A grande viagem da água

É do senso comum – a água é um recurso natural estratégico e escasso, que deve ser utilizado de forma sustentável.
Desprovida de sabor, de cor e de odor, a água é a bebida mais consumida no mundo, desde os primórdios da humanidade. Talvez por ser gratuita em alguns locais, barata noutros, ou talvez nem seja por nada disso…
A falta de água, que era motivo capaz de reunir os povos antigos, em locais sagrados, entre rezas e clamores, para pedirem chuva é, para o povo de hoje, fonte de lamentos na solidão das redes sociais.
A água, purificadora dos pecados na religião cristã que, pela mão de João Baptista, baptizou Jesus nas margens do Rio Jordão – esse rio que corre hoje com menor intensidade, também ele vítima das disputas territoriais do conflito israelo-palestiniano, dos desvios de água, da constante poluição e das consequências das alterações climáticas – é a mesma água que circula no Ganges, o sagrado rio dos hindus, que terá tanto de sagrado como de poluído, sendo mesmo o mais contaminado do mundo. Os crentes hinduístas acreditam que ao se banharem nas suas águas durante o festival de Maha Kumbh Mela, ficarão livres dos seus pecados. O Ganges é, per se, o expoente máximo de rio sagrado. Sagrado na vida e sagrado na morte. Um rio onde se banham os vivos e se lançam os mortos, cremados em balsas. Um rio que serve de última morada aos mortos humanos, mas também é o destino final de vacas sagradas. E, a água do Ganges, tudo leva, em direcção ao mar…

Além da simbologia para a religião cristã e para o hinduísmo, a transversalidade espiritual da água tem um significado ímpar entre os elementos do Universo. Tanto está presente nas fontes das mesquitas islâmicas, como no ritual judaico da lavagem das mãos; tanto está nas ofertas aos Orixás das religiões afro-brasileiras, como no copo de água fresca oferecida ao Gohonzon (supremo objecto de adoração budista). Para as religiões indígenas, a água é o espírito que concede o dom da vida a todos os outros seres.
A água, que era vista como um precioso líquido sagrado por muitas religiões e civilizações ancestrais, alimenta hoje grandes indústrias alimentares ligadas à agricultura e à pecuária.
Grandes personalidades da Antiguidade Clássica (Galeno, Plínio – o Velho e Hipócrates, entre outros), fizeram referência, nos seus escritos, sobre quais seriam as melhores águas e a sua influência na saúde humana. Importa ressalvar que, naquela época, já havia uma preocupação acrescida com a contaminação provocada pelos canos de chumbo.
Por mais voltas que dê, a água, que corre por regos, regatos, ribeiros e rios, é sempre a mesma água.
A água, que alimentou as termas por todo o império Romano, onde imperadores se banharam, relaxaram o corpo e revitalizaram a alma – onde em muitos desses “banhos públicos” se podia ler – “Sanus per aquam” – a inscrição romana que significa “a saúde pela água”, que deu origem à sigla moderna dos “SPA’s” – corria, lado a lado, com a água dos grandes aquedutos do império e era a mesma água que os incas encanaram em sustentáveis sistemas de irrigação através das terras áridas do Perú. A água que os egípcios armazenavam para uso em períodos mais secos, aproveitando as enchentes do Nilo, era a mesma que os árabes traziam à superfície através de sistemas elevatórios movidos por animais ou pela mão humana.
A água, que noutros tempos movia rudimentares azenhas, moinhos, picotas e noras, move hoje modernas e sofisticadas turbinas, donde sai uma parte considerável da electricidade que faz andar o mundo.

A água, que no século XIII passou pelos canos de chumbo da “Great Conduit”, desde o rio Tyburn até à grande cidade de Londres, mais não era que a “outra água” que saía de Roma em direcção ao rio Tibre, pela “Cloaca Máxima” – um dos maiores e mais antigos sistemas de esgoto do mundo.
A água é vida e, num ciclo infinito, retorna sempre ao lugar onde nasceu. E, numa espécie de desafio ao provérbio popular, passa duas e até mais vezes, debaixo da mesma ponte.
A água, que sob a forma de nevoeiro alimentou o mito de D. Sebastião, que tarda em chegar de Alcácer Quibir, assim como tarda a chegada de melhores dias que façam esquecer a actual crise mundial, mais não é que a que enche a imensidão dos oceanos ou goteja na torneira da aldeia mais recôndita.
Ora transformada em gelo cristalino, ora em bruma da manhã, a água é delícia de fotógrafos e musa inspiradora de artistas e poetas.
A água, sempre a mesma água – esse elemento natural e vital que, corre, corre sem parar, num ciclo infindável – sobre a qual Victor Hugo escreveu: “A água que não corre forma um pântano, tal como a mente que não trabalha forma um tolo.”! E nós, como não somos, nem queremos ser, uns tolos aprisionados em mentes estáticas e insensíveis, precisamos trabalhar no sentido de encontrarmos novas formas de rentabilização e poupança de água, pois, a acção enérgica de hoje, garantirá o futuro, amanhã!

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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