das motivações psicológicas das ações dos povos, ao longo do tempo, que tanto podem visar o bem coletivo, como a desgraça e a disrupção, das reações previsíveis de certos Estados, como das imprevisíveis, que ninguém antecipou, que ninguém viu chegar e que, num ápice, atordoam o mundo.

Paula Leal da Silva Embaixadora de Portugal na Croácia

1 Comentário

  • Patrícia Dias
    6 meses ago Publicar uma Resposta

    Foi encantador conhecer alguns dos momentos que marcaram o seu percurso diplomático. Obrigada por este notável testemunho e reflexivas palavras. Transparece completamente no seu discurso, a empatia que nutre por cada lugar, parabéns pela pessoa que é!

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