Borralha
A mina que nunca fechou

A exploração de volfrâmio nas Minas da Borralha, que durou dezenas de anos, ao longo de grande parte do século passado, deixou atrás de si um pesado legado ambiental, e um rasto de destruição e contaminação. As minas, hoje cobertas de solos estéreis, mato e ferrugem foram deixadas ao abandono, sem quaisquer projectos de recuperação ou planos de mitigação. Sob o chão da Borralha, o chumbo, o arsénio, o cobre, o cádmio, e outros metais pesados, continuam a infiltrar-se nos rios, nos poços, nas entranhas da terra, nas couves da horta. Não sou eu que o digo, são os relatórios de entidades credíveis (LNEG, Universidade do Porto, Universidade de Aveiro), que falam de grande contaminação da região, de graves riscos ambientais, de solos mortos, de problemas para a saúde pública. Mas, como sabemos, os papéis circulam como folhas soltas num vendaval que sopra rápido e ninguém parece disposto a travar. São páginas de um livro amaldiçoado que ninguém quer ler, nem sequer tocar, sob pena de se deixar contaminar. O assunto não é cool. Não é instagramável. Não, não é.
Há quem denuncie, e há quem se cale. E são muitos! Nas Minas da Borralha, as ruínas revelam histórias que o poder instituído tenta apagar. Ao longo dos tempos sempre se invocaram subterfúgios para branquear os erros do passado. Sempre se usaram aprimoradas técnicas de lifting. Há coisas que nunca mudam. Nunca! Vem da práxis ou aprendem-se nos livros, como preferirem.
Num processo marcado por entraves à participação pública das populações e pela opacidade e denegação de acesso à documentação do projecto, o mesmo lá foi andando, entre avanços e recuos, até chegar à actual fase de consulta pública. Pelo meio, diversas manifestações das populações e marchas de tractores contra o projecto, assim como a polémica prospecção realizada pela empresa concessionária em terrenos contaminados, que tanta indignação causou devido à contaminação constante do ar e das águas.
Será isto progresso ou a mera repetição de um erro que sairá caro? É aqui que a contradição ganha corpo. Um sítio reconhecido pela sua singularidade, pela sua paisagem, pelos modos de vida que resistem, estará prestes a ver chegar mais uma mina, mesmo ali, às portas do Parque Nacional Peneda-Gerês. Importa referir que, as consequências de uma mina não se circunscrevem à sua implantação física como querem fazer crer. Toda a sua envolvência, num raio de muitos quilómetros será afectada. Será isto desenvolvimento ou retrocesso? Analisando com clarividência, parece não restarem dúvidas. Se se remexe na ferida antes de estar curada, se se promete futuro à custa de quem não pode escolher, não estamos perante uma escolha, mas uma imposição. E imposições devem ser combatidas.
Vem-me à memória o projecto de recuperação ambiental previsto para as Minas da Borralha, projecto esse, que nunca passou disso mesmo, de um mero projecto prometido. Coexistiu, anos a fio, lado a lado, com o projecto mineiro, para a mesma área de intervenção. Ora, isto é algo surreal para um país de pleno direito da União Europeia, demonstrativo da falta de planeamento estratégico e de uma inenarrável navegação à deriva.
As empresas, essas, candidatam-se a subsídios, prospectam, exploram, abrem falência e abandonam. Depois, regressam com outro nome, outra capa, a mesma conversa, as mesmas intenções, o mesmo modus operandi. Na verdade, as minas nunca fecham; apenas mudam de dono. Especulação, maximização do lucro, destruição – é assim que mineração predatória se repete, num ciclo sem fim.
Há que saber identificar as vãs promessas e as doces mentiras; os benefícios para os “senhores da mina” e os malefícios para o povo. Como sabemos, ao longo do século passado, o volfrâmio serviu para alimentar grandes guerras e consideráveis fortunas. Esta, julgo ser, uma verdade insofismável. E, o que ficou? O que restou? Sem grandes enumerações ou considerandos, no terreno, a realidade fala por si. Não ficou nada.
Todavia, a administração política local, alinhada e embalada pelo discurso do progresso, atribuiu um parecer positivo ao projecto e aplaude, efusivamente, ainda que de forma envergonhada, o regresso da mina. Acena com as promessas do costume: algum desenvolvimento; meia dúzia de eventuais empregos; o regresso de mais movimento à terra (ainda que esventrando uma região Património Agrícola Mundial); e muitos outros chavões de encher o olho. Et voilá, temos o milagre económico de volta às Terras de Barroso. É natural, pois claro. Após décadas de inépcia na criação de políticas de desenvolvimento local para a região, descobriram na mina a tábua de salvação. Até se compreende este modo hábil de terceirizar a incompetência, chamando-lhe progresso, acreditando que esta nova “mina de oportunidades” remediará as carências que a sua própria inoperância política deixou proliferar.
Dias virão, e aí irão perceber, que a verdadeira riqueza da região das Minas da Borralha não estava debaixo da terra. Diga-se, em abono da verdade, que a riqueza sempre ali esteve, à vista de todos, à superfície, nas aldeias que resistem, nas águas cristalinas que se espraiam nos lameiros verdejantes, na preservação das ricas tradições ancestrais, no canto das aves, nas pachorrentas vacas que moldam as inconfundíveis paisagens barrosãs, na dignidade das pessoas que ali persistem.
Enquanto isso não acontece, os habitantes da região das Minas da Borralha continuam a acreditar e a esperar por um Eldorado barrosão que será tudo menos brilhante. Muitos deles falam baixo, retraídos, porque o silêncio, na região, é entendido como moeda de troca, de sobrevivência e até de subserviência. Mas, há silêncios que se pagam caros. Há medos que aprisionam. Aliás, Portugal, no seu todo, nunca se libertou do medo. Do medo de falar, do medo de agir, do medo de ser visto, do medo de ser apontado na rua, do medo de perder o emprego, do medo de perder o subsídio, do medo do que os outros vão dizer ou pensar, do medo da própria sombra, do medo de ter medo.
Como se a liberdade de expressão fosse coarctada numa espécie de exercício de auto-silenciamento imposto. É cultural. Os resquícios do antigo regime ainda subsistem inculcados por aí como sombras inibidoras da expressão da vontade e da liberdade. Nas Minas da Borralha, o medo de contrariar a posição favorável da Câmara à mineração é maior que o medo de ter uma mina à porta de casa. Nos corredores do poder, as minas são um não-assunto. Nada se sabe, nada se viu, nada se ouviu. Por seu lado, os técnicos pagos pela empresa concessionária vão alegando que não há risco e as Minas da Borralha transformar-se-ão numa espécie de País das Maravilhas. Sim, esse mesmo, o da Alice. Pudera! No círculo do poder político não vislumbra qualquer modelo de desenvolvimento alternativo à mina. Nas alternativas não há políticos. E o povo, esse, continuará encurralado, com a vida e o futuro em suspenso, entre os políticos sem alternativas e as alternativas sem políticos.
A mina de volfrâmio da Borralha não é um caso isolado. Longe disso. Há a mina de lítio do Romano, na freguesia de Morgade (Montalegre); a mina de lítio do Barroso, na freguesia de Covas de Barroso (Boticas); e muitas outras nestes e noutros concelhos deste pequeno país à beira-mar plantado. É o espelho de um modelo de desenvolvimento que continua a colocar o lucro acima do bem comum, um modelo que promove a mineração em regiões frágeis, depauperadas, despovoadas e com manifesta falta de capacidade de defesa política. A retórica do “progresso” serve de cortina de fumo para práticas que ignoram a sustentabilidade, a justiça ambiental e a proteção das populações locais.
Portugal precisa de decidir se quer continuar a explorar os seus recursos naturais de forma predatória ou se quer construir um futuro assente na integridade do território e na qualidade de vida das suas comunidades. No caso da Borralha, como noutros casos similares, a resposta parece-me evidente: antes de pensar em extrair mais no presente, é preciso reparar o que já foi destruído no passado.
Um dia, quando o pó assentar e não houver risco em estar do lado da verdade, quando o medo deixar de pesar, quando já for seguro falar e a vergonha se diluir no tempo, todos dirão ter sido contra. Que sim! Que sempre souberam do perigo! Que sempre defenderam a paisagem! Que sempre se preocuparam com a água, com o solo, com a vida que crescia entre as encostas das Minas da Borralha. Dirão que nunca concordaram com o pó que pairava no ar, com a contaminação que escorria pelo rio, com o silêncio imposto e até com a falta de água para lavar a consciência. Dirão tudo isso e baterão com as mãos no peito em sinal de arrependimento. Mas não. Para a história só ficam os fortes; dos fracos não reza a mesma. Haverá memória sim, para as gentes que viveram, sofreram, resistiram e não se venderam. Não para os que anuíram ou chegaram tarde demais.
Tal como escrevi em tempos idos, nesta mesma revista Descendências, da janela do «chalé alpino» com vista para a mina, nem todos viam o risco – alguns viam riqueza, progresso, sinais de vida nova. Agora, essa janela volta a abrir-se, com outros protagonistas e os mesmos vícios de sempre. Mas atenção: ter uma janela com vista para a mina não é um privilégio! Caros leitores, está aí a Consulta Pública do Estudo de Impacte Ambiental da Mina da Borralha, até ao dia 17 de Novembro do corrente ano, tendo em vista a reativação da exploração. Prometem trabalho. Dinamização. Valorização do território. Mas a que custo? Às comunidades, pergunta-se. Participem! Digam não a este retrocesso ambiental e social!

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico











