Poesia – David Mourão-Ferreira
Uma canção para Margaretha
Tu vens de terras de Holanda,
mas tens a carne morena.
E em vez de serena, branda
postura que o Norte manda,
teu corpo se desordena
à carícia, por mais branda…
Tu vens das terras de Holanda…
Eu venho de Portugal:
o mesmo é dizer que venho
de longe, do litoral,
e um sabor, no corpo, a sal
definiu meu Fado estranho.
Aqui me tens, donde venho:
Eu venho de Portugal…
Trago nos lábios o Mar,
cheio de vento e de espuma…
E tu mo virás roubar!
— Ai descampados ao ar,
onde houvera ventos, bruma! —
Com saudade hei de lembrar:
tinha nos lábios o Mar…
Hei de lembrar e sofrer
o que for perdendo aqui…
Mas um colo de mulher
tudo merece, e requer
o abandono de si …
Quem me dera que por ti
Venha a lembrar e sofrer…
Tu vens de terras de Holanda,
eu venho de Portugal:
cada um de sua banda…
Sabe o Destino o que manda,
quer pra bem ou quer p´ra mal…
— Não mais as terras de Holanda
e areias de Portugal!
David Mourão-Ferreira in A Viagem Secreta, segunda edição corrigida e aumentada, ne varietur, Edições Ática, Lisboa, 1958
David Mourão-Ferreira
David de Jesus Mourão-Ferreira, nascido a 24 de Fevereiro de 1927, autor multifacetado – poeta, crítico, ensaísta, contista, novelista, romancista, cronista, dramaturgo, tradutor, conferencista, polemista, foi aluno da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa dos finais dos anos 40 até 1951, ano da sua conclusão de licenciatura no curso de Filologia Românica, com a tese Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda. Seis anos depois, inicia actividades de docente na mesma faculdade, ao mesmo tempo que se dedica à elaboração e publicação da sua obra literária. É também nesta altura que se dá o seu encontro com a fadista Amália Rodrigues, que afectaria profundamente a sua relação com o fado. Neste contexto, surgem as primeiras letras de fados para a interpretação de Amália; Primavera (1953), Libertação (1955) e as versões portuguesas Sempre e Sempre Amor (1953), Neblina (1954) e Quando a Noite Vem (1954). Cerca de dez anos antes, em 1945, tinham sido já publicados, na revista Seara Nova, os seus primeiros poemas, sendo que, a 1950, funda a revista de Poesia Távora Redonda, que manteve actividade literária durante os quatro anos seguintes.
Esta rubrica pretende dar a conhecer ao mundo o melhor da poesia por diversos autores lusófonos. Os poemas são selecionados por Gilda Pereira, uma fã incondicional de poesia.