Por que razão não chamamos «primeira-feira» ao domingo?

Uma pergunta do meu filho levou-me numa viagem pelos dias da semana — até chegar ao século VI…
Um dia destes, enquanto se despachava para ir para a escola, o Simão perguntou:
— Hoje é sexta-feira?
— Sim, é!
Calou-se, a pensar.
— Sabem uma coisa que eu não percebo sobre o mundo?
A minha mulher e eu olhámos um para o outro, com algum medo.
— Diz lá…
— Se há segunda-feira, porque é que não há primeira-feira?
Sorrimos e lá lhe dissemos que tinha de se despachar — e que, no fundo, a primeira-feira era o domingo! Ele não ficou muito convencido. O domingo é o domingo, ponto final. Mas, enfim, o relógio avançava e a escola estava à espera.
Fiquei a pensar na pergunta dele. Há, de facto, uma história por trás dos nomes dos dias úteis — e tem algumas surpresas.
em árabe e em hebraico, os dias seguem uma ordem parecida com a nossa: a segunda-feira é o segundo dia.
Descobri através de Gaston Dorren (o autor do excelente livro Babel: Around the World in Twenty Languages), que o vietnamita também relaciona a segunda-feira com o número dois… Será que foi influência nossa, que para lá levámos as letras do alfabeto?
Quem inventou estas feiras todas?
Chegou a altura de viajar no tempo e perceber de onde vêm as nossas feiras…
Se as outras línguas das redondezas mantêm a tradição romana de dar nomes de deuses aos dias, neste recanto da península alguém se lembrou de lhes dar outros nomes. O culpado foi São Martinho de Dume, bispo de Braga que, no século VI, quis dar nomes menos pagãos aos dias da Semana Santa. Pelo menos nessa semana! — diria o bispo.
Ora, a Semana Santa era toda de descanso e oração — uma semana feita só de feriados…
O primeiro feriado era mesmo o Domingo de Ramos, que já tinha nome bem cristão («Dia do Senhor») — e assim ficou.
Pois bem, os dias seguintes ganharam novos nomes [baseados nos nomes já então usados na liturgia da Igreja*]: segundo feriado («secunda feria»), terceiro feriado («tertia feria»), quarto feriado («quarta feria») — e por aí fora…
Com o tempo, esses nomes passaram a usar-se para designar os dias de todas as semanas do ano.
Note-se que São Martinho de Dume era um bispo de Braga, cidade do Reino dos Suevos, a antiga Galécia romana. Assim, os nomes com «feira» tornaram-se típicos da língua dessa zona, língua que se continuou a falar pelos séculos fora até chegar ao português e ao galego dos dias de hoje.
Ainda encontramos quem use os nomes com «feira» na Galiza — e há até uma campanha para recuperar os nomes tradicionais. Depois, numa reviravolta que responde ao meu filho, há quem tenha encontrado o termo «primeira-feira» como referência ao domingo — nalgumas aldeias da Galiza!
Enfim, há de facto coisas espantosas neste mundo, como diria o Simão. Os nossos dias de trabalho são precisamente os dias com «feriado» no nome… — As voltas que as línguas dão!
Resta-me desejar a quem me lê um bom resto de primeira-feira…
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico