João Costa Ferreira

© Paul Robion

João Costa Ferreira é um pianista e investigador português detentor do “Diplôme Supérieur d’Exécution” da École Normale de Musique de Paris e doutorado em Música e Musicologia pela Sorbonne Université. Embora o seu reportório abranja todos os estilos desde o barroco, João Costa Ferreira especializou-se na música do século XIX e da primeira metade do século XX. Nos seus projetos a solo e música de câmara, tanto se interessa pela interpretação do grande reportório clássico como pela descoberta de compositores esquecidos e pela encomenda de obras aos compositores contemporâneos. Tem tido um papel ativo na reabilitação e valorização do património musical português, nomeadamente através da publicação e gravação das obras de José Vianna da Motta. O seu trabalho tem sido premiado por diversas instituições culturais.

Quando se iniciou a paixão pela música? E a escolha do instrumento, foi sua ou dos seus pais?

Acho difícil dizer quando começou o gosto por uma coisa. Recordo-me que nos meus cinco ou seis anos adormecia a cantar. Nessa altura, o gosto pela música era evidente. Comecei as minhas primeiras aulas de música no 1º ciclo do ensino básico, com sete anos de idade. Aprendíamos na escola a tocar aquelas flautas de plástico que se compravam nos supermercados. Mais tarde, no primeiro ano do 2º ciclo, uma professora de música acompanhou os seus alunos num teclado. Foi aí que eu próprio disse aos meus pais que gostaria de aprender a tocar piano.

Faz o Conservatório de Artes do Orfeão de Leiria e aos 19 anos sai de Portugal. Conte-nos, como surgiu a oportunidade de ir estudar para Paris e como foi vivida, então ainda tão jovem, esta aventura sozinho.

A ideia de ir estudar para Paris foi alimentada pelo meu professor de piano do Orfeão de Leiria, Luís Batalha. Para ele, era necessário eu ir estudar para fora se procurava um elevado nível de exigência e se ambicionava fazer carreira na área. Não sei se isso era mesmo verdade mas tinha-o como uma referência. Não pensei duas vezes e fui estudar para Paris. Contudo, não foi uma aventura que vivi sozinho. Naquela altura, vários alunos dele já se encontravam a estudar em Paris. Com a ajuda deles a minha adaptação foi facilitada, embora eu não falasse a língua. Inicialmente, o meu professor de piano dava-me as aulas em inglês mas isso não facilitava a minha integração. A certa altura, pedi-lhe que me desse as aulas em francês. A partir daí ganhei coragem e comecei a tentar falar em francês no dia-a-dia. Creio que, no que toca à minha integração na nova cidade, o maior obstáculo que enfrentei foi mesmo a língua. Fora isso, vivi essa aventura naturalmente. Estava focado em objetivos muito concretos que eram a obtenção dos diplomas da École Normale de Musique de Paris, diplomas muito difíceis de obter já que era necessário todos os anos prestar provas em concursos da escola onde o nível era altíssimo. Esses concursos obrigaram-me a concentrar-me e, talvez por isso, as demais dificuldades que fui enfrentando ao longo desta aventura não tivessem para mim grande importância.

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Em média quantas horas toca por dia? E no caso dos concertos, como é feita a preparação? Dedica ainda mais tempo?

Hoje em dia, a média deve andar pelas quatro ou cinco horas. Quando era ainda estudante, a média devia andar pelas sete ou oito horas mas creio que com o tempo todos nós, pianistas (pelo menos), reduzimos o tempo de trabalho e aumentamos a eficácia do trabalho, reduzimos a quantidade mas aumentamos a qualidade. A preparação dos concertos varia muito consoante a sua natureza: se for um concerto a solo, passo imenso tempo sozinho fechado no meu estúdio a estudar as obras e, se tiver possibilidade, peço a alguém para me ouvir tocar como se fosse um concerto; se for um concerto de música de câmara, para além de tudo isso tenho de ensaiar várias vezes com os outros músicos pois é importante que todos respeitem as mesmas intenções musicais e que sintam a respiração de cada um. Na preparação de um concerto, o período durante o qual dedico mais tempo ao piano é precisamente o da aprendizagem de novo reportório já que isso exige a leitura musical da partitura, a sua descoberta e, porventura, a sua memorização.

O João para além de pianista é investigador. Em qual dos papéis se sente mais realizado?

Não consigo responder à questão porque as minhas ambições enquanto pianista e enquanto investigador não são comparáveis, na medida em que tenho maiores ambições enquanto pianista. É possível que me sinta mais realizado enquanto investigador, embora isso não signifique que tenha feito mais coisas enquanto investigador nem que me sinta frustrado enquanto pianista. O sentimento de realização em cada um desses papéis está relacionado com a ambição que tenho em desenvolver cada um deles.

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Tem tido uma grande preocupação na divulgação do património musical português, nomeadamente através da gravação de obras inéditas. É uma missão para levar mais longe os nomes dos compositores portugueses?

Uma vez que me tenho debruçado em particular sobre reportório inédito, eu diria que se trata, em primeiro lugar, de um trabalho que procura dar a conhecer aos portugueses uma parte desconhecida do seu próprio património musical. Mas, naturalmente, a divulgação internacional dos nomes dos compositores portugueses faz parte dos objetivos do meu trabalho. Por exemplo, o meu primeiro disco a solo com obras inéditas de José Vianna da Motta, lançado em 2018 na etiqueta Grand Piano Records, é distribuído em praticamente todo o mundo. Para além disso, tenho tocado com alguma frequência as suas obras, assim como as de António Fragoso, Luiz Costa, Alexandre Rey Colaço, Fernando Lapa, Sérgio Azevedo, António Victorino d’Almeida entre as de muitos outros compositores portugueses, em Paris, Bruxelas, Amesterdão e outras cidades europeias.

Vemos muitos jovens músicos, incluindo pianistas, a saírem de Portugal, a estudarem nas melhores escolas de música no estrangeiro e a serem obrigados a regressar à sua terra natal porque terminada a sua formação não têm no mercado oportunidade para ficarem a trabalhar. Essa é hoje uma realidade em todo o mundo e sobretudo falando de música erudita, ou existem ainda alguns países em que os jovens podem apostar?

Não tenho a certeza que a maior parte desses jovens seja obrigada a regressar a Portugal. Não conheço as estatísticas sobre essa realidade, mas imagino que muitos o façam por apego às suas raízes. O que tenho visto, sobretudo, é jovens talentosos saírem de Portugal e acabarem por ingressar em grandes orquestras europeias. Mas esses poderão talvez ser casos excecionais. Muitos acabam por optar exclusivamente pela via do ensino já que desenvolver uma carreira artística não é fácil. Nem no estrangeiro nem em Portugal. Não sei se existem alguns países onde se deva apostar. A única coisa que posso dizer é que às vezes é preciso tempo, porque o sucesso pode depender da criação de uma rede.

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Um médico termina o seu curso e vai para o SNS; um engenheiro civil vai trabalhar para uma empresa de construção. E um pianista? Como estrutura e prepara a sua carreira?

O ensino (privado ou público) é sempre uma via possível para quem termina os seus estudos em piano, seja numa universidade, numa escola ou conservatório superior de música. Os instrumentistas de orquestra têm ainda a possibilidade de ingressar numa orquestra. Não é o caso dos pianistas já que, salvo exceções, o piano não faz parte do corpo instrumental da orquestra. Relativamente à estruturação e preparação da minha carreira artística, não posso dizer que tenha as coisas pensadas de forma muito precisa. Vou fazendo as coisas em função dos meus gostos, do interesse que os projetos podem gerar mas também das oportunidades que vão surgindo. Se tivesse de definir a natureza dos projetos em que estou envolvido neste preciso momento, fá-lo-ia determinando duas categorias: uma primeira onde se incluem os projetos de divulgação da música portuguesa e uma segunda onde se incluem os projetos dedicados ao grande reportório clássico. Em muitos destes projetos, a divulgação da música clássica através de concertos-comentados está presente como uma componente didática que considero fundamental para alcançar novos públicos.

Das inúmeras salas onde já atuou, em qual se sentiu melhor a tocar? E qual o concerto que mais gostou de ter dado?

Regra geral, as salas onde preferi tocar foram aquelas que estiveram cheias, pela energia que isso me transmite. Por isso gostei tanto de ter tocado, por exemplo, em 2018 no Museu Nacional da Música para festejar os 150 anos do nascimento de José Vianna da Motta, no próprio dia do seu aniversário (22 de abril); em 2018 na Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do lançamento do livro da correspondência de José Vianna da Motta com Margarethe Lemke; em 2019 na Sala Gótica da Prefeitura de Bruxelas no âmbito do encerramento das celebrações do Dia de Portugal.

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Como viu o boicote cultural à Rússia – que felizmente em Portugal não aconteceu – proibindo concertos e obras de compositores russos?

O contexto de uma guerra é complexo. Muitas questões ultrapassam, aliás, a minha compreensão. Se esse boicote foi pensado no quadro de sanções económicas – à semelhança daquilo que procuravam obter com o bloqueio do sistema SWIFT a alguns bancos russos, por exemplo –, ou pensado para procurar desencadear uma revolta do povo russo que pudesse porventura dificultar a ação do Kremlin, acho que a questão é discutível. Se esse boicote visou simplesmente anular a expressão da cultura russa e dos seus artistas conscientes de que isso não teria qualquer impacto desfavorável naquilo que eram os desígnios da invasão à Ucrânia, então parece-me inútil. Seria como se eu deixasse de tocar ou ouvir Rachmaninoff ou Tchaikovski, de ler Dostoiévski ou Tolstói, de ver uma peça de Tchekhov ou um filme de Tarkovski. Que impacto substancial teria isso para além de limitar os meus horizontes?

Quais são os seus projetos para 2022 e onde o vamos poder ouvir nos próximos tempos?

Preparo atualmente a gravação do 2º volume de uma série discográfica que intitulei José Vianna da Motta: Poemas pianísticos, dedicada à obra de infância do compositor, mas só deverá ser lançado em 2023. Em princípio, este disco será apresentado num concerto que darei no Centro Cultural de Belém (em data ainda por determinar). Antes disso, no dia 7 de dezembro deste ano, levarei as obras desse disco a Leiria (em sala ainda por determinar) e, no dia seguinte, ao Palácio Nacional da Ajuda. Começo também agora a levar às salas um programa com obras de Chopin, Beethoven, Rachmaninoff e Scriabin que intitulei “Recital em dó sustenido menor” e que visa celebrar o romantismo musical do século 19. Em breve, lançarei juntamente com o pianista francês Bruno Belthoise, um álbum duplo dedicado ao repertório português e francês para piano a quatro mãos. Ele será apresentado no dia 15 de outubro deste ano em Paris, no Regard du Cygne.

O que representou para si o recente doutoramento na Sorbonne Université – Faculté des lettres, recebido por unanimidade e com felicitações?

A obtenção desse grau académico com essas menções foi, naturalmente, uma enorme satisfação, não apenas por ver reconhecido o enorme esforço e persistência que me acompanharam ao longo dos últimos seis anos mas também pela alegria que isso deu aos meus pais, algo que eu considero que lhes devo pelo apoio que sempre me deram.

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