O que é um erro falso de português?
Um erro falso é uma qualquer expressão ou palavra da nossa língua que teve o azar de apanhar alguém num dia mau. No fundo, um erro falso é um pedaço de língua vítima de embirração — e, às vezes, embirração compulsiva.
Enfim, embirrações todos temos e todo o português tem o direito inalienável de não gostar desta ou daquela palavra — não devemos é confundir tais legítimas e saudáveis embirrações com a gramática da língua…
Às vezes, o erro falso nem é uma palavra. É um prefixo, um mero prefixo…
Olhemos para três belos vocábulos do português:
«desfazer»;
«desinquietar»;
«desfalecer».
O extraordinário prefixo «des» tem, nestas palavras, três significados diferentes.
Em «desfazer», o prefixo «des» tem o significado mais comum: «desfazer» é o contrário de «fazer». Por essa língua fora, há muitas palavras em que o prefixo tem esse significado: «desobedecer», «desligar»…
Mas, se olharmos para «desinquietar», vemos que nesse caso o «des» significa «inquietar», talvez com um pouco mais de força — e é um facto que é este o significado que lhe damos nesta palavra.
Isto arrelia algumas pessoas. Não pode ser! O «des» marca o contrário da palavra! «Desinquietar» devia querer dizer «acalmar»! E, no entanto, não quer.
Pois chegamos ao «desfalecer» e a coisa descamba: aqui, o «des» não significa o contrário — «desfalecer» não é o contrário de «falecer» — mas também não intensifica. «Desfalecer» quer dizer algo como «parece que falece, mas não falece»… Ui! Este prefixo é uma animação.
O «des» significa coisas diferentes conforme a palavra em que aparece.
Um horror, não haja dúvida.
Ora, na verdade, estamos perante um fenómeno banalíssimo de todas as línguas: há palavras e pedaços de palavra que têm vários significados.
Pois, a partir deste facto banalíssimo, surgem alguns discursos inflamados: «desinquietar» não pode ser! «Desfalecer» é erro! Quem usar estas palavras não sabe pensar! A língua está a morrer!
Pois digo agora eu: acusar de ilógico o uso de «des» com sentidos diferentes é tão absurdo como afirmar, com ar muito inteligente, que o meu filho, quando diz que se vai sentar num banco, está a ser ilógico — com o argumento de que banco também pode querer dizer agência bancária. Esta necessidade de encontrar uma lógica superficial, muito limitada, no funcionamento da língua é, no fundo, uma demonstração de pensamento pouco rigoroso — ou, pelo menos, pouco realista — sobre a língua.
O português está cheio de repetições, redundâncias, palavras que significam o mesmo, vários significados numa só palavra — tudo numa floresta de pequenas subtilezas e, por vezes, faltas de sentido que são o sal da língua. As línguas são um fenómeno orgânico e natural (sim, natural: explico o que quero dizer com isto no livro). São — lembremo-nos — criadas por seres imperfeitos, que foram inventando palavras e criando regras, sem querer, pelos séculos fora. Não falamos uma língua de robots! E não falamos, acima de tudo, uma língua criada num qualquer Comité de Criação de Línguas Perfeitas, comité que decretaria o significado único, eterno e imutável da palavra «banco» e do prefixo «des».
Ah, não: falamos uma língua muito humana, ou seja, feita para seres inteligentes, com o coração a bater, às vezes com força, uma língua imperfeita, desarrumada, pronta para a literatura, para as conversas do dia-a-dia, para o riso e para o prazer. E também para as zangas e os gritos, claro está.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico