Rafael Carvalho

© Luís Xavier

Rafael Carvalho é um dos maiores dinamizadores da Viola da Terra, tendo já atuado nas 9 Ilhas dos Açores. Para além da pesquisa e ensino do Instrumento em várias escolas, das quais se destaca o Conservatório de Ponta Delgada, editou os álbuns: “Origens” (2012), “Paralelo 38” (2014) , “Relheiras” (2017), “9 Ilhas, 2 Corações” (2018) e “Um Natal à Viola” (2019). Tem ainda 3 livros editados do seu “Método para Viola da Terra” – Iniciação, Básico e Avançado.

Como nasceu a paixão pela música?

A paixão pela música acho que nasce connosco. No meu caso, como digo sempre, cresci com uma mãe que fazia e faz toda a sua vida diária a cantar, sempre bem-disposta e enérgica. O meu pai sabia tocar Violão e acabou por comprar um quando éramos mais novos. Tocava quando a luz falhava, o que era recorrente na nossa infância, e depois eu e o meu irmão pedimos que ele nos ensinasse. Tinha eu 12 anos e meu irmão 13 anos. O resto foi crescendo dentro de mim com o passar dos anos.

Porquê a “Viola da terra” e que instrumento de cordas é este?

Quando tinha 13 anos foi fundado o Grupo Folclórico São Paulo, na Ribeira Quente. Ia aos ensaios todos os sábados, e partilhava o Violão com o meu pai, acompanhando o Balho Furado, a única música que eu conseguia acompanhar na altura. Iniciaram-se depois as aulas de Violão e Viola da Terra, na Freguesia. Como eu já sabia alguns acordes no Violão o professor Carlos Quental sugeriu que eu fosse para a turma dele de Viola da Terra, pois conseguiria aprender um pouco mais rápido, e foi assim que iniciei a minha aprendizagem no instrumento, num curso de 5 ou 6 meses e que decorreu na sacristia da Igreja, enquanto as aulas de Violão decorriam no Salão Paroquial da mesma.
A Viola da Terra é o cordofone tradicional dos Açores. De 12 ou de 15 cordas, é o instrumento que era e é da tradição popular, acompanhando despiques, bailaricos, tocada a solo ou acompanhada por outra Viola, ou por outros instrumentos ao longo do tempo. A confidente dos Açorianos, nos bons e maus momentos da sua vida, bem como de todos os que emigraram à procura de outras oportunidades. É a nossa maior embaixadora ligada à cultura musical Açoriana.

Quais são as principais influências musicais quando está a compor?

O meu processo de composição começa sempre na exploração das sonoridades e potencialidades da Viola da Terra. Quer isso dizer que esse processo inicia-se sempre na experimentação de sons que eu goste e que me identifique, ou da exploração de técnicas do polegar, algumas que introduzi na execução do instrumento.
Claro que tenho algumas referências da nossa Viola que influenciaram a minha aprendizagem do repertório tradicional, e depois outros músicos nacionais e internacionais que me inspiram e cujo trabalho ouço com frequência. Mas, principalmente nos últimos anos, a composição passa sempre por algum isolamento pessoal e tempo em redor do instrumento em busca daquela sonoridade que eu considero ser o meu som característico, tentando manter a ligação ao passado mas trazendo em simultâneo alguma inovação.

Estudou música? Quais são os seus estudos e que escolas frequentou?

A música que estudei, inicialmente, foi nas aulas da Educação Musical, no 5.º e 6.º ano, como todos os colegas de escola. Depois ingressei na escola de violas da terra do Grupo Folclórico São Paulo em 2014, mais a aprendizagem familiar do Violão com o meu pai. Todo o percurso nos anos seguintes foi de autodidata.
Aos 26 anos inscrevi-me no Conservatório Regional de Ponta Delgada, onde fiz o Curso Básico de Formação Musical. Acabei por começar a lecionar Viola da Terra nessa instituição, onde lecionei de 2008 a 2022. Mesmo sem haver uma habilitação legal no instrumento, no nosso País, acabei por ter a obrigação de estruturar um curso de Viola da Terra, da Iniciação ao Secundário. Nesse percurso tive de criar as bases para a lecionação da Viola da Terra, do zero, e acabei por me submeter a exame de 5.º grau do instrumento, sendo o primeiro exame do género naquela instituição, no sentido de abrir caminho para os alunos que ali estavam a fazer os seus estudos.
Nos anos seguintes fiz o mesmo com o curso Secundário e submeti-me a novo exame de 8.º grau em Viola da Terra. Foi um percurso duro mas muito recompensador a título pessoal. No entanto, nada reconhecido profissionalmente, pois sendo algo inédito no nosso País, não havia referências nenhumas na área. Fica a certeza de um trabalho consolidado e de base para o futuro, para todos os que decidam estudar o instrumento no ensino oficial na nossa Região. Infelizmente não tive a oportunidade de estudar o instrumento como desejava, por não existir esse curso estruturado no passado, mas, hoje, sei que o contributo que deixei é de grande importância para as gerações futuras.

O que é o projeto da Orquestra de Violas da Terra?

A Orquestra de Violas da Terra da Ilha de São Miguel é um dos projetos que idealizei e que dirijo de que muito me orgulho. Quando iniciei a lecionação no Conservatório em 2008 apercebi-me de imediato que quase ninguém tinha noção da existência do curso, apesar de já existir há 3 anos. Nesse ano letivo organizei na escola uma iniciativa de final de ano que envolvesse outras escolas do ensino “não formal”, com apresentações por escolas de violas. A iniciativa tornou a acontecer no ano seguinte e cresceu pelo que, em 2011, decidi juntar esses tocadores, das várias escolas de Violas e formar uma Orquestra em que todos os tocadores, aprendendo de ouvido ou aprendendo por partitura, tocassem em conjunto. O objetivo era claro: quebrar barreiras e preconceitos entre diferentes realidades de ensino e aproximar as escolas de Violas. Foi arriscado, claro, mas foi o mais importante passo para uma nova geração de tocadores que já sabem trabalhar em conjunto. Essa iniciativa, por pequena que possa parecer, mudou muito o paradigma que se vivia na Ilha de São Miguel, em que cada escola tocava o seu repertório e vivia fechada no seu programa de apresentações.
A Orquestra de Violas da Terra costuma ter o seu estágio anual, com 2 dias de ensaios conjuntos, e que culminam com um concerto onde se apresenta repertório tradicional dos Açores, com contributos do repertório tocado em cada escola de Violas, e contando sempre com convidados de outras áreas musicais e que vão do Violino, Piano, Voz, Percussão, Flauta, Violoncelo, Violão, no sentido de se criar um concerto dinâmico.
É o projeto musical que mais trabalho dá, pois implica a produção de todas as fases do processo, desde abertura de inscrições, arranjos das peças, visitas às escolas de Violas para ensaios prévios, e toda a logística dos ensaios e concerto final, mas trouxe a recompensa de um discurso comum, na Ilha de São Miguel, de partilha musical. Sem essa partilha nós não evoluíamos e sem essa partilha do passado ao presente, a Viola já teria corrido o risco de desaparecer.

Em 2016 formou o trio ORIGENS. Como se formou o grupo e qual foi o propósito de integrar o violino e o violão com a viola da terra?

O trio Origens surgiu de modo natural. Toco com o meu irmão, César Carvalho, desde os 13 anos e depois com a Carolina Constância desde 2012, nas participações que ela fez na Orquestra de Violas da Terra, integrando o Violino nas sonoridades da mesma. Com o decorrer do tempo acabámos por começar a fazer uma ou outra apresentação em trio, com 3 ou 4 peças, em alguns pedidos que surgiam. Em 2016, finalmente, decidimos preparar um repertório para um concerto completo, o que aconteceu no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas. 7 anos depois já contamos com inúmeros concertos e ainda o álbum de estreia “Sons no Tempo” de 2020.
O primeiro propósito do trio é de tocar com amigos a música que gostamos de tocar e com a qual nos identificamos. Essa é, para mim a base de tudo e a base para se subir a qualquer palco. Dessa amizade e cumplicidade surge uma sonoridade muito singela e rica, em que o Violino e a Viola da Terra, como instrumentos solistas se despicam e doutras vezes se complementam e enamoram, sendo essa sonoridade consolidada com as harmonias do Violão.
É um grupo musical que veio colmatar uma lacuna na música produzida nos Açores e cuja sonoridade tem sido muito bem recebida e acarinhada, pois é uma conjugação de sons que soa natural, fresca e muito inovadora também.

Em média quantas horas toca por dia? E no caso dos concertos, como é feita a preparação?

Poucas horas! Deveria tocar muitas mais horas por dia mas a vida pessoal e profissional assim não o permite.
Quando estou em tempo letivo toco mais, pois acompanho os alunos, quer com o Violão quer na Viola da Terra. Ao mesmo tempo aproveito todos os intervalos para tocar e também obriga-me a estudar constantemente peças novas para trabalhar com eles.
Quando tenho concertos, faço sempre a minha revisão das peças que possam ser mais complexas ou que possam estar menos rodadas. Se temos peças novas a integrar o alinhamento, ou se é um novo desafio musical, tento ter tudo estudado ao máximo para depois não haver percalços em palco. Obviamente que, com o decorrer dos anos, também vai surgindo margem para alguns improvisos em palco, acrescentar mais algumas frases ou retirar outras. No entanto, tudo depende da particularidade de cada concerto. O mais importante é uma boa preparação e saber o que vamos fazer.
É algo que dá muito trabalho mas, para cada concerto, faço sempre um novo alinhamento e estudo o mesmo, dentro do que tem de ser revisto. Como também costumo apresentar os espetáculos quase todos em que participo, antes de subir ao palco também tomo as minhas notas mentais da história que se pretende contar ao público. É preciso cativar o público e direcionar a música e o alinhamento na mesma direção daquilo que se explica e se apresenta sobre o mesmo. Para mim, cada concerto merece esse respeito e cada concerto tem uma história musical a ser contada.

Dar um concerto, compor, gravar, escrever ou lecionar? Onde se sente mais realizado?

Sinto-me realizado com o conjunto de todas estas atividades. Todas são importantes e trazem uma realização pessoal e profissional muito grande, mas é na conjugação de tudo isto que consigo encontrar o equilíbrio e a renovação de energias, pois se me focasse apenas numa coisa, sei que corria o risco desta tornar-se cansativa e até mais aborrecida a médio prazo. Não me interpretem mal, pois todas são importantes, mas é essa diversidade que me caracteriza, senão podemos correr o risco de começar a fazer as coisas como obrigação, deixando de parte a vocação e o gosto que devemos ter em fazê-las. Nesse sentido, apesar se todo o extenuante trabalho que isto acarreta, sinto-me sortudo por ter esse leque abrangente e desafiante de atividades no dia-a-dia.

Que concertos ainda tem previstos para este ano? Projetos para 2024?

Este ano ainda vai trazer muitas e boas novidades. Desde o XIII Festival Violas do Atlântico, Açores e Madeira, com Viola da Terra e Braguinha, a 9 de Setembro, na Lagoa. A apresentação do meu oitavo álbum a solo, “Viola Micaelense – Ecos dos Mestres”, a 17 de Setembro na Igreja do Colégio. Mais um álbum temático dentro de todos os que tenho editado, sempre com músicas tradicionais e com musicas originais.
Passaremos depois, a 2 de Outubro, às atividades do Dia da Viola da Terra 2023, comemorado desde 2019 pelos músicos e associações dos Açores e Comunidades Açorianas, e oficializado este ano pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. A programação de São Miguel, que organizo pela Associação de Juventude Viola da Terra, terá um grande evento na freguesia Sede da Associação, a Ribeira Quente, com a apresentação da Escola de Violas da Ribeira Quente, recentemente renovada, do documentário “10 Anos de Origens”, e com momentos musicais por tocadores da Freguesia, para além de várias sessões em escolas com ofertas de material didático ligado à Viola da Terra. Também teremos atividades em outras Ilhas dos Açores, sendo que na Terceira a programação tem sido organizada pela Sons do Terreiro – Associação Cultural e, no Pico, pela Associação MiratecArts. No entanto, há alguns músicos, em outras Ilhas dos Açores que vão produzindo iniciativas, em especial nas escolas. Disponibilizamos, sempre, todo o apoio com o envio de algum material didático, se for o caso, e dentro das nossas possibilidades. Este dia é de todos e cabe a cada um, também particularmente, produzir e organizar alguma atividade que se sinta preparado para organizar na sua comunidade.
Em 2024 já tenho alguns concertos marcados. Para além disso, tenho o objetivo pessoal de concretizar mais gravações e edições, tendo em conta que comemoro 30 anos em que iniciei a minha aprendizagem na Viola da Terra. Já tenho 10 originais em vista para um novo álbum comemorativo destes 30 anos dedicado de alma e coração à nossa Viola da Terra. Agora é conseguir tempo e trabalhar nesse sentido, para concretizar mais este objetivo, como tenho feito com tudo o resto até aqui.

É um dos artistas colaboradores da Miratecarts e regular no programa Azores Fringe Festival. Como é que esta entidade tem contribuído para a evolução da sua vida no setor artístico?

Colaboro com MiratecArts desde o início e no Azores Fringe Festival com eventos na Ilha de São Miguel, sempre que possível. Mas destacaria também toda a outra programação que essa Associação promove em especial o Festival CORDAS, tendo em conta a sua génese com o intuito de valorizar e promover a Viola da Terra, e por ter participado nas primeiras edições de modo presencial.
Do Fringe a todos os outros eventos, a MiratecArts, incentiva as artes, incentiva a tradição, mas também provoca situação para sairmos da nossa zona de conforto.
Por todos esses motivos, por nos deixar ser quem somos, quando precisamos (muitos festivais querem que eu seja outra coisa nas ideias que têm, esquecendo a essência do meu trabalho), mas também por incentivar a novas abordagens, novas ideias, e por proporcionar outros diálogos e partilhas musicais, a MiratecArts tem revolucionado o sector artístico nos Açores, e dos Açores para o mundo.
Esses desafios obrigam-me a crescer, a criar mais, a sair da minha zona de conforto por inúmeras vezes. Quando isso acontece, temos crescimento, sem dúvida.

Uma mensagem para todos os artistas do mundo.

Não desistam dos vossos sonhos mas não esperem que ninguém vos bata à porta com a solução para os concretizarem. Vão à luta! O sucesso começa dentro de cada um!


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