O intrincado mundo dos vinhos
O cliente chega ao supermercado e observa rapidamente a mancha de vinhos nas prateleiras. Vê menos marcas conhecidas, daquelas que pontuavam a sua memória desde sempre. Mas vê inúmeros vinhos em promoção. As marcas soam a qualquer coisa muito próxima, talvez já tivesse ouvido falar, ou até provado: Mula Velha, Coutada Velha, Pêra Grave, Pêra Doce… Tudo marcas diferentes, mas familiares. Serão parentes do Barca Velha e do Pêra Manca? Muitos deles são Premium, Signature. E também existe a versão das marcas próprias feitas por enólogos sonantes. Todos parecem especiais, com os seus rótulos clássicos, bem desenhados. E as promoções são imperdíveis: vale a pena comprar uma caixa inteira, se o ordenado tiver sido recebido nessa semana. Um vinho que custa €12,00 e está na prateleira a €3,00? É levar.
Esses clientes não vão a garrafeiras. Parecem-lhes muito caras. E os vinhos são iguais e não têm estas promoções fantásticas dos supermercados. O “comércio local não consegue competir com as grandes superfícies”; “nas garrafeiras só fazem desconto a clientes fidelizados, que aparecem muitas vezes para comprar”; e “bem podem fazer descontos porque têm margens enormes”. Depois, fazer perguntas a quem sabe é quase assumir uma espécie de incompetência. Aprender sobre vinhos, quando se bebe desde sempre na adega da aldeia onde se nasceu? É desistir da sua própria identidade. Afinal de contas, todos somos especialistas em Portugal: sabemos tudo sobre política e futebol. Somos muito melhores gestores do que aqueles que realmente têm de gerir… E somos portugueses, pelo que nascemos demolhados em sopas de cavalo cansado. Conhecemos tudo sobre tudo. E ainda mais sobre vinho. Claro.
Para esses clientes, os produtores têm uma vida de rei. Vivem em boas casas, passam o dia em almoços e jantares com os amigos. Fartam-se de viajar. E depois querem ser ricos, à custa das “margens brutais” que praticam. São os “Senhores das Quintas” e dos “Solares”. Ninguém se lembra já do que o seu Pai ou Avô passava por ter que cuidar das vinhas. Para alguns, o vinho nasce em garrafas – da mesma forma que a carne é criada já fatiada, em embalagens fechadas a vácuo, fáceis de arrumar no frigorífico.
Enquanto isto se passa, o produtor acorda às 06h00 da manhã, todas as manhãs. Há alguns anos começou a analisar os solos. Teve que decidir o porta-enxerto adequado: nem todos os tipos de raíz se adaptam às necessidades daquele perfil de terreno. Trabalha anualmente a terra com matéria orgânica e há sempre correcções a fazer: azoto, potássio, fósforo, magnésio, boro… De cinco em cinco anos faz tratamentos com calcário, para combater a acidez do solo. Plantou trevo entre as linhas:
o material vegetal favorece o equilíbrio do habitat. As castas que tinha plantadas nas vinhas velhas eram fantásticas, mas produziam pouco. Como o mercado exerce uma grande pressão sobre o preço, quando plantou as vinhas novas adoptou castas internacionais, mais produtivas. Mas pelo menos uma delas nem sempre amadurece bem: ou castiga os lotes ou tem de contratar mão-de-obra extra para fazer a vindima mais tarde. Depois de muitas conversas com engenheiros e especialistas, também selecionou os melhores clones de algumas castas nacionais, para ver qual seria o resultado no seu terroir. Contratou um enólogo com provas dadas, mas o resultado nem sempre é brilhante. Há imponderáveis climatéricos que obrigam a uma adequação enológica. E a um aumento não previsto do investimento, claro. O problema é quase sempre a quantidade de cubas para armazenar os vinhos que demoram a ser engarrafados e vendidos. Isto, nos anos bons; nos outros, o problema é mesmo a falta de uva. Envelhece os seus melhores néctares em barricas francesas. Mas a falta de mão de obra na adega é um problema recorrente. Os “materiais secos”, como as garrafas, os rótulos, as cápsulas e as rolhas aumentam de preço todos os anos. E a agência de comunicação – que trata da imagem e mantém o website – apresenta ideias que nunca podem ser concretizadas, por falta de capacidade de investimento. Quando, finalmente, o vinho está pronto, o distribuidor de sempre trocou a sua marca por um concorrente. É necessário voltar a negociar com os clientes, apresentar os vinhos em garrafeiras, trabalhar a distribuição ou vender com margens esmagadas aos grandes retalhistas. Finalmente, consegue colocar o vinho no mercado. Mas depois tem de o fazer rodar. Tem de criar moda, acompanhar as tendências, criar relação directa com os consumidores. E iniciar o ciclo, ou pelo menos uma parte dele, todos os anos.
É claro que nem todos os clientes são assim. É claro que nem todos os produtores são sérios. É claro que nem todos os distribuidores merecem desconfiança.
Mas há duas conclusões que ninguém pode negar. Primeiro, o consumidor que julga ser o mais atento e precavido paga invariavelmente mais por vinhos piores. Depois, a vida de produtor é realmente a melhor que alguém pode ter: porque só mesmo quem tem uma grande paixão pelo vinho e pela terra toma a decisão de a conservar. E, apesar de todos os obstáculos e falta de reconhecimento, trabalhar com paixão é um luxo que nem todos conseguem manter.
De qualquer forma, hoje em dia, trabalhar com paixão não é sempre suficiente. É necessária uma certa dose de loucura para preservar a Natureza e fazer face ao novo espírito dos Homens.