Sophia

O Sol que devasta territórios

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Basta de eufemismos. O chamado Projeto Sophia não é transição energética genuína, mas uma imposição de decisões tomadas por decisores distantes, que determinam o que consideram ser o melhor para as populações locais. Batizaram-no “Sophia,” talvez para conferir um verniz de erudição a mais um empreendimento que invade o interior, invariavelmente: com pressa, promessas grandiosas e manuais de instruções indesejados, frutos de decisões alheias à realidade de quem será afetado. “Sophia,” proclamam: sabedoria, conhecimento, luz. Sim, luz, mas uma luz tão intensa que ofusca as comunidades, impedindo-as de discernir claramente quem ou o que realmente se esconde por trás do projeto.
Estamos diante de uma apropriação descarada de extensas áreas territoriais, disfarçada sob o manto da ecologia e da transição verde. É a renovação de um antigo vício português: a subjugação do interior aos mesmos interesses de sempre, com a conivência de um Estado que prega a sustentabilidade enquanto “cede” hectares a grupos económicos influentes.
O Projeto Sophia confirma uma tendência política preocupante: o interior é tratado como uma zona de sacrifício, um lugar onde se podem instalar vastas áreas de painéis solares sem grande resistência, devido à baixa densidade populacional. Muitos acreditam, equivocadamente, que isso implica uma oposição fraca. A verdade é que o interior não está vazio; está apenas ignorado. Ignorado por não ter peso eleitoral, por não possuir lobbies influentes, por não estar presente nos corredores de Lisboa, onde se decidem os investimentos “verdes.”
A dúvida de outrora tornou-se agora uma certeza: a transição energética transformou-se num pretexto para a pilhagem territorial, num negócio obscuro. E quando há negócios obscuros, as populações deixam de ser tratadas como cidadãos detentores de direitos constitucionais e passam a ser vistas como obstáculos a serem removidos.
O Estado abdicou de planear o país de forma integrada. O governo insiste que Portugal está “na vanguarda” da descarbonização e das energias renováveis. Traduzindo: está na vanguarda da entrega de recursos públicos sem exigir transparência ou contrapartidas sólidas. O Estado não planeia, não debate e tampouco fiscaliza. Limita-se a celebrar contratos, acelerar licenciamentos e abrir caminho a empresas que tratam os territórios do interior como se fossem coutadas privadas. O interior, aliás, é o cenário ideal para tal: pouca massa crítica, pouca resistência, poucos votos, pouca visibilidade mediática. Tudo se resume a um mero cálculo político. Uma postura que pode ser definida por duas palavras: greenwashing institucional e submissão.
Entre os principais impactes do Projeto Sophia, destacam-se: a impermeabilização e compactação do solo; a alteração dos padrões de drenagem; a redução da biodiversidade local; o efeito de barreira das vedações sobre a fauna; e os riscos cumulativos decorrentes da sua agregação a outros projetos de energia (solares, eólicos, mineiros, linhas de alta tensão, etc.). Estes impactes não são hipotéticos. São conhecidos, documentados e ignorados sempre que há urgência em acelerar empreendimentos “verdes,” cuja celeridade parece ser mais valorizada do que a prudência.

A democracia ambiental em Portugal tornou-se uma farsa. A chamada “consulta pública” é uma mera formalidade, na qual as populações são tratadas como figurantes em uma peça de teatro do absurdo, em um exercício ordinário de validação do inevitável. Se a tecnologia é limpa, o mesmo não se pode dizer do processo. Se a transição energética é inevitável, exige-se que seja conduzida com rigor, transparência e respeito. Que não trate as populações como meros espectadores e o território como um espaço vazio. Que os investidores saiam dos palcos das conferências para explicar, diretamente, o que pretendem fazer. Que a “sabedoria” do nome Sophia transcenda o marketing que tudo atenua.
Pilhas de documentos técnicos complexos para analisar em prazos exíguos; reuniões agendadas em horários inconvenientes ou realizadas online, limitando a participação dos mais idosos e vulneráveis; linguagem técnica incompreensível que desencoraja a leitura; e respostas vagas a quem ousa questionar. Chamar a isto participação é deturpar o verdadeiro significado da palavra, pois não passa de um exercício de fachada, um ritual burocrático para cumprir a lei e legitimar decisões previamente tomadas. Quando o Estado e as concessionárias temem o povo informado, informam o mínimo possível. E quando alguém pergunta: “Porquê aqui? Porquê assim?”, a resposta surge, frequentemente, em tom paternalista, como se estivessem a ensinar uma criança a comer a sopa: “É o futuro, senhores. Habituem-se.” No entanto, a Lei de Bases do Ambiente e o regime jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental exigem a participação efetiva das populações, ou seja, informada, atempada e compreensível. Isso não tem acontecido. A transição energética não pode ser imposta à revelia das pessoas, muito menos fingindo ouvi-las. Porquê tanto receio de cidadãos informados?
Dizem-nos que os impactos são “mínimos,” que as populações foram ouvidas e as suas escolhas consideradas, que o projeto é essencial para o país. Talvez seja importante para o país, mas a questão fundamental é se é essencial para quem vive nas regiões afetadas. E a resposta é não. E até nos dizem que a instalação de painéis é “compatível com atividades rurais.” Naturalmente, desde que a agricultura se resuma a observar painéis ao longe e a biodiversidade se limite a sobreviver entre cercas artificiais.
O Projeto Sophia nunca se preocupou com a harmonia do território, mas sim em ocupá-lo, a baixo custo. O território é tratado como mera mercadoria. O projeto não visa a sustentabilidade, mas o lucro rápido. Prefere o silenciamento ao diálogo. Esconde os impactos ambientais e ignora as comunidades. A transição energética portuguesa precisa de menos pressa e mais rigor, menos propaganda e mais ciência, menos centralismo e mais democracia ambiental. É fundamental explicar o essencial: quem ganha com isto, quanto ganha e, em contrapartida, o que o território perde para que esses ganhos existam. Mas, aparentemente, as explicações consomem mais energia do que aquela que o projeto promete produzir.
O interior está a ser pilhado em nome da transição energética. Pilhado com um discurso suave e polido. O discurso político que se repete até à exaustão: sustentabilidade, neutralidade carbónica, investimento verde. Contudo, uma análise mais técnica revela graves falhas de planeamento, falta de transparência e de participação pública. Ironicamente, os mesmos políticos que repetem “não podemos perder o comboio da transição energética” são os mesmos que perderam, há décadas, o comboio da coesão territorial. E agora, para compensar, entregam o que resta da terra, da paisagem e da autonomia.
O país anseia pela transição energética, mas com o velho preconceito de considerar tudo o que não é litoral como um espaço livre para ser ocupado, terra de ninguém, desprovida de habitantes, um palco propício a experiências que se podem dar ao luxo de falhar.

No papel, estamos perante um projeto exemplar: painéis solares, energia limpa e futuro sustentável. Na prática, é mais um empreendimento decidido nos gabinetes e anunciado tardiamente às populações. E se alguém questiona a necessidade de ocupar milhares de hectares, a resposta é tão transparente como o vidro dos painéis: não é para entender, é para aceitar. Assim, a cru, sem direito ao contraditório. A velha arrogância de quem considera o espaço rural como um vazio à espera de ser preenchido, independentemente das consequências.
Concordamos com a necessidade de aproveitar a energia solar, mas não à custa do atropelo de direitos, do desrespeito pelas populações, da destruição das paisagens e da transformação do interior num território de extração “verde.” Quando nos disserem que a energia solar é indispensável, responderemos que o respeito pelas comunidades que acolhem estas infraestruturas também o é. Energia solar, sim, mas sem repetir o centralismo autoritário de sempre. Sem atropelar quem vive nos lugares que os decisores só visitam em época de eleições ou quando o GPS funciona. E, certamente, sem transformar o interior numa manta de retalhos de projetos “estratégicos” que ninguém teve a sensatez de apresentar com a mínima honestidade. As populações não estão dispostas a submeter-se a investidores privados que exigem terreno barato e pouca resistência, e a um Estado que, em vez de planear com rigor, age como alegado “facilitador” de grandes operações de ocupação territorial. Esta retórica verde está repleta de decisões opacas e violações legais.
Instalar painéis solares não é, em si, um mal. O problema reside na insistência em fazê-lo como se o interior fosse um território desocupado. O problema reside em vender a ideia de “progresso” sem admitir que o progresso imposto sem diálogo é apenas uma versão modernista da velha extração colonialista. Desta vez, não de minério, como em Montalegre e Boticas, mas de ocupação de terrenos, degradação da paisagem e subtração de autonomia.
É caricato e revelador constatar como o discurso se adapta ao interlocutor. Nas conferências, o Projeto Sophia é apresentado como vanguarda ecológica. Nas aldeias, é um facto consumado. E quando alguém manifesta preocupação com solos impermeabilizados, perda de biodiversidade, pressão sobre as linhas de água ou impactos cumulativos, surge invariavelmente alguém, geralmente de gravata, para explicar que “é assim em todo o mundo.” Talvez seja isso que está errado no mundo.
A promessa é sempre a mesma: empregos que raramente se concretizam, compensações que mal atenuam o incómodo de quem vê a paisagem transformar-se num espelho industrial, e o eterno mantra da “energia limpa,” do “progresso inevitável,” do “bem do país.” Curiosamente, o bem do país nunca coincide com o bem das pessoas que o habitam. Se a transição energética não respeitar quem vive nos territórios, não é progresso, é uma forma disfarçada de colonialismo moderno. Sim, colonialismo, porque é disso que se trata quando o Estado e os investidores tratam regiões inteiras como se fossem um garante para cumprir metas europeias e fechar contratos milionários.
Os responsáveis políticos, juntamente com os promotores empresariais, repetem que os impactos dos megaprojetos que pairam sobre o país são “mínimos,” “mitigáveis” e “controlados.” É um insulto à inteligência colectiva. A par de outros megaprojetos, como os de exploração mineira, as grandes centrais solares têm consequências reais: espaço impermeabilizado, erosão, perda de biodiversidade, fragmentação de habitats e pressão sobre linhas de água. Mas, naturalmente, quando o objetivo é assinar protocolos e exibir gráficos atraentes em conferências internacionais, ninguém quer mencionar os lobos que deixam de circular, as aves que deixam de nidificar ou os solos que deixam de respirar.
A política energética em Portugal está a criar dois países distintos: o dos vencedores e o dos vencidos; o país que decide, lucra e aparece nos comunicados oficiais e o país que suporta os impactes, paga as consequências e vê a paisagem ser transformada sem direito a oposição. Os primeiros têm nome, cargo e fotos em eventos. Os segundos têm terra, história e a sua própria sobrevivência em jogo.
O Projeto Sophia podia ser um exemplo de governança moderna. Em vez disso, é mais um caso de arrogância institucional, desprezo pelo território e instrumentalização do discurso ambiental para legitimar decisões que beneficiam poucos à custa do sacrifício de muitos.
A energia solar é limpa. A política que a acompanha e valida, não é. E enquanto a transição verde continuar a ser imposta desta forma, de cima para baixo, de maneira autoritária e com desprezo pela democracia ambiental, o que estaremos a construir não é futuro: é apenas mais uma camada de injustiça sobre as populações de vastos territórios do interior que este país insiste em ignorar.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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