“Eu sou o rio, o rio sou eu”
Uma marca dos tempos modernos: quer as decisões judiciais, quer a legislação, têm vindo a reforçar a protecção da natureza, como uma entidade detentora de direitos próprios.
Vários países, espalhados pelos quatro cantos do mundo, têm reconhecido personalidade jurídica a vários ecossistemas como meio efectivo de protecção ambiental. Esta nova concepção ecocêntrica também já chegou ao Vaticano. Através da encíclica “Laudato Si”, o Papa Francisco propôs a adopção de novos comportamentos no sentido de existir um maior respeito e protecção da natureza.
Na actualidade, a maioria dos direitos da natureza, em sentido lato, ainda não são reconhecidos. Os direitos consagrados, centram-se em sectores pontuais, como sejam: a biodiversidade, o clima, as espécies ameaçadas e as espécies migratórias, entre outros.
Para os defensores do crescente movimento mundial de defesa dos direitos da natureza, estes são inalienáveis, a par dos direitos humanos.
Em 22 de Dezembro de 2015, a resolução 70/28 da Assembleia Geral da ONU recomendou vários caminhos no sentido de se atribuir personalidade jurídica à natureza, incluindo, entre outros, uma “Declaração dos Direitos da Natureza”, um tribunal ambiental internacional e sanções penais por crimes contra a natureza, perpetrados por empresas e pelos seus dirigentes.
Posto isto, a seguir, apresentam-se alguns exemplos de iniciativas recentes e interessantes, centradas na protecção da natureza:
Rio Whanganui – Nova Zelândia
“Eu sou o rio, o rio sou eu” – É deste modo que o povo maori, originário da Nova Zelândia, reflecte a forte ligação que nutre pelo seu rio Whanganui, venerando-o como seu antepassado.
Em 16 de Março de 2017, o Parlamento da Nova Zelândia, reconheceu, em termos formais, o rio Whanganui – venerado pelo povo maori – como uma entidade para efeitos legais, numa decisão arrojada, inédita e de inteira justiça. Foi a primeira vez, na história da humanidade, que um elemento natural foi reconhecido como uma “pessoa jurídica”, com todos os direitos e deveres que lhe estão inerentes. Foram necessários quase 150 anos para que os membros da tribo maori vissem reconhecidos os seus direitos sobre o rio. Lutavam pelo seu reconhecimento desde 1870. A aprovação da nova lei – Lei Te Awa Tupua (Ata de Liquidação de Reivindicações do Rio Whanganui) – veio reforçar a conexão espiritual entre a tribo nativa e o seu querido rio ancestral. A partir dessa alteração legislativa, o rio passa a ser entendido como “um ser vivo único que vai das montanhas ao mar, incorporando seus afluentes e todos os seus componentes físicos e metafísicos”. Com este novo estatuto legal, os superiores interesses do rio Whanganui poderão ser defendidos por um advogado indicado pela tribo maori e outro pelo Governo. O objectivo primordial deste reconhecimento passa, sobretudo, pela sua conservação. Em termos legais, o rio passa a ter direitos equiparados aos seres humanos. Já em 2014, a Nova Zelândia tinha aprovado a Lei Te Uruwera (de protecção da floresta com o mesmo nome). No final de 2017, os mesmos direitos foram atribuídos ao Monte Taranaki.
Mar Menor – Espanha
A 21 de Setembro de 2022, o Mar Menor – considerado uma das maiores lagoas hipersalinas da Europa – passou também a figurar como uma personalidade jurídica com direitos próprios, após aprovação do Senado espanhol, na sequência de uma campanha e proposta de iniciativa popular. Num passo considerado histórico, no que à conservação dos elementos naturais diz respeito, o Mar Menor foi o primeiro ecossistema localizado na Europa a ostentar esta honrosa classificação, até então, apenas atribuída às pessoas e às empresas. Na Europa, outras iniciativas de protecção semelhantes têm florescido – Mar do Norte (Países Baixos), Rio Loire (França), Rio Ródano (França e Suíça) e uma proposta para a protecção da natureza em geral, em Derry (Irlanda do Norte).
O frágil ecossistema do Mar Menor encontra-se fortemente ameaçado pelo grande desenvolvimento urbano e pela sobreexploração agrícola da região de Múrcia, que descarrega na lagoa centenas de toneladas de nitratos de fertilizantes. Neste novo enquadramento legal, a protecção, governança e representação da lagoa será partilhada por um trio de guardiães – um Comité Científico, um Comité de Representantes e uma Comissão de Acompanhamento.
Apesar de classificada pelas Nações Unidas como “Zona Especialmente Protegida de Importância para o Mediterrâneo”, a lagoa do Mar Menor debate-se com graves problemas de poluição. Segundo refere a página da campanha em defesa da lagoa (que conseguiu recolher 600 mil assinaturas), num dos aquíferos que comunicam com a mesma, estão acumuladas 300 mil toneladas de nitratos. Nos últimos anos, o Mar Menor, passou de local de eleição de férias de sonho, para um depósito de peixes mortos, infestado por uma grande quantidade de algas.
Rio Atrato e Rio Amazonas – Colômbia
Na sequência de uma acção legal apresentada por vários povos indígenas, o Supremo Tribunal da Colômbia, numa sentença histórica proferida no ano 2016, reconheceu o rio Atrato, a sua bacia e todos os seus afluentes, como uma entidade com direito a protecção, manutenção e restauração, compartilhadas pelas comunidades étnicas locais e pelo Estado. Dizer que, esta região apesar da sua enorme diversidade cultural e natural, tem sofrido fortes impactes resultantes das explorações mineiras e florestais. O Tribunal considerou que o Governo colombiano foi responsável pelas “violações do direito à vida, saúde, água, segurança alimentar, ao meio ambiente saudável, bem como os direitos culturais e territoriais das comunidades étnicas reclamantes por não tomar medidas efectivas para impedir mineração ilegal ao redor do rio Atrato.” Em 2018, idênticos direitos legais foram atribuídos ao Amazonas – o maior rio do mundo – que, além da Colômbia, atravessa o Perú e o Brasil.
Equador e Bolívia
O Equador consagrou os direitos da natureza na nova Constituição de 2008, tendo sido determinante para este desfecho, a mobilização de dois cidadãos estrangeiros, que denunciaram ao tribunal a violação dos direitos da natureza e exigiram a protecção do rio Vilcabamba, afectado pela construção de uma auto-estrada. Tempos antes, o Tribunal Constitucional do país tinha travado um projecto mineiro na floresta de Los Cedros (agora classificada como Reserva Biológica de los Cedros), com um claro argumento – aquele ecossistema tinha direito a existir. Simples assim. À semelhança do Equador, a Bolívia seguiu o mesmo caminho, decorria o ano 2011.
Uganda
O Uganda aprovou em 2019 a Lei Nacional do Meio Ambiente, que atribui direitos aos entes naturais, nomeadamente, o direito de existir, persistir, manter e regenerar seus ciclos vitais; o direito de uma pessoa intentar uma acção em tribunal competente por qualquer violação dos direitos da natureza e a obrigatoriedade de o Governo aplicar medidas de precaução e restrição em todas as actividades que possam levar à extinção de espécies, à destruição dos ecossistemas ou à alteração permanente dos ciclos naturais. Foi também criada uma “polícia ambiental” especial.
Índia e Bangladesh
Na Índia, em Março de 2017, o Supremo Tribunal de Uttarakhand tomou a seguinte decisão: os rios Ganges (o mais poluído do mundo) e Yamuna e todos os seus afluentes e córregos foram declarados como pessoas jurídicas com mesmo estatuto de uma pessoa colectiva com todos os direitos, deveres e responsabilidades correspondentes aos de uma pessoa viva. Objectivo: preservar e conservar estes rios, muito importantes para a população indiana, para a sua saúde e o seu bem-estar.
Em 2019, o vizinho Bangladesh, tornou-se o primeiro país a declarar todos os seus rios como pessoa jurídica, atribuindo-lhes os mesmos direitos.
França
A 5 de Abril de 2019, em França, foi proclamada a “Déclaration des Droits de l’Arbre”, que se refere às árvores, como seres vivos, que precisavam de protecção jurídica própria, tendo direito a desenvolverem-se e a reproduzirem-se livremente, cabendo-lhes um papel fundamental no equilíbrio ecológico do planeta.
Esta protecção especial é ainda extensiva aquelas árvores que, pela sua história, idade ou aparência, são consideradas “notáveis” e verdadeiros “monumentos naturais”.
Canadá
O rio Magpie é conhecido mundialmente pelos praticantes de rafting e considerado sagrado para a Primeira Nação Innu, a comunidade nativa que habita as suas margens, usando-o como via de transporte de mercadorias, fonte de alimentos e até como farmácia natural. A construção de barragens hidroeléctricas estava a colocar em causa o modo de vida daquelas populações, com graves danos sociais e ambientais, muitas vezes superiores aos benefícios resultantes da produção de energia renovável. A recente atribuição de personalidade jurídica ao rio servirá de escudo de protecção para estas comunidades. Desde 2021 que o rio Magpie tem direito a manter a biodiversidade, fluir (livre de barragens), estar livre de poluição e a processar quem o destruir.
Estados Unidos
Klamath – o rio que se espraia entre o sul do Oregon e o norte da Califórnia – está, actualmente, protegido pelo Acordo de Restauração da Bacia do Klamath, assinado entre as comunidades locais e o Governo. Mas nem sempre assim foi. Durante décadas, a qualidade das suas águas viu-se afectada pela construção de várias barragens, represas e desvios de água.
Também na Flórida, os guardiões do lago Mary Jane entraram recentemente com um processo no tribunal estadual para defender os direitos do lago contra a invasão humana.
Mudar o presente, melhorar o futuro
Nova Zelândia, Espanha, Equador, Bolívia, Colômbia, Uganda, Índia, Bangladesh, França, Canadá, Estados Unidos…
Graças a estas medidas de protecção excepcionais, simples actividades, tais como, desfrutar de uma viagem de canoa maori nas límpidas águas do rio Whanganui ou praticar rafting nos rápidos do rio Magpie, continuarão a ser uma realidade.
Acreditamos ser possível que, no futuro, outros exemplos se possam seguir…
Para quando a atribuição de “personalidade jurídica” ao Parque Nacional da Peneda-Gerês e respectiva zona tampão abrangida pela Reserva da Biosfera Transfronteiriça do Gerês-Xurés, tendo em vista uma maior protecção da sua biodiversidade e dos usos, costumes e modo de vida das comunidades locais? Fica o repto! A recente criação da Comissão de Cogestão não se me afigura suficiente para uma efectiva protecção do único Parque Nacional português. É preciso ir mais longe.
Urge um novo olhar sobre a mãe terra – mais protecção, menos exploração!
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico