Eunice Neto Foreid
Advogada, campeã de basquetebol e cantora lírica
A particularidade deste depoimento é pertencer a história de vida da primeira cidadã angolana, negra registada na Ordem de Advogados Portuguesa e provavelmente na diáspora da actual União Europeia. Em 2003, a Ordem de Advogados de Portugal autorizou esta advogada, campeã de basquetebol do Império Português e cantora lírica a exercer a sua profissão.
Partilha memórias da ação estudantil de africanos em Lisboa e expressa a opinião sobre a repercussão do 25 de Abril em Portugal e na diáspora angolana em Portugal, entre os quais o processo de repatriamento de angolanos nos anos 70-80.
Eunice Foreid descreve a incontornabilidade do suporte dos antigos estudantes residentes e a necessidade de se legitimar esta tentativa de historiografar o Lar 122. A HSA partilha a opinião deste lugar de memória de angolanos em Portugal, sendo também lugar de mais de setenta anos de memória dos missionários, cuja história social é particularmente notável para os PALOP, sobretudo devido à história do nacionalismo, das independências e das lideranças.
Parte destas fontes referenciadas pela depoente, se encontram armazenadas em bases de dados e expressam a versão institucional das congregações protestantes, dos missionários e seus descendentes. Porém, falta a vertente testemunhada por angolanos para ser possível completar estes factos.
Portugal, servia de entreposto para os missionários que visitavam ou trabalhavam na região de África, hoje denominada SADC, está estudante cresceu no seu seio, tendo a oportunidade de conviver com os estudantes africanos e portugueses da sua época, dando-lhe a autoridade de abordar temas relacionados recorrendo a sua memória.
Em 2003, a Ordem de Advogados de Portugal autorizou esta advogada, campeã de basquetebol do Império Português e cantora lírica[1] a exercer a sua profissão.
Partilha memórias da ação estudantil de africanos em Lisboa e expressa a opinião sobre a repercussão do 25 de Abril em Portugal e na diáspora angolana em Portugal, entre os quais o processo de repatriamento de angolanos nos anos 70-80.
O depoimento foi conduzido por Judite Luvumba ocorreu a inversão de papéis, em dados momentos foi uma conversa a três, onde as entrevistadoras foram colocadas na posição do entrevistado, permitindo maior fluência no discurso e proximidade, provavelmente por serem angolanas a falar com angolanas.
Contexto
Vou começar pelo fim, estes últimos anos foram difíceis em termos de perdas familiares, perdi dois irmãos, perdi uma cunhada nos EUA, a irmã do meu marido. Nestes últimos anos, tive a alegria de ver os filhos formados, de ter tris-netas nascidas nos EUA. Perdi dois irmãos, o Lolo Kiambata e o meu irmão Alberto António Neto “Betinho”, era o mais novo. Foi Piloto de Helicópteros da Força Aérea durante a guerra e esteve sempre ligado à aviação, fez em Portugal uma licenciatura em pilotagem de aeronáutica e desenvolveu um projecto bem estruturado do antigo aero-clube de Luanda. A vida prega-nos partidas e tudo que a gente pensa fazer é sempre “Queira Deus se Deus quiser”, outros virão e pegaram nele, o mais difícil é começar.
Qual o relacionamento com António Agostinho Neto?
A mãe do Agostinho Neto, a avó Maria, era prima do meu avô Luís Antônio que tinha o apelido de Bonito porque era um marinheiro muito bonito e também usava o nome Kiambata. E o meu irmão Antonio Kiambata foi buscar o nome, o meu irmão para além de se chamar Luís Antônio Neto, foi buscar Luis Antonio Neto Kiambata. O meu avô Agostinho Neto casa com a minha tia Irene que era esposa de João Luís Cardoso irmão da minha mãe. A familiaridade vem do meu avô, o meu tio João Luís Cardoso casa com uma prima directa a tia Irene Neto, irmã de Agostinho Neto, portanto tenho “os meus primos”.
A ligação com Agostinho Neto não é pelo nome Neto porque o meu pai era António Alberto Neto porque o avô era Alberto António e ele ficou Alberto António Neto ( por ser neto de Alberto António). E dá-se a coincidência de na família por parte da minha mãe haver o apelido Neto por parte de Agostinho Neto. Quer dizer é uma coincidência de nome, mas também é uma coincidência familiar, de sangue.
Cada um é dado o nome referente a alguém. Quem me deu o nome foi o missionário Dodge, amigo dos meus pais cuja esposa se chamava Eunice Dodge e o Bispo Emílio de Carvalho muito amigo do meu pai quando a filha nasceu também deu o nome a filha.
Período Colonial
Infância
Tive uma infância muito boa, sempre gostei muito de ler, gostei muito da vida familiar. Houve um episódio no tempo colonial, no Rangel, em que se dizia “ haver um homem que era o Zé Quilengues que cortava a cabeça das pessoas para com o cérebro olear as máquinas de açúcar”. E eu quando ia visitar os meus avós que moravam no Rangel, tínhamos de atravessar a mata de eucaliptos, ia com a minha mãe e dizia “oh mamãe vamos, vamos, vamos antes de encontrarmos o Zé Quilengues”.
Isso era um mito ou a realidade?
Se houver mais pessoas que digam o que eu estou a dizer, na altura eu como criança, era uma realidade, daí que eu dizia “mamã, vamos, vamos, embora!, eu tinha seis anos. Portanto, possivelmente mais pessoas poderão confirmar.
Judite partilha que na sua terra chamavam a esses homens por Valopeu que significa os europeus que se encontravam nas matas que nos cortavam as cabeças para olear as máquinas com os cérebros, recorda ter ouvido o facto por volta de 1957.
A Descriminação no Liceu D. Guiomar de Lencastre (Luanda 1963-1969)
Vim para Portugal, tinha dezoito anos, mas já tinha estado várias vezes em Portugal. Primeiro aos onze anos, quando vim das tais licenças graciosas, com os meus pais passar aqui um ano. Depois, voltei para Angola e fiz a minha formação no Liceu Dona Guiomar de Lencastre[1], agora NZinga MBandi, nome de uma rainha angolana, na altura tinha o nome de uma rainha portuguesa. Fiz a minha formação neste liceu feminino.
Ainda ontem, estive a falar com o meu marido com uma grande especificidade, quer dizer ao terminar o sétimo ano, ou mesmo até ao quarto ano, eu era a única negra nas turmas A e B porque o sistema colonial, e eu acho que era mesmo o sistema não era só burrice das meninas, era mesmo um sistema que ia eliminando a quem pudesse para que não fossem mais longe nos estudos. O meu pai sempre me dizia a mim e aos meus irmãos, éramos oito irmãos, agora somos cinco, dizia, atenção a frase era essa: “estudem para terem voz na sociedade” e dizia mais: “se a um aluno branco for pedido cinco para passarem, vocês estudem sete porque sabem que esta diferença vai passar por parte” e Portugal no tempo colonial tinha uma política (referindo-se a política segregacionista da assimilação) que era precisamente essa que era “de cortar” por isso meu pai dizia-nos aquilo. A partir do 4º ano do liceu, eu sempre estive nas turmas A e B que eram as turmas dos melhores alunos, “ sempre a mesma preta, sempre a mesma menina negra”, enquanto as outras iam ficando pelo caminho e iam para as turmas F, G, H.
Eu sei que senti uma descriminação porque além de me interessar muito pelos estudos, não podiam cortar-me as pernas como se dizia. Devido também ao meio familiar que era de pessoas estudiosas: a minha mãe era enfermeira, o meu pai era chefe de serviço do pessoal da veterinária, pertencíamos aquele tipo de família negra que vivia num bairro branco em que as coisas aconteciam por iniciativa própria.
Fui jogadora de basquete e participei de vários torneios em Portugal, tenho fontes fotográficas daquele tempo, a Maria Emília Abrantes também foi jogadora, viajamos juntas para disputas em Portugal.
Missionários em África
Para poderem ir para Angola os missionários americanos passavam por Portugal, muitos deles foram impedidos e entre eles foram os pais do meu marido que tinham como objectivo irem para Moçambique. Dentro de uma ignorância total do que se passava pelo mundo, Portugal tinha a política de pensar que os missionários iam ajudar e mobilizar quem seja autóctone dessas colônias, ajudando-as a terem um sentimento mais vivo relativamente à questão da libertação.
A percepção que tenho é de que naquela altura havia o conceito que tudo que era americano estava ligado à CIA, nos anos 60 havia dificuldade dos missionários chegarem a Angola?
Eu creio que temos de fazer uma separação daquilo que aconteceu em África e daquilo que aconteceu na Europa e temos de perguntar o porquê que naquele tempo a América estava tão interessada em enviar missionários para África? Mas, não podiam ir para África porque o sistema empresarial e comercial era muito incipiente, mas porque os americanos escolheram África para evangelizar?
Os americanos e outros povos, mas sobretudo os americanos, sempre tiveram um certo interesse em evangelizar. Assim como, os portugueses no século XIV, XV e XVI iam pela Fé e pelo Império evangelizar, nós vamos ver o mesmo sistema ou o mesmo desejo, mas com algumas nuances diferentes. Vamos ver os americanos evangélicos, os chamados missionários irem para África para evangelizar, para dinamizar e para instruir. E eu creio que em uma certa base houve uma certa inveja dos portugueses no sentido porquê que nós que somos os donos da terra não podemos sermos nós a evangelizar, a fazer crescer essa gente e temos de aceitar gente que vem de fora, não só para ensinar mas para também evangelizar? Esqueceram-se que numa óptica diferente Portugal também foi pela Fé e pelo Império, foi para outros países não para fazer o mesmo que os evangélicos americanos fizeram, mas para conquistar e subjugar a população. Portanto, eu creio que foi esta dicotomia de: “quem vai fazer o que e quem vai fazer o quê” que fez com que muitos missionários americanos e possivelmente de outros países tivessem tido o entrave por parte de Portugal para poderem ir para as colônias. Portugal perguntava-se : será só evangelizar ou vão fazer aquilo que nós fizemos no séc XV e XVI pela Fé e pelo Império? Fomos escravizar as populações africanas.
O sistema de evangelização do protestantismo é diferente do catolicismo português?
Sabe porquê? Vamos pôr de um lado o protestantismo, os missionários e por outro lado vamos pôr os portugueses católicos com a sua doutrina,entre a doutrina católica e a doutrina evangélica há muitos pontos que não se coadunam. O protestantismo dizia a um autóctone “tu por causa de Deus és igual a mim”. Enquanto que o católico português quando ia para as colônias não dizia isto. Era do género: “tu tens que te submeter a mim porque eu vou te ensinar.”
Não havia uma paridade do género e temos um campo abertíssimo sobre o que é que é o protestantismo e o que é que é o catolicismo. O que é que uma filosofia, podemos dizer, tem a ver com a outra. Deus é só um, mas o modo como este Deus é apresentado aos povos foi apresentado pelos portugueses de uma maneira e pelos americanos de outra.
E quando Portugal sendo dono das colônias se confrontou com uma filosofia a dizer que “ Deus é o nosso, não é o meu”, enquanto o catolicismo dizia – eu até acho mesmo que o catolicismo na altura em que as colônias foram catolicisadas a bíblia não é apresentada, enquanto que os americanos missionários apresentavam e davam a conhecer aos povos a bíblia e “na bíblia está lá escrito…”. Porque até muito recentemente os católicos não conheciam a bíblia. Até muito pouco tempo, os próprios Papas reconheceram que os católicos tinham de perceber, tinham de ter a bíblia, tinham de ler a bíblia, enquanto que os evangélicos sempre tiveram acesso a bíblia. É essa a grande separação, o grande hiato entre o catolicismos e o protestantismo, entre os portugueses e os missionários.
[1] ORDEM DOS ADVOGADOS Edital n.o 280/2003 (2.a série). — Para os legais efeitos torna-se público que, por despacho do bastonário da Ordem dos Advogados de 28 de Fevereiro de 2003, com efeitos a partir da mesma data, e ao abrigo do artigo 37º , n.o 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 84/84, de 16 de Março, alterado e republicado pela Lei n.o 80/2001, de 20 de Julho, e do artigo 11.o , n.o 1, alínea d), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, aprovado em sessão do conselho geral de 7 de Julho de 1989, publicado no Diário da República, 2.a série, n.o 139, de 19 de Junho de 2002, foi levantada a suspensão da inscrição da Dr.a Eunice Neto Foreid (cédula profissional n.o 5581-L), tendo sido, nesta data, feitos todos os averbamentos e comunicações. 5 de Março de 2003. — O Bastonário, José Miguel Júdice.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico