A chuva não deslarga?

O jornal Observador pôs esta frase num título: «Chuva não deslarga, bom tempo só a partir de domingo.»
Em fóruns da internet (ah, devia escrever fora, eu sei, eu sei) — lá veio muita gente rasgar as vestes. Não se faz!
Não se faz!
Ou porque a palavra não existe ou porque não é adequada.
Sim, não é adequada… normalmente. Mas, neste caso, o jornalista usou uma palavra informal para denotar, de forma que me pareceu divertida, o desespero dos portugueses na rua que olham para o céu e só vêem chuva.
A chuva não deslarga, de facto. O registo informal donde vem a palavra é adequado neste título em particular.
Estou a ver mal? Bem, se de facto o jornalista não tem noção dos registos da língua, o resto do texto estaria cheio de expressões informais. Mas não está. Parece-me perfeitamente legítimo achar que o jornalista usou a expressão informal de forma consciente.
Claro que para perceber isto é preciso fazer uma leitura com menos alarmes na cabeça, mais descontraída, se quiserem mais inteligente… (Desculpem lá se ofendo os ofendidos.)
Podia o jornalista ter usado «a chuva não pára»? Podia, mas não era a mesma coisa. Foi uma piscadela de olho ao leitor.
Ora, o leitor parece que não quer piscadelas de olho. Quer tudo ali muito direitinho, jornalistas aprumados e a língua muito, muito bem comportada. Nada de sair do risco!
Em resumo: como os obcecados dos erros não têm sentido de humor (acham que têm quando se riem dos outros, mas isso é outra coisa), acharam logo que o pobre jornalista não sabia que a palavra era informal. Caíram-lhe em cima à grande (posso usar «à grande», ou tenho de procurar alguma expressão mais formal?).
Os comentários irados diziam coisas como: a palavra não existe no dicionário (claro que existe!), «des» quer dizer negação (e por isso «deslarga» significa «agarra», o que é não perceber como funciona este prefixo em particular), entre outros impropérios (e lá veio alguém dizer que isto tinha sido invenção do acordo).
O jornal, perante a tempestade que não deslargava, alterou o título.
Será que o pessoal largou o osso? Não! Exigiu mais! Queria pedido formal de desculpas!
Meu Deus, isto é o quê?
É uma forma de ir matando a língua. Sim, o jornalista, para a próxima, vai limitar-se a usos inócuos da linguagem, vai arriscar menos, vai escrever pior! E os comentadores furiosos vão continuar na sua sanha à procura da próxima vítima, enquanto escrevem comentários que, de tão indignados com os «deslargas» desta vida, vão carregadinhos de gralhas. (Ironias, ironias…)
Suspiro e fico um pouco mais triste. Deve ser da chuva.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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