A Revolução das Necessidades

Joana Gaspar, Presidente da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses

Antes da madrugada que esperávamos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) estava dedicado a defender os objetivos do Estado Novo. Era um lugar fechado exclusivamente para uma elite masculina, nascida e criada perto dos centros de poder, uniforme na sua educação e um pouco alheia ao que se passava fora das portas do Palácio das Necessidades.
Depois, Abril abriu aquelas portas. E, por elas, entrou um corpo diplomático democrático — que incluiu pela primeira vez mulheres, às quais a ditadura havia impedido o acesso. Ali, nos mesmos salões onde outrora viveu a família real; pelas mesmas salas que serviram de escritório a Salazar durante a Segunda Guerra Mundial; nos corredores decorados com retratos a óleo de figuras do nosso passado nacional, cruzam-se hoje homens e mulheres, oriundos de várias partes do país, de origens familiares diversas, licenciados, mestres, doutorados — muitos deles, os primeiros das suas famílias a ter o privilégio de frequentar uma universidade.

Os diplomatas portugueses de hoje sabem que a defesa do interesse nacional não é feita apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos e demais instrumentos multilaterais — pelo contrário, os diplomatas portugueses estão conscientes de que uma coisa e as outras coincidem. Por isso, honram e celebram o nome de Aristides de Sousa Mendes, vítima de ter defendido as causas certas na altura errada.

Em suma, os diplomatas portugueses de hoje são diplomatas de Abril.

Com o 25 de Abril de 1974, Portugal abriu-se ao mundo — e a forma como o mundo nos recebeu é prova de sucesso. Do isolamento e litígio no seio das Nações Unidas, Portugal passou para ter como Secretário-Geral daquela organização um dos seus. De potência colonial, Portugal passou para parceiro entre iguais no espaço da lusofonia, tendo sido essencial para que a ele se juntasse uma nova nação, Timor. De país virado de costas para a Europa, da qual desconfiava, Portugal e os portugueses passaram a ser dos maiores defensores da União Europeia. De pátria que fazia por esquecer as suas Comunidades espalhadas pelo mundo, Portugal passou a defendê-las, celebrá-las e servi-las.

O que nem sempre é dito é que, por trás de todos os feitos listados no parágrafo anterior, e também por trás dos agentes políticos que aparecem na primeira linha para dar a cara por eles, estiveram e estão centenas de diplomatas portugueses que trabalham com sentido de missão e muitas vezes sacrifício pessoal.

Por trás do lado brilhante, existe a penumbra do trabalho diplomático em nome de Portugal que sucessivos governos tendem a esquecer, mesmo que para ele sejam sucessivamente alertados. Esse é o lado dos diplomatas que se separam das suas famílias para servir o país no estrangeiro; dos diplomatas cujos lares contam apenas com um salário porque os cônjuges não conseguem ter uma carreira estável; dos diplomatas que se desdobram em funções políticas, consulares, económicas, culturais, administrativas e domésticas para suprir a falta de recursos das representações diplomáticas no exterior.

Apesar de terem sido parte integrante na modernização do país, nem sempre os vários governos reconhecem os diplomatas e o seu valor. A última revisão da tabela salarial data de 1998 — há já 26 anos, que é o mesmo que dizer depois de 12 governos, 7 primeiros-ministros e 11 ministros dos Negócios Estrangeiros. Desde então, e ao contrário do que tem acontecido justamente com outras carreiras especiais da função pública, os diplomatas portugueses continuam no mesmo lugar.

Em 26 anos, muito se alterou no mundo, na diplomacia e na Administração Pública. O mundo em 2024 é muito diferente do de 1998: o fim da guerra fria não trouxe a paz eterna entre as Nações e os conflitos multiplicam-se pelas regiões do mundo, quanto ao objeto e aos atores envolvidos; a afirmação internacional de Portugal e o seu papel na União Europeia, na NATO, na CPLP e junto das Comunidades Portuguesas no exterior são afetados por estas mudanças e exigem uma cada vez maior presença e intervenção na cena internacional; as exigências e solicitações dirigidas aos postos diplomáticos no exterior não cessam de aumentar. Num mundo em convulsão, não basta participar em reuniões online — é necessário estar nos sítios, com condições e propósito.

A falta de atenção à carreira diplomática levou a uma degradação extrema das condições de trabalho dos diplomatas em geral, e das condições salariais em específico, tornando esta revisão inadiável. Neste momento, a carreira diplomática portuguesa já tem dificuldade em atrair os melhores talentos, que não se sujeitam hoje a um trabalho em exclusividade rigorosa quando os seus salários de entrada não chegam para suportar os encargos com a habitação. No topo da carreira, um embaixador finaliza 40 anos de serviço ao país, a maioria dos quais passados no estrangeiro, sem o reconhecimento dessa dedicação de uma vida. Na véspera de assinalarmos os 50 anos do 25 de Abril, corrigir este erro sem paralelo não pode deixar de ser uma prioridade numa democracia consolidada e aberta ao mundo.
A um diplomata português importa conhecer o mundo, mas exige-se acima de tudo que conheça o País que representa. Cumprir esse dever é tão possível quanto o próprio Corpo Diplomático for um grupo heterogéneo de pessoas, nas suas origens e percursos, que espelhe também ele o Portugal de hoje. Para garantir esse desígnio, reconhecer o valor dos diplomatas é um gesto igualmente simbólico e prático — como foi abrir as portas que julgávamos fechadas para sempre.

Joana Gaspar Presidente da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses

1 Comentário

  • Ana Martinho
    1 mês ago Publicar uma Resposta

    Bravo Joana retrato perfeito ao mesmo tempo apaixonado e objectivo de uma realidade que vivo e conheço tao bem por dentro . Razoes para continuar , para mudar , para conseguir .Obrigada!

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