O tangível na diplomacia

Pátio da Embaixada de Portugal em Pequim – 31 de março de 2020

Quando nos aproximamos do fim duma carreira e estamos já no nosso último ou penúltimo posto, como é o meu caso, julgo que de uma forma ou de outra nos aflorará não só a questão sobre o desconhecido estádio que se segue, mas também a pessoana interrogação de se terá valido a pena. Longe de ser um elemento de crise existencial pela transição para uma vida à partida menos ativa, a questão que nos colocamos prende-se acima de tudo com o balanço e o sentido de utilidade do que fizemos ao longo de toda uma vida profissional. O que nos preencheu e motivou, o que nos deu rumo e objetivo, ou seja, aquilo que verdadeiramente terá valido a pena. Podemos entrar neste exercício numa lógica puramente egocêntrica, e vermos se atingimos, e quando, os cargos, as promoções e os Postos de prestígio, com quem nos cruzámos e, sem suma, que reconhecimento obtivemos dos nossos pares e das nossas hierarquias.
Contudo, se nos ativermos unicamente a esta parte da equação, estaremos a fazer um exercício algo redutor já que para além dos elementos egocêntricos, inevitavelmente associados à natureza humana, é-nos fundamental ver não só o que obtivemos da carreira, mas também aquilo que de concreto, de real, em suma de tangível, demos como nosso contributo numa vida inteira dedicada ao serviço público. Cumprir zelosamente instruções recebidas, analisar bem e escrever ainda melhor, propor medidas e ações que beneficiem os interesses nacionais, representar de modo digno o nosso país, ter capacidade de ouvir os interlocutores, ter genuína curiosidade cultural pela diferença e sentir-se nela confortável são alguns dos elementos que compõem o quotidiano dos diplomatas, os quais, fazendo parte duma carreira competitiva e de estrutura piramidal, tentarão alcançar simultaneamente, umas vezes com mais e outras vezes com menos sucesso, a naturalidade e a excelência em cada uma destas diferentes facetas. Sendo parte da minha corporação eu não fujo a este modelo embora me venha apercebendo cada vez com maior nitidez que por muito gratificante que tenha sido um posto, aquilo que mais retenho na memória não são os telegramas mais bem elaborados, as instruções zelosamente cumpridas ou as propostas mobilizadoras que terei enviado às minhas autoridades.
Curiosamente, ou não, aquilo que efetivamente mais me tem marcado é ter tido a possibilidade, ou não, de através da minha ação ter contribuído para algo de muito concreto que tenha feito a diferença para os portugueses, uma espécie de “Diplomacia do Tangível”, aquilo que fica de concreto depois de todos os papéis, de todos os telefonemas, de todos os contactos e de todas as ações.

Confirmando o material recebido e os destinatários do mesmo – 1 de abril de 2020
Diplomatas e técnicos especializados empilhando as caixas de material a enviar para Portugal – 1 de abril de 2020

No entanto, por muito que se tente alcançar esse ponto cimeiro do trabalho diplomático, há que ter consciência que tal não depende unicamente do esforço e da determinação do diplomata, mas sim da simbiose destes dois fatores com as circunstâncias que surgem por vezes, mas não sempre, no posto onde se está colocado.
Ora, dos vários postos por onde passei, há uma situação em particular onde por casualidade se reuniram todas as condições para que eu trabalhasse numa diplomacia que almejava resultados muito concretos e tangíveis. Foi quando em março de 2020 Portugal começou a ter de assistir os milhares de pessoas que tinham sido contagiadas com Covid-19 e, tal como os restantes países europeus, não dispunha de stocks suficientes de material médico-hospitalar para equipar pessoal clínico, testar e assistir os pacientes. Nessa altura eu estava na China, país não só de onde tinha vindo o vírus da nova pandemia, mas também onde se produzia e abastecia o mundo inteiro com máscaras médicas, ventiladores, zaragatoas nasais e bocais, fatos médicos descartáveis entre muitos outros produtos do género. Precisamente por isso, todos os países que tinham recursos para tal foram-se abastecer ao maior produtor mundial dos bens que todos agora necessitavam em situações dramáticas e com a máxima urgência para assistir as suas populações.
Todas as Embaixadas ocidentais em Pequim, incluindo a de Portugal, viram-se assim envolvidas num processo de procura, negociação, compra, armazenamento e expedição para os seus países de origem de todo o material que conseguissem obter para salvar vidas.
Do nosso lado, tudo começou com umas reuniões de coordenação por telefone primeiro com o Secretário de Estado da Internacionalização que rapidamente se alargaram a vários membros do governo de então, vindo-se rapidamente a transformar para a Embaixada num processo sem paralelo no passado pela escala da operação em que fomos envolvidos, sem preparação prévia nem conhecimento especialmente relevante do mercado dos materiais médico-hospitalares na China.

Reunião no espaço exterior da Embaixada com fornecedores chineses de material médico-hospitalar
Material médico-hospitalar a ser expedido para Portugal por aviões fretados à TAP – Aeroporto de Pequim

Apesar desse ponto de partida, tínhamos de corresponder uma por uma, e sem falhas, às centenas de encomendas vindas das mais diversas entidades de Portugal. A Embaixada abandonou praticamente por completo de março a junho de 2020 o seu trabalho tradicional quotidiano e o nosso único objetivo era encontrar primeiro que os nossos concorrentes os materiais que necessitávamos, comprá-los, passar pelo complexo processo das alfandegas chinesas e expedi-los por aviões fretados em Portugal com autonomia suficiente para não fazerem escalas entre Pequim e Lisboa, para não correrem riscos de ver o material transportado requisitado num aeroporto de escala como aconteceu a outros países. A Embaixada tornou-se num aparatoso centro de logística com a receção e expedição de milhares de toneladas de material médico-hospitalar.
Quando em julho de 2020 demos a operação por concluída e regressamos ao nosso trabalho habitual de reporte e análise foi com a mais plena sensação de que toda a equipa da Embaixada, com a exemplar coordenação e comando feitos a partir de Lisboa, tinha conseguido algo que nos tinha mobilizado até ao extremo, mas que nos tinha dado o privilégio dum sentimento de plena e inquestionável utilidade do que tínhamos feito. Isto só foi possível pela abnegação de todos em Lisboa e Pequim, mas se em Lisboa eu tinha hierarquias e por isso não me compete aqui elogiá-las, já em Pequim eu tinha colegas que dependiam da minha orientação e sem cujo trabalho exemplar nada teria tido sido alcançado como o foi, daí o meu eterno agradecimento aos que comigo dia a dia me ajudaram a ter um dos momentos mais gratificantes duma carreira de mais de 30 anos. Aos meus queridos colegas João Martins de Carvalho, João Falardo, Henrique Antão, Eunice Vasco, Gustavo Gravelho e Filipe Sequeira.

José Augusto Duarte Embaixador de Portugal em França

Deixe um Comentário

Your email address will not be published.

Start typing and press Enter to search