Dionísia Freire Martins
As Acções Sociais de uma Católica
Dionisia Freire Martins leva-nos à infância dos assimilados residentes nas fazendas do Dondo e a relação entre as famílias nacionais assimiladas e as indígenas.
Fala-nos das diferenças da educação na sua época e de agora. Na época, estar na rua seguia regras de conduta: não se conversava, as pessoas saudavam-se e caminhavam do lado direito tal como o trânsito em Angola é a direita, aprendia-se a estar na mesa, a receber alguém que batesse a nossa porta de casa para pedir um copo de água, etc.
Apresenta detalhes, de outras relações humanas, por exemplo os vizinhos eram uma extensão da educação familiar, bem assim como os padrinhos de baptismo e outras pessoas mais chegadas. O namoro era aprendido no Manual dos Namorados e as tias desempenhavam o papel de orientadoras da vida marital.
Conta as novas gerações a sua infância marcada pela educação no período colonial e exemplifica a violência exercida recordando prisões e mortes na região de Massangano. Corajosamente, revela como seu pai, assimilado, trabalhador rural na Fazenda Lima, aguardou serenamente, sentado, pelos colonialistas que o vieram buscar para o matarem, e ter dito aos filhos “saiam das camas e escondam-se”. Descreve a falta de humanidade: os indígenas e outros eram enterrados até a cabeça, no terreno adjacente à administração e depois o trator decepava-lhes as cabeças.
Sobre o conflito armado pós independência realça as dificuldades dos deslocados e o papel da Igreja Católica no apoio a estas famílias e a outras mais carenciadas, não importando a origem religiosa, a sua família beneficiou destas ofertas.
Esta Serva de Deus, responsável pelo grupo Bom Pastor, da Igreja Nossa Senhora de Fátima e São Domingos, continuou a prestar ajuda ao próximo da mesma forma que seus pais a ensinaram durante a infância. Cuidando dos mais necessitados na Maternidade Lucrécia Paim, Hospital São Paulo e de militares com traumatismos do conflito armado no Hospital Militar em Luanda: lavava-os, alimentava-os, costurava roupa de cama e passava o dia 24 de Dezembro com eles.
No Pós Independência, as irmãs da igreja criaram, novos mecanismos de solidariedade, como a Roda dos Óbitos, durante a qual entoam cânticos, dançam e fazem uma oferenda monetária à família.
No extenso muro da sua residência, para além dos miúdos da Rua Fernando Pessoa no bairro Vila Alice fazerem as conhecidas sentadas dos jovens ,à tarde e depois do jantar, também descansavam desconhecidos aos quais oferecia generosamente um copo de água.
Aconselha os jovens a ouvirem e a interpretarem melhor o que os mais velhos dizem “ na boca de um velho apodrecem os dentes, mas não apodrece conversa”. Exemplifica, como os filhos podem ajudar os pais, seu filho primogênito contribuiu para a reabilitação da habitação e para o início do seu negócio.
Esta depoente foi sensibilizada pelos laços de vizinhança e familiares de um membro da História Social de Angola.
Introdução
Chamo-me Dionisia Correia Freire Martins, nasci aos 29 de Outubro de 1946, filha de José Correia Freire Júnior e de Mariquinhas de Jesus Mendes, nasci na fazenda Canganji, Cassualala, Município de Cambambe, natural da província Cuanza Norte. Eu deveria chamar-me Dionisia Correia Mendes Freire Martins. A partir de 1963, houve uma excepção do governo colonial, os filhos fora do matrimônio e de mãe solteira passaram a ter direito ao apelido da mãe constar no seu nome “dos vinte filhos do meu pai nenhum leva o apelido da mãe e o meu pai também não levou o apelido da minha avó Vitória António Paulo. Os meus filhos levam somente o meu apelido paterno, o da família Freire.
O meu pai já tinha bilhete de identidade, estudou na Missão Católica, o Cônego Frotta[1] da Missão Católica do Dondo foi seu padrinho de casamento. Ele vivia com condições diferentes às dos indígenas e contratados, vivendo na fazenda. Nós tínhamos de estudar na escola da Missão Católica. Naquele tempo ,os indígenas, como eram chamados os que não tinham bilhete de identidade, eram analfabetos, nós já tínhamos outro nível de vida, éramos assimilados.
O Namoro
O namoro tinha de ser permitido pelos pais. Por exemplo, o filho de um senhor que conhecesse o meu pai se gostasse de mim, eram os pais dele que faziam o pedido de namoro, não eram os jovens que se conheciam na rua a tomarem a decisão de namorarem. Os pais do menino pediam autorização aos pais da menina para que os meninos pudessem conversar. Foi assim que começou o namoro com o meu esposo. “Nós viemos pedir a autorização ao Sr. José Correia, se por acaso o nosso menino pode conversar com a vossa menina” e o meu pai disse “está bem, eu vou conversar com ela, isso dependerá dela”.
Eu cresci nesta fazenda no seio dos meus familiares, eu não sabia namorar, não sabia responder, mas havia livros onde aprendermos. Não me lembro onde encontrei o Manual dos Namorados e o meu pai encontrou-me a ler este livro, perguntou-me: “estás a ler esse livro, já queres namorar?”. Recebeu-me o livro e repreendeu-me, por isso eu não sabia como namorar, tão pouco responder a um pedido de namoro.
Certo dia, meu pai adoeceu e fomos ao hospital da vila do Dondo e foi internado. Havia um funcionário da Fazenda e Contabilidade que o ia visitar e gostava de mim, ele falava-me e eu não sabia responder-lhe. Estava tão inocente, a tia do meu pai vivia connosco, Maria Simão dos Santos Leal ensinou-me a namorar: quando o menino te dirigir a palavra, tu tens de responder dessa forma…
Em 1961, fui para a casa do meu marido, após ele sair da prisão. Esteve preso três anos e ainda não reunia condições para nos casarmos, tinha começado a trabalhar. “Quem me ensina como estar com o marido?”. Até ele falecer nunca me viu nua, fui ensinada a trancar a porta sempre que me tivesse a vestir, ele podia dizer “sou eu”, mas eu não devia abrir a porta. A tia Maria ensinou-me como me comportar no leito matrimonial. No início era um martírio, também existiam aquelas regras todas, fiquei irritada durante o período de adaptação, com o passar do tempo habituei-me.
Quer dizer, as boas maneiras não são “apanhadas” na rua, estão dentro de casa.
Estar à Mesa
Quando estávamos sentados à mesa havia regras. A mesa de jantar era comprida, em casa havia sobrinhos, filhos e netos. O meu pai sentava-se à cabeceira da mesa, observando todos, o uso dos talheres, o posicionar das mãos “quando não se usa os dois talheres (faz os gestos)” e quando tivéssemos comida ou água na boca, não devíamos falar, primeiro engole-se, depois é que se responde “ai de ti se respondesses daquela forma”, apanhavas seis palmatórias depois do almoço.
Todos comportamentos incorretos eram assinalados.
Registos de Natalidade e a Vacinação
O meu pai tinha a agenda familiar e a agenda do povo. Na agenda do povo registrava as datas de nascimento dos filhos dos trabalhadores indígenas, oriundos dos vários municípios do Cuanza Norte. Quando chegasse a época da vacinação as famílias precisavam destes dados escritos, pois eles apenas referiam as datas de nascimento e outras, como as do plantio, da colheitas do milho ou do algodão e a outros períodos da actividade agrícola, eles sobreviviam da produção agrícola.
Os pais vinham perguntar os dados de nascimento ao meu pai porque ele apontava as datas de nascimento na agenda do povo, escrevia os dados de nascimento em um papel para eles puderem levar os filhos à vacinação no posto médico, ou ao Senhor Administrador do Posto, Senhor Frende. Por exemplo, o meu pai foi um dos responsáveis pelos registros dos filhos dos trabalhadores indígenas quando foi construída uma nova estrada entre o Km 34 e o Dondo, a caminho do Massangano, a mata foi aberta com recursos a machados e a catanas, foi asfaltada, foi um trabalho duro, a picada foi asfaltada até Massangano, a esta empreitada deram o nome Tira Teimas, por ter sido um desafio.
A Origem do Nome Colonial do Lugar Histórico Massangano
Massangano[2] é um lugar da história de Angola. Quando os ingleses foram os primeiros a chegar a Massangano, levantaram paredes para quem chegasse encontrar aquele marco e identificasse a ocupação daquele espaço.
Quando os portugueses chegaram, perguntaram as velhas que semeavam milho:
– Oh Maria, como é que se chama aqui esta área, desta sanzala?
Elas não entenderam, não falavam português, havia velhas que não falavam e nem entendiam português e responderam em kimbundo:
– Estamos a semear milho, senhor
A pergunta foi uma e a resposta não se coadunou. Então, eles escreveram “Massangano”. Porque o nome era Guni Songo. Então, eles se instalam. Os holandeses quando regressaram encontram o terreno ocupado. Até hoje a construção erigida pelos holandeses está intacta.
Massangano, é a terra da minha família paterna. O nome do meu avô Gomes de Carvalho, meu pai era irmão da tia Ildebranda Gomes de Carvalho e da tia Isabel Gomes de Carvalho, irmãs paternas. Meu pai explicava-nos a genealogia, guardamos estes dados.
Os Templos Católicos, Muxima e Massangano
A campa de Paulo Dias de Novais está à frente da Igreja Nossa Senhora da Vitória, a campa original era mesmo em frente da igreja , mas os padres Capuchinhos afastaram a campa.
A nossa família era católica e frequentava ambas igrejas. Talvez por isso, a nossa tia Ildebranda Gomes de Carvalho era devota e fazia rezas, as pessoas confiavam e recorriam às suas rezas. Por exemplo, o Senhor Alfredo era caçador, todos os filhos morriam, um dia foi pedir a tia Ildebranda para ela fazer uma novena, ela fez a novena, e tiveram uma filha a quem queria dar o nome dela, ela não aceitou “não fui eu que fiz o milagre, então dá a tua filha o nome da Nossa Senhora do Rosário”. Onde eu nasci havia muitas meninas e meninos com o nome de Rosário em virtude do resultado dos trabalhos da tia Ildebranda, era esse o seu trabalho, era devota da Nossa Senhora do Rosário.
Nós aprendemos práticas religiosas com a tia Ildebranda. Ela ia às igrejas de Massangano, da Nossa Senhora da Vitória[3] e da Muxima. Naquele tempo, ela dizia-nos “eu vou a Muxima”. Quem tivesse problemas ou desentendimentos, ia à regedoria e se não ficasse resolvido pelos regedores ou pelos sobas, o assunto era levado à Administração. Nossa Senhora da Muxima era a última instância, e neste caso a resposta vinha de Deus, “ou se ficava maluco ou morria”. Para isso não acontecer, pediam perdão: reuniam, pela última vez, as famílias e eram perdoados, em muitos casos estabeleciam amizade.
Não se ia a Muxima por se querer, hoje qualquer pessoa vai a Muxima. Porque quando se fosse a Muxima , tudo que se pedisse a Muxima, recebia-se. Isto não é mentira! Dizem que a Igreja Católica trabalha com fios e miçangas. O Espírito Santo também existe na Igreja Católica Apostólica Romana, e tudo que nós pedimos na igreja, Deus nos concede a Graça. Ninguém é semelhante a Deus, Deus está acima de tudo e de todos, ele conhece os nossos pensamentos.
A minha mãe confessava-se em kimbundo e aqui em Luanda os padres que viveram na província aceitavam que ela se confessasse nesta língua. Porém, havia alguns que nunca viveram nas províncias e não aprenderam a falar kimbundu, estes não aceitavam confissões em línguas nacionais , diziam-lhe:
– Não sabe falar em português?
– Sei, mas expresso-me melhor em kimbundu
– Está bem, não vamos entender, mas faça a sua confissão, depois absolvo os seus pecados
E a mamã confessava-se.
O acto de contrição em kimbundu é tão bonito. Naquele tempo eu não mostrei interesse em aprendê-lo. Hoje me arrependo, já não tenho ninguém para me ensinar. Uma vez, oiço uma irmã da igreja, do meu grupo de oração…. Tivemos um retiro em Portugal durante o qual a missionária dizia “quem tem mãe em vida e aquelas que não a têm, peçam a Deus que vos deem uma mãe espiritual”, pedi e deram-me a irmã Maria Luísa. Ela é da Quibala e faz o acto de contrição nesta língua. Gostava de ouvi-la a contar histórias do passado, fazia-me lembrar a minha mãe e apenas temos diferença de dois anos de idade, uma senhora muito inteligente.
[1] O cónego José da COSTA FROTTA foi muito mais do que isso, e daí a razão da homenagem: o sacerdote santomense (1879-1954) fundou a primeira Escola da Missão Católica do Dondo, onde trabalhou durante 22 anos, desde 1908, tendo sido também pároco da célebre Igreja da Muxima, na Província de Luanda, além das passagens que teve pelas províncias de Malanje e Bengo.https://portal.autores.club/tag/mafrano/page/6/
[2] Massangano – No meio de um aparente nada, eleva-se Massangano, com a sua fortaleza em ruínas e canhões apontados para um inimigo (hoje) fantasma.
Sem conexão aparente com o entorno de capim, este conjunto de paredes brancas descarnadas e amontoados de pedras de séculos parecem caídos do céu ao acaso. Para entender o que significam, é necessário viajar no tempo e falar de datas e cronologias. Porque essa é a essência deste lugar, ponto de embate constante entre os colonizadores portugueses e o povo do Ndongo.
Durante a colonização portuguesa, nestas terras do actual Kwanza-Norte proliferavam visões míticas, como as das lendárias minas de prata de Cambambe, que os lusos sonhavam alcançar. Para garantir o domínio militar, e também para consolidar a captura de escravos na região, em 1583, Portugal construiu no alto de um morro estratégico a famosa Fortaleza de Massangano. Lugar perfeito na confluência verdejante dos rios Kwanza e Lucala, com vista privilegiada para as terras reclamadas por Ngola Kiluanji e Rainha Jinga.
Mas a História dá muitas e inesperadas voltas. E o que, na sua origem, era para os portugueses um posto de ataque, rapidamente se converteu num atabalhoado refúgio de última hora. Em 1641, com Luanda conquistada pela Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, os colonos lusos fugiram em debanda e fecharam-se a sete chaves na Fortaleza de Massangano.
Transformada em capital-provisória de Angola, nos sete anos seguintes Massangano seria o centro da reorganização portuguesa, abalada pelos contínuos ataques dos resistentes do Ndongo. Em 1648, comandadas por Salvador Correia, a fortaleza foi o ponto de partida da reconquista dos territórios ocupados pelos holandeses. Consolidava-se, assim, a dominação de Portugal, que apenas terminaria em 1975. http://m.redeangola.info/roteiros/massangano/
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico