A língua e a roupa

Há pessoas que têm uma dificuldade imensa em lidar com a língua portuguesa toda. Em geral, gostam do português-padrão que se aprende nas aulas de português e se ouve nos discursos muito formais. Mas têm uma grande dificuldade em lidar com o português dos escritores, dos adolescentes, dos amigos, dos amantes, da terra onde nascemos, de certas ruas das cidades, o português dos insultos, dos palavrões, das profissões, dos dias bêbados. São pessoas que ficam nervosas com uma língua fora das estreitas margens que acham que devia ter. Têm medo que a língua se parta como se fosse um frágil cristal.
Estas pessoas não gostam que se diga «bué» (sabe-se lá por onde andou a palavra…), «o comer» (faz-lhes cócegas), que se diga «ok» (estrangeirismo imperdoável) — e há ainda quem imponha regras artificiais ao português, para ver se todos o usam de forma bem comportada (e cada vez mais limitada). São pessoas que gostam da ideia da língua portuguesa, mas têm um certo horror ao português tal como ele existe na boca dos portugueses.
Ora, aconselho a que desapertem a gravata e tirem a camisa das calças. O português que usamos é como a roupa que temos no corpo. Se formos a uma entrevista de emprego, temos de ir vestidos de forma minimamente formal e quem nos disser o contrário está a enganar-nos. Mas se formos à praia, um fato e gravata é mais do que errado: é ridículo.
Em casa, sabe bem vestir um pijama.
No trabalho, às vezes temos de usar roupa adequada para mexer nesta ou naquela máquina — ou para trabalhar num laboratório.
E há momentos em que uma lingerie não fica mal, não senhora.

Sim, aprender português não implica apenas aprender as apertadas regras do dialecto padrão, tal como aprender a vestir-nos bem não implica escolher um fato e usá-lo para todo o sempre. Convém conhecer todo um festival de diferentes roupas e combinações. Não é fácil, de facto, mas a vida seria tão mais cinzenta se todos nos vestíssemos de igual.
Mesmo entre quem percebe isto, há quem se limite a usar o que é adequado, há quem não faça ideia e erre sem querer, há quem não queira saber e use sempre a mesma coisa — e há ainda quem saiba dar um pequeno toque original à roupa que veste ou à língua que fala, mesmo quando vai para o trabalho.
Não sei se concordam comigo, mas parece-me errado gostar mais da ideia de roupa vazia do que da roupa à volta dum corpo de alguém, bem vivo.
Na língua é a mesma coisa — é errado pensar na língua sem os falantes, uma língua ideal, perfeita, nunca usada, guardada na gaveta ou nos livros de gramática. Perdoem-me, mas gosto mais de a ver usada no dia-a-dia, às vezes com uma ou outra nódoa, mas a servir as pessoas reais que a usam. (E às vezes também é bom ficar sem roupa, que o silêncio é de ouro em certas horas.)
Temos de conhecer cada vez melhor a língua toda, a língua usada nas várias situações, treiná-la como a um músculo para expressar as nossas ideias e fazer com ela o que queremos. Para isso, tal como na roupa, temos de saber as regras de etiqueta para que nos levem a sério. O português bem-vestido é muito importante: precisamos dessa roupagem formal para falar em situações formais, tal como precisamos da língua mais solta e mais livre quando precisamos de descansar e ir de férias.
Depois, não nos podemos esquecer que a roupa e a língua são úteis: agasalham-nos do frio ou são instrumento de comunicação. Mas são mais do que isso: com a roupa e também com a língua expressamos a nossa identidade. E, também pela roupa e pela língua, julgamos os outros de forma muito rápida e, às vezes, muito injusta. Será feio, mas será inevitável — somos um bicho complicado.
Vá, mas deixemo-nos de queixas: a roupa e a língua são também fonte de prazer, nos dias bons. Não são nada de sagrado: levamo-las bem chegadas ao corpo todo. Quando tudo corre bem, são confortáveis e deixam-nos bem-dispostos, por causa das cores ou do tecido, ou por causa da maneira como andamos e sorrimos.
Para que a roupa e a língua sejam mais fonte de prazer, tenho esta ideia muito estranha: podemos ser um pouco mais tolerantes para com a roupa que os outros vestem, um pouco mais criativos com a língua que falamos, um pouco mais abertos a experimentar e a aproveitar os dias de sol que aí vêm.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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