Bayingyis, os lusodescendentes de Myanmar

Esquecidos estavam, esquecidos continuam – II Parte

O LEGADO DE FILIPE DE BRITO

Gerir os destinos da feitoria do Sirião foi a recompensa obtida pela participação de Brito (ao serviço do soberano de Arracão, reino situado na costa do golfo de Bengala) na conquista do Pegu, facto histórico que viria a ser retratado num mural de um relicário contíguo ao templo Ananda, na cidade de Bagan, e que nos mostra Brito e companheiros a bordo de juncos.
No entanto, o militar português, insatisfeito com o seu quinhão, da feitoria fez fortaleza – “começando no ano de 1599 por uma tranqueira de madeira, no ano de 1602 o fez de pedra e com muita artilharia e munições a pôs em estado para se poder defender de todos os inimigos”, como escreve o cronista Bocarro – e, em revolta aberta contra Arracão, não só se assenhorou da zona do delta e da sua população, como tentou apoderar-se dos portos de mar de Cosmim e Martavão, locais onde projectara erguer fortalezas. Assegurar a posse dessa zona estratégica equivalia à possibilidade de controlar toda a região, como, de facto, o fizeram os portugueses. Filipe de Brito soube conquistar também a simpatia dos soberanos de etnia mon; preocupando-se em povoar as terras ermas, ofereceu-as depois, isentas de impostos, aos habitantes. Assim, em redor da fortaleza foi crescendo a povoação. Em Outubro de 1602, haveria no Sirião, sob guarida portuguesa, entre catorze a quinze mil pessoas.
Originários de uma região que se estende ao longo do golfo de Martavão, delimitada a leste por uma cadeia montanhosa, os mon acabariam, ao longo da sua história, por ser absorvidos pelos povos vizinhos, fossem eles birmanes ou siameses. Porém, curiosamente, não só a cultura mon sobreviveria a toda essa absorção, como acabaria por moldar a dos povos invasores. Foi de Thaton, antiga capital mon, que partiu o budismo para, em Bagan, se tornar a religião do império.
Fiel a uma estratégia previamente delineada, e uma vez assegurada a aliança com os mon, Filipe de Brito de Nicote tratou logo de estabelecer parceria com Nat shin Naung, rei do Tangu, familiar e rival do de Ava, pois pretendia utilizar esse reino como trampolim para o interior, de onde sabia virem as riquezas que se comerciavam nos portos do Pegu, em Arracão e na costa sul. Situado na zona limítrofe entre a Baixa e a Alta Birmânia, o reino de Tangu constituía um empecilho aos desejos de domínio do rei de Ava, que tencionava avançar também sobre o Sirião. A relação de Brito com Nat Shin Naung era de tal forma próxima que, alegadamente, este ter-se-ia convertido ao cristianismo, chegando mesmo a receber o baptismo. Uns consideravam-nos “irmãos de sangue”; outros, simples cunhados, pois Brito de Nicote viria a casar-se com a irmã do birmanês, que, depois de convertida, adoptaria o nome de dona Maria de Saldanha.

Verdadeiro “lançado”, senhor do seu destino, Filipe de Brito sonhava com a criação de um estado equivalente ao Estado da Índia, mas no Sudeste asiático. O reino de Ava, porém, antecipou-se, ocupando Tangu em 1609. Por solicitação do cunhado destronado, Brito marchou sobre a cidade, resgatou Nat Shin Naung, fez o devido saque e refugiou-se em Sirião. Furibundo, Anauk-hpet-lung, rei de Ava, retaliaria, conquistando, após prolongado cerco, o estabelecimento português em 1613 e pondo assim fim ao reinado do capitão. Acusados de corruptores da religião, os dois amigos morreriam por ordem de Anauk-hpet-lung nesse mesmo ano. A Nat Shin Naung, abriram-lhe o peito; ao português coube a cruel morte por empalação, tendo passado “três dias em agonia antes de perecer”, como relatam as crónicas da época.
Faria de Sousa conta-nos que não era intenção inicial do monarca avanês poupar a vida aos habitantes de sirião, mas que, “depois de acalmado, decidiu enviá-los para norte, para Ava, como escravos”. Um trajecto de mais de setecentos quilómetros, percorrido a pé pelos seguidores de Filipe de Brito, que, nas palavras do cronista, “eram constituídos por portugueses, euro-asiáticos, negros e malabares”. Totalizavam alguns milhares, entre os quais apenas quatrocentos seriam inteiramente portugueses.
Este quantitativo é, no entanto, fortemente contestado por quem se debruça com mais atenção sobre o tema em causa. Ao que consta, o número de portugueses seria bem mais elevado, sendo que, nessa sua penosa jornada, tiveram o apoio moral e a companhia dos franciscanos Gonçalo Machado e Manuel da Fonseca. este último terá enviado uma carta, datada de 26 de Dezembro de 1616, ao vice-rei de Goa, relatando as dificuldades pelas quais passaram os prisioneiros nessa jornada.
Em 1635, partiria para Ava o dominicano e lisboeta Agostinho de Jesus, ao saber que ali se encontravam quatro mil cativos, desprovidos de qualquer assistência espiritual. A esse respeito, relatam as crónicas o seguinte: “Se pôs a caminho daquela cidade, em que gastou três meses pela Ganga acima, sujeitando-se ao rigor da mesma prisão por acompanhar os cristãos nos seus trabalhos, administrar-lhes a consolação de que careciam, e com eles esteve cumprindo no mesmo trabalho muitos anos, nos que ia também tirou da sua cegueira a muitos gentios, e conseguida a liberdade passou aos reinos de Bengala.”
A comunidade cristã ter-se-ia entretanto multiplicado. Para prevenir uma proliferação excessiva, o rei Tahlun Min, irmão de Anauk-hpet-lung, entretanto assassinado pelo próprio filho, seleccionara os mais dotados na arte bélica e integrara-os na sua guarda pessoal, exilando os restantes para a povoação de Preinma, na margem leste do rio Chindwin, afluente do Irrauadi. Daí, seriam enviados para o vale do Mu, onde fundaram oito aldeias, sendo autorizados a praticar livremente o seu culto. Trabalhavam as terras livres de impostos, sendo requisitados para o exército em tempo de guerra.

A semelhança fisionómica entre um bayingyi e uma portuguesa é bastante óbvia. © Joaquim Magalhães de Castro

O cronista António Bocarro refere, a propósito, que “ficaram cativos d’el rei e foram postos em aldeias ou espalhados pelo reino. Como cativos eram invioláveis, padecendo o único mal de não poderem sair do país”. Incorporados em unidades militares hereditárias de elite, constituíram até ao fim do século XVII a base da artilharia do II império Tangu.
Mas Agostinho de Jesus e Gonçalo Machado foram excepção à regra, pois o Estado da Índia ignorou sempre os insistentes apelos no sentido de serem enviados padres para o interior, ficando a comunidade irremediavelmente abandonada à sua sorte durante quase meio século. Seriam os padres barnabitas italianos quem colmataria a lacuna e estruturaria o catolicismo, fundando escolas, onde se ensinava, para além do português, o latim e o italiano. No processo, criaram tipografias, onde eram impressas gramáticas, compêndios de história e dicionários, entre os quais um dicionário de latim-português-birmanês, ao mesmo tempo que faziam constantes pedidos para que da Europa lhes enviassem livros em português. Graças aos barnabitas, a nossa língua foi uma realidade na Birmânia até ao final do século XIX, tendo, a partir de então, caído no total esquecimento. Sabe-se também que os portugueses continuaram a gozar de um estatuto privilegiado junto da corte de Ava, graças a relatos de enviados europeus, que, por exemplo, mencionavam a presença do armador Simão de Vargas, “que falava fluentemente o birmanês e o siamês”, e de António Camarata, chefe da guarda-real, que “tinha autorização para andar armado na presença do rei”. Fruto do trabalho dos barnabitas, são recordados ainda hoje ilustres filhos da terra, como Ambrósio de Rosário, que em Roma foi cirurgião reputado; ou o padre George d’Cruz, responsável pela construção de um colégio e uma tipografia em Cosmim; ou ainda Inácio de Brito, o primeiro barnabita birmanês, poliglota, médico, escritor e, sobretudo, músico. Foram inúmeros os hinos religiosos que compôs e que até muito recentemente se cantavam, em português, nas igrejas de todo o país.
Figura quase mítica, Filipe de Brito passaria para os anais portugueses e birmanes (onde surge sob a designação Nga Zinga ou Kala) ora como herói, ora como traidor. O retrato pela negativa deve-se, quase sempre, ao seu procedimento hostil em relação ao culto oficial do império birmane. No pagode de Maha Kalyani, na cidade de Bago (antiga Pegu), por exemplo, existe ainda uma sala de ordenação construída em 1476 e que, em 1599, durante o ataque à cidade, o capitão português mandou queimar. Esta foi a primeira de outras quatro centenas de salas de ordenação similares disseminadas por todo o país, com base em cópias de plantas trazidas do Ceilão.
Se era conflituosa a relação de Brito com a hierarquia budista, com a cristã revelou-se cordialíssima, representada aqui pela Companhia de Jesus, junto da qual o renegado gozava de grande prestígio, pois dera aos religiosos terra numa das ilhas do delta. Chegariam posteriormente dominicanos, agostinhos e franciscanos. O comportamento de ambas as partes – capitão e missionários – interferiria irremediavelmente na vida da região, do país e até na política seguida pelo Estado da Índia, de modo que este não só reconheceu os feitos do capitão, como encorajou pobres, renegados e aventureiros a procurarem refúgio em sirião. Nesse contexto, Filipe de Brito mandou erguer no interior da fortaleza a igreja de Nossa Senhora do Monte, acerca da qual existem raros registos, mas que se sabe ter sido incendiada pelos exércitos conjuntos de Arracão e de Tangu, a 11 de Abril de 1607.

Com a derrocada do feudo do português, o catolicismo sofreu um enorme revés, tendo a perpetuação do culto ficado entregue a religiosos goeses, que não sabiam birmanês e apenas pregavam em português-patuá, facto que só os hostilizava junto da população. Os primeiros missionários europeus que regressaram ao Sirião – dois franceses, em 1689 – ainda chegaram a abrir um dispensário, mas, acusados de espionagem, foram afogados no Irrauadi. A imagem dos representantes do clero que entretanto ali se mantinham, sob a supervisão da diocese de Madras, na Índia, não era a melhor, pelo menos se dermos credibilidade a relatos como o que se segue, feito por um navegador inglês do início do século XVIII eivado do puritanismo que caracterizava esse povo: “Há aqui cristãos de origem portuguesa e alguns arménios. Os portugueses possuem uma igreja, mas as vidas escandalosas que os padres levam tornam-nos desprezíveis aos olhos do povo.”
Os bayingyis de hoje constituem uma das várias comunidades católicas minoritárias (a maioria delas de origem portuguesa) que podemos encontrar do norte ao sul, do leste ao oeste desse enorme país maioritariamente budista que é o Myanmar, a antiga Birmânia. Os bayingyis habitam treze aldeias no norte do país, disseminadas por uma vasta planície entre os rios Chindwin e Mu, e subsistem sobretudo da agricultura. Distinguem-se dos restantes birmaneses pelos seus óbvios traços caucasianos – narizes proeminentes, olhos claros e profundos, maior pelugem no corpo, etc. –, muito embora tenham desaparecido o uso do português e os seus nomes e apelidos tenham desaparecido (subsistem, estes últimos, nas placas funerárias e nos registos paroquiais). A prática do catolicismo é, sem dúvida, o traço mais distintivo dos bayingyis. Seguem o calendário litúrgico, praticam muitas das nossas tradições e mantêm aceso um enorme orgulho das suas raízes portuguesas.
De facto, como se comprova pelo cobarde silêncio que por aí paira, não os merecemos.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

I Parte

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