Maria do Céu
A Plataforma História Social de Angola ouviu falar da residência da Liga Evangélica de Acção Missionária de Lisboa, cujo principal papel era servir de local de acolhimento dos missionários a caminho dos chamados territórios ultramarinos, durante o depoimento de uma antiga estudante da Missão do Dondi, Ernestina Venâncio. No processo deste e de outros depoimentos ficamos a conhecer o papel deste lar, apelidado pelos antigos estudantes por Lumiar 122, local onde se tratava parte da gestão organizacional e operacional entre as missões protestantes em Angola e o Império colonial Português, incluíndo do aprendizado de português dos missionários provenientes maioritariamente da Suíça, Canadá e Estados Unidos da América e também da acomodação de angolanos, moçambicanos, guineenses e caboverdianos no âmbito das bolsas de estudo missionárias1.
Recebiam apoio das funcionárias, e estas senhoras humildes entre outras relações sociais chegaram a estabelecer laços familiares com aqueles, a última ainda em serviço é a Maria do Céu. Esta senhora atendeu a nossa primeira chamada um dia depois de um residente da Lumiar 122 nos ceder o seu contacto telefónico. Não obstante, os pormenores do local fornecidos por Judite Lumumba e Ernestina Venâncio, o edifício não correspondia as descrições dadas, insistentemente, disse ao meu guia em Lisboa “João Leandro há tradição das joalharias se manterem no mesmo sítio e terem funcionários antigos”, pois os novos cafés de Lisboa tem empregados muitos novos e de outras nacionalidades. Na Joalheria disseram-nos “agora, o Lar está exatamente na traseira do antigo endereço”. A antiga caixa de correio com o Padrão da Liga confirmou estarmos no endereço certo. Maria do Céu humildemente sugeriu a permissão de David Valente, actual gestor do Lar. Dias depois, este marcou uma audiência e assim iniciou o processo de recolha de dados de mais um dos lugares de memória lisbonense mas também da história social de Angola, da CPLP e do protestantismo em Portugal.
A Maria do Céu é uma fonte direta do passado e do presente, onde a memória material e imaterial se encontram. Consegue descrever o passado eo presente do local onde os bolseiros missionários e outros protestantes residiam, faziam refeições, reuniões sociais, religiosas e provavelmente “o” outro local lisbonense onde foram forjados os nacionalismos das antigas colónias portuguesas em África e outros mecanismos da comunidade internacional protestante contribuir para o derrube do último bastião do colonialismo, acções e activismo indispensável a formação dos estudantes universitários e seminaristas que viriam a liderar a luta de libertação das antigas províncias ultramarinas e a formação de outros líderes pelo menos até a década de 1980. A memória de Maria do Céu é rica e também simboliza as relações humanas entre os funcionários portugueses, estudantes e missionários, cujas acções representam uma outra face da história do colonialismo Português e o papel destes na formação social de África.
Sempre que nos deslocamos a este lugar de Memória, Maria do Céu expressa a dedicação e o amor, nos pormenores dos seus testemunhos e na emoção incontida que se eleva. Afinal, é também a vida de uma trabalhadora portuguesa que aos dezoito anos, ainda muito jovem, recém casada, com baixo acesso ao ensino, cuidava de jovens da mesma idade com os quais estabeleceu sentimentos maternais, fraternais e de irmandade, colmatando a fragilidade com que os bolseiros missionários africanos chegavam. A captação audiovisual desta memória transcreve o simbolismo do capital social investido na preservação deste património material português, mas integrado na história das missões protestantes nas “colônias” e no modelo desenvolvido da educação de angolanos.
É nesta perspectiva de conhecer, reconhecer e preservar este capítulo da história social de angolanos protestantes que experienciamos em Portugal o recurso à memória oral enquanto ferramenta de produção de dados qualitativos de lugares de memória da história social de Angola em Portugal.
O depoimento integra a historiografia de diversas fontes, entre as quais fotografias, o livro de registro (contém endereços e mensagens), a biblioteca, o mobiliário e a descrição do antigo e do novo imovel. Os depoimentos se complementam, o do antigo estudante português David Valente, actual gestor da nova Residência, detalha demais dimensões na perspectiva de estudante que compartilhou o período universitário com estudantes africanos e missionários. A primeira parte deste depoimento foi recolhida durante visitas realizadas e a segunda parte é a transcrição do audiovisual, o processo conduziu a antigos estudantes para prossecução da investigação em curso.
Eu nasci em Arco de Alverca, chamo-me Maria do Céu Amorim Vieira Gomes, trabalho aqui desde 21 de Março de 1980, portanto já estou “aqui” há 43 anos e em Março farei 44 anos. Eu estou na residência dos estudantes que pertence a Liga Evangélica, a minha função é tratar dos estudantes, recebê-los, tratar dos quartos e encaminhá-los para saberem o que devem fazer, o meu trabalho é trabalho doméstico e administrativo.
Na antiga Liga já não era assim, havia o pequeno almoço, o almoço, o lanche e o jantar, tínhamos uma cozinheira e uma outra empregada que ajudava à tarde a dar o jantar.
Quando entrei havia cá mais de trinta estudantes, nunca tinha visto muitos africanos. Então, como diziam mal deles, que matavam e outras coisas, eu disse “eu não acredito, se estão aqui são de bem, naquilo que eu puder ajudar eu vou ajudar, eu não vou por aquilo que me dizem”. Depois, fiquei feliz porque oravam antes do pequeno almoço e ao almoço e eu aprendi muito coisa porque ler a bíblia é coisa que os católicos não fazem.
Então, vi que havia estudantes africanos, uns eram muito asseados, outros eram um pouco desmazelados. Os quartos eram divididos por três, eram camaratas e eu quando eles entravam explicava como deviam fazer as camas e eles “muito bem”, só que depois vim a descobrir que eles não queriam dormir nos lençóis e dormiam nos cobertores, eu dizia “não está certo”, mas eles diziam que tinham muito frio, porque a casa era muito grande e muito velha, enfim!
Depois, vi que alguns “necessitavam” e eu com o meu pouco ordenado que tinha comprava uma fruta, sem ninguém ver, eu ia ajudando.
Passado muitos anos, começou a haver dificuldades porque faltavam as ajudas da Suíça e de outros países (que eu não sei quais), mas da Suíça sei que éramos ajudados. Isto começou a ir muito para baixo, a casa a precisar de obras, a gastar-se muito dinheiro e então, resolveram fechar a cozinha. Isto cada vez degrava-se mais, vieram mais estudantes e eles precisavam de ser ajudados e eu via que aqueles mais necessitados precisavam da minha ajuda, não com as coisas da residência “eu ia dividindo pela comunidade do meu próprio comer, o que eu tinha pelo meu salário, as roupas que me davam eu ajudava os estudantes”, gostava muito (de os ajudar). Do meu pouco de comer que eu tinha eu ia dividindo com os estudantes… “porque dei consolo aquele filho que está muito longe mãe”.
Depois, eles falavam da cultura deles e eu gostava de os ouvir. Muitos choravam pela mãe, pelo pai e eu dizia o que é que se passa“ tens aqui uma mãe, desabafava com o teu coração” e ajudava-os. Sentia-me feliz porque ia para casa cansada, mas ao mesmo tempo realizada porque dei consolo àquele filho que estava muito longe do pai e da mãe.
Eles diziam-me que eu devia ter mais filhos:
– É bom ter poucos filhos, eu tenho quarto para um filho e a minha vida foi sempre assim. Claro, vocês são muitos filhos deviam de ter uma médica para explicarem às mães, quando não há pão para um, não pode haver para dois e para três, não há educação.
– É a nossa cultura.
Depois diziam a Dona Céu só tem um filho devia ter mais um filho, é bom ter filhos
– Não é bom porque eu não tenho quarto para mais filhos, já tenho muitos filhos.
E a minha vida foi sempre assim.
Quando abriu aqui essa residência eu fiquei mais feliz porque cada um já tinha o seu quartinho, tinha a sua casa de banho, já podia dar mais apoio, fazerem as cama todas as semanas, enquanto na outra não era assim, cada um fazia o seu.
Qual o papel da liga na vida destes angolanos?
Eu acho que a importância para eles foi ter o aconchego, serem bem acolhidos, verem que aqui nós, não é porque…, houve uma vez uma angolana que disse que eu era racista e eu disse-lhe:
– Não, de maneira nenhuma se eu fosse racista não estava aqui a trabalhar, isto está na tua cabeça, não sejas assim.
– Ah mas, eu já sofri!
– Sofreste com alguém, eu não tenho culpa. Portanto, eu amo vocês todos, para mim não há diferença, a cor para mim não conta, porque se eu me golpear o sangue é igual ao vosso, não quero saber disso.
Depois, eles disseram “Sim, dona Céu, realmente é verdade, já reparei”.
- Ouvimos o termo pela primeira vez durante a coleta da memória da antiga estudante Eunice Foreaid ↩︎