Maria Rufina Ramos da Cruz
As primeiras Organizações Sociais Angolanas
No decorrer do depoimento de Maria Cristina Carlos Vasconcelos ao HSA foram referenciadas outros nacionalistas, cujo percurso de trabalho e de vida constam da memória da depoente uma vez que estes processos geralmente levam a reviver a vida social e o da sua comunidade.
O HSA convidou uma das veteranas do sector social nacional, a Maria Rufina Ramos da Cruz, cujas realizações sociais na área da formação da mulher angolana e prestação de serviços de saúde a sociedade civil se destacam enquanto fundadora de uma das primeiras organizações não governamentais nacionais fundada no período pós colonial a ANGOBEFA.
Após o breve contacto por telefone a depoente agendou a primeira sessão de recolha de dados. Começamos o trabalho relevando a importância de se dar a conhecer a sua experiência e dela tirarmos lições de vida com destaque a educação do seu tempo, hábitos e costumes sociais, como era a sociedade angolana, o quotidiano com base no seu percurso de vida e conhecimento da nossa sociedade. Questionou a utilidade do seu depoimento, informamos tratar-se de coletar memórias sobre a história social para as partilhar com as gerações atuais e as futuras e haver necessidade de se adicionar a história de Angola existente a contraparte contada por angolano. Comentou, dizendo que quando nos colonizaram, Angola era uma possessão portuguesa, mas nós temos a nossa história, a de milhares de angolanos oriundos das dezoito Províncias.
Descendentes de fazendeiros nacionais
Chamo-me Maria Rufina Ramos da Cruz, sou ambaquista, nasci na Província do Kwanza Norte, não tenho muitas memórias do meu pai porque fiquei órfã aos dez anos. O meu pai era fazendeiro de origem espanhola, tinha uma fazenda em Samba Cajú com vários hectares de café cultivados pelos contratados e trabalhadores. Nesta e nas outras fazendas que foi adquirindo até 1942 criou um “harém do campo”, onde cada uma das suas quatro esposas habitavam, cada uma em sua casa com os seus filhos e servidores.
Nasci em 1932 em Samba Caju numa povoação por onde passava uma das maiores estradas nacionais que começava em Luanda, passava por Dalatando, antiga cidade de Salazar, por Lucala e terminava no Uíge, antiga cidade de Carmona, territórios onde se estabeleceram as grandes fazendas de café que permitiram Portugal constar da lista de exportadores de café.
O meu pai morreu em 1942 e o meu “tio” José Coelho da Cruz, primo do meu pai permaneceu na sua propriedade e apoiou os meus irmãos que ficaram na fazenda do nosso pai e aos dois foram comigo para Luanda onde frequentaram os primeiros anos do ensino primário e regressaram à aldeia quando o meu irmão Manuel Ramos da Cruz é transferido para a Ganda.
A primeira esposa chamava-se Constância Rodrigues de Moura, mãe do meu irmão mais velho Manuel Ramos da Cruz, ela faleceu durante o parto e por isso ele foi criado pelo primo José Manuel da Cruz e esposa em Samba Caju, depois é enviado a Luanda para estudar, cidade onde os angolanos tinham melhores condições de vida e fica sob a tutela de uma destas famílias, a família Vieira Dias e Van-Dúnem até acabar os estudos. Depois do falecimento da Sra. Constância, o nosso pai teve necessidade de arranjar mais três esposas e cada uma vivia numa das suas fazendas, localizadas entre Samba Cajú e Lucala.
Como fazendeiro decide aumentar a sua área cafeícola onde na época era difícil proteger-se de endemias, por isso não resistiu a febre bubônica em 1942. No funeral do meu pai, o meu irmão filho da Sra. Constância encontra as três mulheres, a segunda chamava-se Marcelina Pedro da Silva, mãe da minha irmã Catarina, a terceira foi Maria Muzumbi mãe da minha irmã Alexandrina e a quarta esposa a Marquinha Monteiro, a minha mãe, a mais jovem com quem teve três filhos, o meu irmão Benedito, o Anselmo e eu. Era um harém típico de uma comunidade no campo. Com o falecimento do nosso pai ficamos ao cuidado do nosso primo José Coelho da Cruz, no total de doze órfãos. Como fazendeiro tinha colegas de Luanda da família Van-Dúnem que também se dedicavam ao cultivo de café, amigos que viriam ajudar a criar os seus descendentes, nomeadamente o meu irmão mais velho e a mim.
Famílias Luandenses 1940
Após o falecimento do nosso pai em 1942, o meu irmão no regresso a Luanda faz-se acompanhar de três dos doze irmãos órfãos, um de cada madrasta, os meus irmãos Alberto Soares da velha Muzumbi, o Manuel Afonso da velha Marcelina e eu. Nenhuma delas tinha filhas, somente a minha mãe. Pela primeira vez as nossas mães ficaram amarguradas mas, não podiam dizer nada porque naquele tempo a decisão era tomada pelos primos. E para não haver choques ele traz para Luanda um filho de cada uma das madrastas. Meu irmão vivia próximo ao Liceu Salvador Correia junto ao largo onde foi construído o Cine Tropical.
Em Luanda, o primogênito fica aos cuidados das famílias Van-Dúnem, Vieira Dias e Torres, famílias que já tinham uma certa posição na sociedade luandense e viviam nas Ingombotas próximo a Igreja do Carmo e no Cazuno, próximo a Cidade Alta onde agora se localiza o palácio presidencial. Em Luanda, é bem tratado e conseguiu fazer o 5º ano do Liceu, contraindo matrimônio com uma menina da família Paixão Franco com quem teve uma filha a quem deu o nome de sua mãe.
Depois de casado residia nas Ingombotas próximo a Mutamba, na zona do caminho de ferro de Luanda onde agora é o supermercado Nosso Super, era a estação central de caminhos de ferro de Luanda e ao redor havia as residências dos funcionários do caminho de ferro, embora em ruínas ainda existem alguns destes edifícios entre as residências. Anteriormente, morava ao lado do actual Governo Provincial onde está o centro de saúde do Governo Provincial. Estas famílias nobres nacionais com posses de terras e habitações localizadas na região urbana de Luanda antiga residiam entre Mutamba e Ingombotas.
O meu irmão era casado com uma mulher “civilizada” de Luanda e recebe três irmãos “matumbos” do Kwanza Norte, ambaquistas, do mato que mal falavam português, falavam melhor o quimbundo. O casal já tinha a primeira filha, a minha sobrinha Constância que depois foi viver para o Brasil onde gerou os nossos descendentes anglobrasileiros.
Tarefas de Crianças e Adolescentes
Durante a infância crescemos bem, em casa própria, bem criados, tínhamos empregados e até tinha uma ama. O meu pai tinha muitos trabalhadores contratados e nós os filhos sempre lidamos com as famílias deles. A vida em Luanda era totalmente diferente, a habitação, as tarefas domésticas, a escola e o falar português, eram muitas novidades a absorver. Os meus irmãos Alberto e Afonso acordavam às seis da manhã e tinham a tarefa de ir apanhar na linha férrea os restos do carvão da caldeira do comboio, este era o único combustível para o fogareiro e para o ferro de engomar. Aos dez anos eu tinha a tarefa de acender o fogareiro, era difícil, tinha de abanar o fogo com uma chapa ou um papelão até acender para fazer o café do pequeno almoço. O comboio operário passava as seis horas da manhã e deixava cair carvão já acesso e era transportado em uma pá de alumínio. Não estávamos habituados a fazer aquilo porque em Samba Caju havia trabalhadores.
Não havia ainda luz elétrica. As últimas tarefas do dia eram abrir as camas e levar os bacios de esmalte aos quartos. Fui aprendendo com a minha cunhada exigente e rigorosa e estou grata por isso, aprendi a ser mulher, a ser humana e no futuro fazer o mesmo com outras sobrinhas e familiares quando me casei. Para além dos trabalhadores ambaquistas, a maioria dos trabalhadores eram contratados do Sul e das Lundas, vindos do Norte porque no tempo colonial eram muito poucos pretos que tinham posições consideráveis, pois a maioria encontrava emprego nos serviços rurais.