Descobrimentos e os manuais escolares

Sim, demos novos mundos ao mundo

© Luca_Galuzzi

Parece ser bem claro que Portugal e a sua História, ímpar a nível mundial, provocam azia a muita gente. Em 2018 o Conselho da Europa ordenou que nossos manuais escolares passassem a dar especial destaque, sempre que fossem referidos os Descobrimentos, “à discriminação e à violência” que a eles estão subjacentes. Segundo os inquisidores de Bruxelas havia que “repensar o ensino da história e, em particular, a história das ex-colónias”, alertando, com elevadas doses de condescendência, para o “contributo dos afrodescendentes, assim como dos ciganos, para a sociedade portuguesa”, devendo ser também este assunto, pela sua relevância, devidamente “tratado nos manuais escolares”. Não satisfeitos com a atrevida atoarda de clara ingerência em matérias que não lhe dizem respeito, e aproveitando a conveniente boleia dos “ciganos e dos afrodescendentes (certamente a versão europeizada do politicamente correcto afro-americans, neste contexto uma classificação desacabida de todo, pois negros e pardos são desde os primórdios do século XV, no nosso rectângulo, tão portugueses quanto os brancos), acusavam-nos de sermos racistas e homofóbicos – vejam lá, a nós, que até somos, e de longe, dos menos xenófobos e mais tolerantes para com os homossexuais; uma caminhada por Lisboa, uma das cidades mais gay-friendly que conheço, comprova isso mesmo. E a esse respeito atreveram-se os censores de Estrasburgo a sugerir que as nossas forças da ordem passassem a andar com câmaras de vigilância nos carros e nos uniformes para, está-se mesmo a ver, apanhar em flagrante toda essa catrefada de agentes “homofóbicos” e “racistas” que por aí anda. Não restam dúvidas: prossegue, impune e impante, o ataque cerrado à nossa identidade, jogando-se aqui a cobarde e dupla cartada de alteração e enviusamento da história, neste caso sob o ponto de vista e à luz dos padrões dos actuais donos da Europa. Os colaboracionistas de trazer por casa, rafeiros por natureza, esses, como é previsível, tudo fizeram (e fazem ainda) para que as ordens emanadas do Soviete supremo fossem cumpridas à risca. Aliás, é possível até que a iniciativa censura tenha partido deles. Não me admiraria nada. Não era (e é ainda) esse uma dessas temáticas fracturantes que tanto gostam e às quais vão buscar o seu sustento e razão de ser? Acertadamente escreveu um dia o visionário escritor George Orwell: “Quem controla o presente, controla o passado; quem controla o passado, controla o futuro”. A verdade é esta: a Europa, que no presente nos controla, quer manipular o nosso passado para assim melhor nos poder subtrair o futuro, deixando-nos depois a sua total mercê. Ou seja, e trocando isto por miúdos: entendia (e entende ainda) o Conselho da Europa que era incorrecto ensinar às nossas crianças que demos novos mundos ao mundo, que fomos pioneiros nos quatro cantos da orbe, que escancaramos de par em par os pórticos de todas as estradas do mar para que as restantes nações pudessem enriquecer sem ter de sacrificar quase toda uma geração de aguerrida gente do mar, como aconteceu connosco. Na perspectiva dos nossos credores devemos incutir nas nossas crianças o ódio aos seus antepassados, pois eles foram malvados e muito cruéis. Mas não ficou por aí no campo das sugestões, a atrevida Gestapo comunitária.

Também o pré-anunciado Museu das Descobertas (que pelos visto ficou no capítulo das intenções) não deveria ter esse nome, pois com isso corria-se o risco de insultar aqueles com quem contactamos à quinhentos anos e que hoje em dia nos recebem de braços abertos sem qualquer animosidade ou complexo. Pretendiam os comissários da Stasi europeia privar-nos do mais admirável momento da nossa História, retirando-nos a pouca auto-estima que nos restava. Do presidente Marcelo e do Primeiro-ministro Costa esperava-se, no mínimo, um protesto veemente contra esta afronta à memória dos nossos antigos. Basta de vexações e insultos. Mas, nada. Nenhuma reacção. E hoje a sanha persecutória ao período mais fértil da nossa História está mais virulenta do que nunca.
Um ano depois de eu ter nascido escrevia José Hermano Saraiva o seguinte: “todo o passado é raiz, todo o futuro é destino, todo o presente é enigma. O espaço nacional cristaliza, em cada tempo da História, como laço enigmático que liga o passado ao futuro. Um laço que vem forjado por toda a experiência nacional anterior. Que tem a força e a fluidez do rio que vem de longe que vai embeber na terra da nascente, mas ainda para além dela prossegue no curso subterrâneo das origens, já fora do horizonte que a memória dos homens consegue prescrutar”. Ora, é esse rio, esse caudal, que nos compete agora defender. Quanto à inveja da Europa, compreende-se. É que os portugueses, embora tivessem despertado tarde para o Renascimento, revelaram-se no processo agentes concretizadores da ideia de um espaço cultural a nível planetário, e – de novo Hermano Saraiva – “fizeram prova da plena consciência da importância desse conceito na definição global de um espaço português”. Essa nossa postura nitidamente cultural, por oposição à soberania meramente política seguida pelos que vieram na nossa peugada, resume-se no seguinte comentário do cronista João de Barros: “as armas e os padrões portugueses, postos na África, na Ásia, e em tantas mil ilhas fora da repartição das três partes da Terra, são materiais, a pode-as o tempo gastar; não gastará porém a doutrina, costumes e linguagem que os portugueses nessas terras deixaram”. Nem mais. Toma e embrulha, ó Conselho da Europa!
Deixemo-nos de falsas modéstias. Portugal foi o país que mais impacto teve à escala planetária e cujas acções mais positivamente influiram no decorrer do curso da Humanidade. Posto isto, releiamos – questão de refrescar a sempre coxa cultura geral – o livrinho Data e Factos das História do Mundo, da autoria de Vasco Hogan Teves (velha colecção Livros RTP) e constatemos uma vez mais que enquanto a Europa se inter-digladiava com guerras de Sete, Trinta, Cem anos, guerras de Duas Rosas, com espinhos ou sem eles, e ainda Guerras na Itália, com um Nicolau Maquivel a teorizar a arte da cínica e universal sacanagem de que os fins justificam os meios e um Martinho Lutero a insurgir-se face à depravação dos valores cristãos e rendição sem precedentes daqueles que deviam ser os servidores da Igreja de Cristo aos jogos do poder, ao luxo e a todo o tipo de excessos; enquanto na Europa os Habsburgos punham em prática a sua táctica de arrecadação de territórios que cedo os transformariam na maior família-império de que há memória; enquanto essa bárbara e terratenente Europa, de Norte a Sul, do Mediterrâneo ao Báltico passando pelos Balcãs e o Cáspio, se esgadanhava num arreganhar de dentes, chegando com assustadora frequência a vias de facto por causa de um quinhão de terra aqui, um pedaço de horto acolá, testando sempre o peso das alabardas, o gume da espada e a flexibilidade do fio do arco ou o poder de arremesso das azagaias e das lanças, Portugal, esse aparentemente risível reininho ao fundo do continente com menos de milhão e meio de criaturas, cerceado o cordão umbilical e passadas as dores de crescimento, fitava longamente o oceano e um instante depois já nele navegava, numa entrega total, pronto a desvendar-lhe os mistérios mesmo que isso lhe custasse o sangue, o suor e, quantas das vezes, a vida.

Quer a Humanidade maior feito do que este? “Como dizia o historiador António Borges Coelho, numa memorável entrevista à agência Lusa: “Não brinquem comigo! É preciso uma coragem brutal para fazer uma viagem de navio, de mais de meio ano, nas condições técnicas da época, enfrentar as tempestades, as doenças no mar – quase metade das pessoas ficava no caminho”. Borges Coelho, decano e voz respeitadíssima em assuntos referentes ao nosso admirável passado, em boa hora saira a terreiro, alertando para a premente necessidade de se fazer um museu dedicado à Expansão Portuguesa, por ter sido “um período fantástico na História da Humanidade”, de que “não temos de ter vergonha”. O manifesto de Borges Coelho – como já o fora antes o dos não menos crendenciados historiadores João Pedro Marques e Luís Filipe Tomás – surgia na hora certa, porque verdadeiramente urgia – e urge agora, mais do que nunca! – aparar as unhas aos desonestos e anticientifícos terroristas culturais que pretendem torpedar a nossa História deixando-a orfã dos seus momentos mais substantivos. Dizia António Borges Coelho, homem de profundas convicções de esquerda, portanto, insuspeitíssimo em tão fracturante matéria: “É um absurdo esta polémica. O passado é o passado. A primeira grande globalização é uma coisa fantástica para qualquer povo. Não temos que ter vergonha, e mesmo os povos que foram oprimidos, não foram só oprimidos. [Afonso de] Albuquerque [1453-1515] dizia que não podia tirar a cabeça do navio, pois corria risco de ficar sem ela”.

Nesse processo de expansão, Borges Coelho realça a “personagem importantíssima, um papel que ninguém lhe pode tirar” que foi o Infante Dom Henrique, “obreiro da bula que permitiu a Expansão Portuguesa, e quem equipou os barcos e congregou os homens”. Esse mesmo Infante que um desses revisionistas cujo desporto predilecto é cuspir no sopa que comem, no caso, docente numa universidade de Nantes, no depoimento prestado num dos episódios de um documentário sobre a escravatura produzido pelo canal franco-germânico ARTE, apodaria de “mero chefe de um grupo de salteadores”. Chamar miserável a um indivíduo destes é um forma de elogio. Mas deixemos os canitos latir, pois o importante é que a caravana prossiga a sua derrota… O historiador, autor do Questionar a História (1983), lembra ainda o carácter multifacetado dessa obra de referência da autoria de João de Barros, tão e somente o maior cronista de que há memória, que é as Décadas da Ásia. Como lembra, e bem, o insigne historiógrafo, “não estão lá só os feitos dos portugueses, estão também os dos outros povos, e estão os costumes e a geografia. Os próprios povos aprenderam algumas coisas com aquilo que os portugueses fizeram naquela época”. E é por isso que defendia – como eu defendo – “um museu com tudo lá e não só o retrato do herói com as flores em baixo, mas que refira os vários povos”. Um museu à maneira, que cale de uma vez por todas esses engravatados fedelhos do Conselho Europeu que deviam pôr-se de joelhos e beijar o chão sempre que chegassem a Portugal, em sinal de reverência. Nada devemos à Europa. A Europa é que nos deve tudo. Sem Portugal provavelmente estariam ainda a cultivar as berças e à mocada uns com os outros, incapazes de fazerem Mundo como o fizemos nós. Eles apenas nos seguiram na esteira. Como sabiamente, e de forma metafórica, dizia Agostinho da Silva, “isso dos Descobrimentos só nos trouxe prejuízos”. E agora, acrescento eu, passados todos estes séculos, levamos ainda com o desprezo e a ingratidão desses ditos nossos pares europeus.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Acompanhe-me nesta magnífica viagem

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