Planeamento sucessório, uma questão de vida

– “Sou português, vivo em Itália e estou preocupado com a lei que se vai aplicar à minha sucessão quando eu vier a falecer.”

– “Resido em Portugal há vários anos, e tenho dupla nacionalidade, Brasileira e Inglesa. Posso escolher alguma das leis da minha nacionalidade ou da minha residência para regular a minha sucessão? Se eu nada fizer, quem é que vão ser os meus herdeiros? As consequências da aplicação de uma ou outra destas leis são muito diferentes?”

Estas e muitas outras questões similares são hoje objeto de discussão enérgica no seio de grupo de amigos e de familiares, trazidas pela globalização dos cidadãos.

O Direito das Sucessões está intrinsecamente ligado aos conceitos e princípios vigentes no Direito da Família. Este tem condicionado as opções legislativas que, ao longo dos tempos, vão sendo feitas nas soluções adotadas na partilha de uma herança. Um exemplo paradigmático desta influência é a existência em Portugal, à semelhança do que sucede na generalidade dos restantes países de tradição romanística, da chamada “legítima”.

A “legítima” corresponde à quota indisponível de uma herança, isto é, à parte relativamente à qual o autor da sucessão (pessoa que virá a falecer e cuja herança será partilhada) não pode livremente dispor, ficando, antes, vinculado ao determinado por lei.

Ou seja, perante a sobrevivência de determinados herdeiros (os “legitimários”, que, em princípio não podem ser afastados da sucessão pela vontade do testador), a liberdade de testar fica restringida a uma percentagem da herança, variável entre 1/3 e 1/2 da mesma, dependendo da situação concreta (da qualidade e número de herdeiros legitimários existentes). O remanescente, que, frequentemente corresponde à maior parte da mesma (2/3), é partilhada a favor dos herdeiros legitimários, ainda que contra a vontade do autor da sucessão (salvo em casos muito excecionais de declaração nos termos da lei de deserdação ou indignidade sucessória do herdeiro legitimário em causa).

Assim, mesmo que o autor da sucessão não tenha quaisquer relações, por exemplo, com um dos seus filhos há mais de 30 anos, o qual voluntariamente se afastou, este filho será seu herdeiro legitimário.

A existência da “legítima” é “justificada” pela proteção da família. No entanto, e também por a definição de família ser mutável ao longo dos tempos, hoje são já muitos os que discutem se semelhante limitação será razoável.

Durante muito tempo, nas sociedades europeias, para além do parentesco, da afinidade e da adoção, o casamento era a única restante fonte das relações jurídicas familiares. Todavia, ao cônjuge, em Portugal, por exemplo, não era concedido o estatuto de herdeiro legitimário. Tal foi alterado com a Reforma do Código Civil de 1977, passando o cônjuge a integrar a primeira e a segunda classe de sucessíveis, ao lado, respetivamente, dos descendentes (filhos, netos) ou dos ascendentes (pais, avós), independentemente do regime patrimonial de bens do casamento (separação de bens, comunhão de adquiridos, comunhão geral de bens).

Esta decisão legislativa assentou essencialmente na ideia de proteção do cônjuge, por um lado, enquanto participante no aumento e conservação do património do casal, e, por outro, na manutenção do estilo de vida, em preterição dos laços de sangue do falecido com outros familiares.

Em 2018, o legislador português fez uma nova opção, passando a permitir, para os novos casamentos, o afastamento recíproco do cônjuge como herdeiro legitimário do outro cônjuge, através da outorga de convenção antenupcial com escolha do regime da separação de bens e desta especificação. Mesmo que os cônjuges exerçam esta faculdade, podem fazer doações entre eles ou outorgar testamento a favor um do outro, atribuindo-se até à parte da herança que corresponderia à legítima respetiva se não tivesse havido renúncia, acrescida da quota disponível.

A preocupação subjacente foi, novamente, a tutela dos filhos, essencialmente perante segundos e posteriores casamentos, face às numerosas formas de família de hoje em dia.

O panorama de direito sucessório comparado nos vários países é muito díspar, coexistindo regimes em que não há herdeiros legitimários (ex., Inglaterra), com regimes em que há herdeiros legitimários, sem qualquer possibilidade de renúncia prévia a essa posição, e ainda com regimes onde a renúncia é possível, como é o caso da ordem jurídica alemã, na qual todos os herdeiros (e não só o cônjuge) podem renunciar antecipadamente à herança.

Também quanto aos conviventes de facto há forte divergência, consagrando vários países regimes próximos dos regimes matrimoniais para estas relações, não obstante outros manterem uma proteção extremamente reduzida ou mesmo inexistente, com impacto na posição sucessória. As ordens jurídicas portuguesa e brasileira materializam paradigmas desta destrinça de tratamento, conferindo a ordem brasileira o estatuto de herdeiro legal ao convivente, ao contrário do que sucede em Portugal.

Uma vez que a residência das pessoas é dinâmica, estas diferenças, especialmente entre países com forte migração de pessoas entre eles, tem consequências muito profundas nos direitos patrimoniais dos cidadãos.

Perante um convivente em união de facto sobrevivo, de nacionalidade brasileira e com residência habitual em Portugal, que não outorgou testamento, a aplicação da lei portuguesa ou da lei brasileira leva a resultados frontalmente divergentes quanto à partilha da herança do convivente. Face a este caso, e de acordo com o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, em vigor na nossa ordem jurídica, a lei aplicável será a Portuguesa, uma vez que o fator de conexão é, por regra, o da residência habitual do falecido no momento do óbito, salvo se este tiver escolhido a sua lei da nacionalidade através de testamento ou se houver uma comprovada ligação mais estreita com outro país.

Assim, esta regra leva à aplicação do regime sucessório português a um número crescente de cidadãos não nacionais, residentes em Portugal, independentemente da(s) lei(s) da(s) sua(s) nacionalidade(s) ou do país onde se encontrem os seus herdeiros ou outros beneficiários.

Contudo, o Brasil não adota o Regulamento supra identificado, aplicando antes o critério da nacionalidade da pessoa falecida para determinar qual a lei aplicável à sucessão. Logo, em caso de divergência entre os herdeiros, o convivente de fato sobrevivente terá interesse em prosseguir com uma ação de inventário no Brasil, uma vez que será reconhecido como herdeiro legal e, portanto, ser-lhe-á adjudicada uma parte ou mesmo a totalidade da herança, dependendo da “qualidade” dos restantes herdeiros legais; por sua vez, os herdeiros legais face à lei portuguesa tentarão prosseguir com uma ação de inventário em Portugal, para afastarem da sucessão o convivente.

E se o convivente falecido tiver outorgado testamento a favor do convivente sobrevivente, deixando também sobrevivos dois filhos, e tendo-se mudado para Inglaterra algum tempo antes da sua morte?

Se as autoridades competentes portuguesas entenderem que a residência habitual do convivente falecido era em Inglaterra, então a lei inglesa será a aplicável, a qual, diversamente da dos países de tradição romanística, acredita na total liberdade do testador, pelo que o convivente sobrevivo terá direito a herdar 100% desta herança; já se a residência do falecido se tiver mantido em Portugal, então o convivente sobrevivo somente terá direito à quota disponível, que representa no caso 1/3 da herança, no máximo, uma vez que poderão até ter sido feitas doações em vida imputáveis à mesma, que, consequentemente, a reduziriam. Portanto, é essencial, para a segurança jurídica dos cidadãos e seus beneficiários que tenham ligações a mais do que um Estado, que o planeamento sucessório seja atempada e detalhadamente levado a cabo, de forma a dirimir dúvidas e a obter os resultados mais próximos possíveis do pretendido pelo autor da sucessão.  

Marta Costa, Abreu Advogados.

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