E se um dia precisar de cuidados paliativos?


Os historiadores consideram que o “cuidado paliativo” já existia na antiguidade. Durante as Cruzadas na Idade Média, era comum encontrar “hospices” pelo caminho, que abrigavam doentes, famintos, mulheres em trabalho de parto, órfãos, pobres e “leprosos”.
Era muito mais uma forma de cuidado, acolhimento, proteção e alívio do sofrimento do que de cura propriamente dita.
No século XVII, um padre francês fundou a Ordem das Irmãs da Caridade em Paris e abriu casas para órfãos, pobres e doentes. Em 1900, as Irmãs da Caridade, irlandesas, fundaram o St. Josephs’s Convent em Londres e, mais tarde, o St. Josephs’s Hospice.

Oficialmente, os cuidados paliativos surgiram como prática na área da saúde na década de 1960 no Reino Unido com a médica, enfermeira e assistente de saúde Cicely Saunders, que dedicou a sua vida ao trabalho para alívio do sofrimento humano. Em 1967, fundou o St. Christophers Hospice em Londres, o primeiro serviço a oferecer um cuidado integral aos pacientes, controlando sintomas, aliviando as suas dores e sofrimentos, não apenas físicos como também psicológicos.
Na década de 1970, Elisabeth Kubler-Ross, uma psiquiatra suíça, trouxe esse movimento para a América. Em 1974, foi fundado um hospice nos Estados Unidos e, a partir daí, essa abordagem de cuidado passou a ser disseminada em diversos países.


Em Portugal, apesar de, desde XV, estes cuidados aparecerem descritos em alguns textos médicos, considera-se que os cuidados paliativos surgiram há 25 anos, com a inauguração da Unidade de Dor do Hospital do Fundão, que de imediato se transformou num Serviço de Medicina Paliativa.
Em 1994, surge a primeira UCP, com valência intra-hospitalar e apoio domiciliário, no Instituto Português de Oncologia, do Porto.
Em 1995, foi fundada, a Associação Nacional de Cuidados Paliativos, hoje designada, Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
No ano de 2012, surgem dois documentos legais da mais elevada importância: a Lei do Testamento Vital e a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos.
Em 2014, o governo, preconiza a obrigatoriedade de implementação de Equipas Intra-hospitalares de Suporte em Cuidados Paliativos nas Instituições Hospitalares no nosso país.
Em julho de 2018, surgiu a Equipa Intra-hospitalar dos Cuidados Paliativos Pediátricos do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), da qual faço parte, como psicóloga.

De acordo com a OMS (2002), os Cuidados Paliativos correspondem a uma abordagem de intervenção que permite melhorar a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento pela identificação e tratamento precoce da dor, assim como, de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais.

O vocábulo paliativo é derivado do latim pallium, que nomeia o manto usado pelos cavaleiros das Cruzadas para se protegerem das tempestades, durante os caminhos percorridos. A terminologia denota, então, a ideia principal dessa abordagem que é cobrir, proteger e amparar. Os Cuidados Paliativos consistem numa forma de assistência na área da saúde que se diferencia da medicina curativa. Enquanto a medicina curativa tem como objetivo o tratamento de determinada doença. O “cuidado paliativo” pressupõe a prevenção e controle de sintomas para todos os pacientes e suas respetivas famílias, que enfrentam uma doença crónica complexa, limitante ou ameaçadora da vida.
A OMS considera que se deve iniciar o tratamento paliativo o mais precocemente possível, concomitantemente ao tratamento curativo, utilizando-se todos os meios necessários para melhor compreensão e controle dos sintomas. Ao otimizar o conforto e a qualidade de vida por meio do controle de sintomas pode-se também possibilitar mais dias de vida (OMS, 2007).

De acordo com o Dec. Lei nº. 52/2012, os cuidados paliativos regem -se pelos seguintes princípios:

a) Afirmação da vida e do valor intrínseco de cada pessoa, considerando a morte como processo natural que não deve ser prolongado através de obstinação terapêutica;
b) Aumento da qualidade de vida do doente e sua família;
c) Prestação individualizada, humanizada, tecnicamente rigorosa, de cuidados paliativos aos doentes que necessitem deste tipo de cuidados;
d) Multidisciplinaridade e interdisciplinaridade na prestação de cuidados paliativos;
e) Conhecimento diferenciado da dor e dos demais sintomas;
f) Consideração pelas necessidades individuais dos pacientes;
g) Respeito pelos valores, crenças e práticas pessoais, culturais e religiosas;
h) Continuidade de cuidados ao longo da doença.

A abordagem voltada para o ser humano na sua integralidade e a necessidade de intervenção em sintomas de natureza física, social, emocional e espiritual transformam a prática dos Cuidados Paliativos num trabalho necessariamente de equipa, de caráter interprofissional, que conta com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, assistentes espirituais ou da religião escolhida pelo paciente (Maciel, 2008).

Depoimento de Cristina Lopes, filha de um doente que falecera há cerca de dois anos:
“Tive a sorte de nascer no seio de uma família calorosa, onde o conceito “família” é sinónimo também de afetos, cuidado, celebração e proteção. Cuidamos uns dos outros no verdadeiro sentido da palavra.

Quando o meu pai foi diagnosticado com cancro renal (estádio 4+) foi ele próprio que nos anunciou sobre o seu estado. Em choque e conscientes do pouco tempo que tínhamos, fizemos tudo o que esteve ao nosso alcance para conseguir reverter um quadro que crescia de dia para dia, de forma descontrolada.
Depois de vários episódios tenebrosos, assistir ao sofrimento do meu pai foi muito penoso para todos. As idas ao hospital passaram a ser mais frequentes até que se reuniram as condições para o seu internamento, pelos piores motivos.
Perfeitamente consciente do seu estado de saúde e também do que viria a ser o seu desfecho, o meu pai sempre nos tranquilizou mostrando-se enternecido e acarinhado pelo corpo clínico de Cuidados Paliativos, no âmbito hospitalar.
Infelizmente o fim chegou depressa e hoje, passados dois anos e meio da sua partida, podemos dizer que sabemos que de alguma forma o calor, afeto, celebração e proteção – conceitos estes vividos desde sempre no nosso lar -, foram também proporcionados pela equipa de paliativos. Todos, sem exceção, foram extraordinários com o meu pai proporcionando-lhe um fim de vida digno e caloroso.
Mas não chegaram apenas ao doente. A todos nós, família direta, chegaram com palavras de carinho e conforto, sabendo preparar-nos para o pior sem nunca ser dramáticos ou fatalistas. Incansáveis, dentro do que estava ao seu alcance. Nunca haverão palavras suficientes para agradecer o que nos proporcionaram – além do calor humano, a dignidade e respeito que têm pelo doente são para além da nossa compreensão. São verdadeiros profissionais de saúde, que têm qualidades que vão muito além da formação académica – falo de qualidades humanas que, hoje em dia, estão em falta e que muito fazem a diferença.
Obrigada.”

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