Fernão Mentes? Não, não minto!

Peregrinação, obra pioneira e fundamental

© Vitor Oliveira

Há trinta e tal anos, estando de visita ao Uzebequistão, país da Ásia Central que acabara de obter carta foral da gigante União Soviética recentemente desmantelada, travei conhecimento com um dos autores dos populares guias de viagem da Lonely Planet. Jonh King, caderno de apontamentos na mão, estava no átrio da estação de camionetas de Tashkent, anotando todos os horários de partidas e chegadas. Se matéria tal nunca me despertara interesse, este encontro fortuito levou-me a tomar a decisão: jamais escreveria guias de viagem. Mesmo quando tive de acrescentar esse género de informação aos artigos que redigia, fi-lo sempre a contragosto. Compilar dados, mais ou menos importantes, para que alguém “seguisse” as minhas peugadas, não era coisa que me entusiasmasse.
King falou-me de si e da mulher que nessa mesma altura “fazia pesquisa” tendo em vista um futuro guia da Lonely Planet dedicado a Portugal, nação pela qual John assegurava ter “grande fascínio”. Apercebi-me, também nessa altura, e apesar das palavras simpáticas do inglês, do relativo interesse que suscitava o meu país. Apesar do seu peso de vários séculos de história, só então a editora australiana estava disposta a dedicar-lhe um guia. Editora essa que nunca acertou nas suas análises históricas a respeito dos países que de, uma forma ou outra, estiveram ligados a Portugal.
Talvez devido à confessa simpatia de King pelo meu país, acedi em dar-lhe informações acerca da zona fronteiriça entre o Turquestão chinês e o agora livre Quirguistão, país onde o autor não tinha posto os pés.
Um mês depois voltei a cruzar-me, já no Cazaquistão, com mais um homem da Lonely Planet. Um outro Jonh, mas de apelido Lord e de nacionalidade australiana. Dessa vez forneci informações sobre uma determinada zona longínqua a troco de um seu conhecimento, um funcionário dos serviços de imigração (que por sinal aprendera português em Moscovo), que me livrou da alhada em que me tinha metido por ter ultrapassado o limite de dias que o visto cazaque me permitia.
Na época de Fernão Mendes Pinto não existiam guias de viagem, nem viagens de recreio organizadas ou por conta própria. Quem partia ia ao desconhecido e frequentemente pagava a ousadez com a própria vida. Vivia-se então a verdadeira época das viagens e das descobertas, com tudo o que isso tem de fascinante e de horrível. Por isso mesmo “desculpo” todas as inexactidões, exageros e até mesmo os cenários e episódios “inventados” por Mendes Pinto com o claro objectivo de enriquecer e tornar mais atractiva e abrangente a sua narrativa. Tal não lhe tira qualquer mérito, pois o viajante de Montemor-o-Velho não foi mais ou menos “inventor” que os seus contemporâneos ou antecessores.
Pude, através de dois livros – um de fotografia e outro de crónicas de viagem – comprovar, através de imagens e de algumas experiências pessoais no terreno, que aquilo que Fernão Mendes Pinto descreve na Pereginação – cujo valor literário como narrativa descritiva é, em minha opinião, nitidamente superior ao Il libro di Marco Polo detto Milione da autoria do famosíssimo mercador veneziano – corresponde a uma realidade que ele, no seu essencial, viveu. Infelizmente, Mendes Pinto não tem ainda o reconhecimento, tanto a nível nacional como internacional, que merece. Longe disso. Pelo que, se através dos livros mencionados consegui despertar o interesse pela Peregrinação e pela ainda praticamente desconhecida gesta portuguesa no Oriente terei conseguido o meu objectivo.
No cômpito geral, Peregrinação tem muito mais de verdade do que de fantasia. E quanto mais se investiga sobre a obra, maior crédito se dá às descrições feitas pelo seu autor. Descrições que recriam experiências de dezenas de anos recuperadas através de uma memória prodigiosa.

À semelhança dos viajantes da sua época e também das épocas posteriores, inclusive a presente, Mendes Pinto descreveu muito do que ouviu falar. E soube-o fazer com engenho de mestre. O processo utilizado para registar as memórias assemelha-se ao método de um escritor de viagens da actualidade. No terreno vai anotando o que observa. Sempre que pode adquire livros e mapas relativos à região que visita. Só depois, já em casa, conclui com informação adicional, entretanto ou previamente compilada. Terá sido isso o que mais ou menos fez o nosso Fernão. E nesse sentido há que prestar justa homenagem aos antecessores do aventureiro, seus contemporâneos, em toda Ásia, com particular destaque para a China, país que mais fascínio provocava naquela época. Mendes Pinto certamente baseou muita da sua escrita em relatos do anónimo responsável pela Enformação da China e de cativos portugueses que haviam viajado pelo interior da China, caso de Mateus de Brito e Galiote Pereira, autor de Algumas cousas sobre a China.
Já em Portugal poderá ter consultado obras como a História do Descobrimento e Conquista da Índia de Fernão Lopes de Castanheda; A Verdadeira Informação do padre Francisco Álvares; Comentários de Brás de Albuquerque; a Ásia – Década III de João de Barros; o Tratado das Cousas de China do frade dominicano Gaspar da Cruz, assim como os mapas do cartógrafo Luís Jorge de Barbuda.
Como escreve o historiador Rui Manuel Loureiro: “a obra do célebre andarilho, apesar de se basear num larga e comprovada experiência oriental, ultrapassa a mera recompilação de factos vividos, para se transformar numa ambiciosa síntese da outra face da expansão portuguesa na Ásia”.
É precisamente essa faceta de homiziado, o carácter privado de quem actuava à margem dos desígnios da Coroa, aquilo que mais me seduz na figura de Fernão Mendes Pinto.
Rui Manuel Loureiro, ainda a este respeito, acrescenta que “muitos dos episódios incluídos na Peregrinação retratam as andanças dos homens que viviam na periferia do Estado da Índia, dedicando-se a actividades que escapavam à observação dos cronistas oficiais e oficiosos”.
Nesse sentido poder-se-á afirmar que a Peregrinação é um obra independente, corajosa, fruto de iniciativa individual de alguém que soube escrever nas entrelinhas, e não um mero relato sem muita opinião formada destinado a dar conta da situação vivida junto de uma determinada congregação ou paço real, como era o caso da maioria dos manuscritos da época. A Peregrinação vem suprir uma lacuna na literatura de Quinhentos, e é, pela sua audácia e vivacidade descritiva, uma obra única.
Por essa razão considero de somenos importância as dúvidas que pairam sobre o facto de Mendes Pinto ter ou não integrado o grupo dos primeiros portugueses que visitaram o Japão (que lá esteve está comprovado), ou da certeza que se tem do seu relato estar, em muitas situações, desenquadrado de uma geografia real, ou ainda a dúvida que prevalece no que respeita às viagens costeiras a norte de Ningpo, “por mares que nunca até então portugueses tinham visto ou navegado”, e às deambulações pelo interior da China rumo a Pequim e à Tartária. Embora provavelmente nunca tenha atingido tal latitude, a verdade é que muitas das notícias que Mendes Pinto nos transmite estão muito bem documentadas e descritas, o que só pode ser fruto de leituras e informações recolhidas junto de outros viajantes.
Sobre esta matéria, para reflexão, ficam as palavras do jornalista Fernando Correia da Silva: “a mentira menor e aparente, pode ser um dos caminhos para a verdade maior e oculta” e “nem sempre a mentira é o oposto da verdade, pode ser até o seu mais precioso instrumento”.
Nas obras que publiquei sobre o assunto tentei abranger a maior diversidade possível de realidades geográficas, étnicas, culturais e religiosas, mesmo que elas não tenham feito parte da viagem vivida, sendo certo que integraram a viagem contada. Fi-lo para que esses trabalhos não se esgotassem numa simples imaginaria, e fossem também, e sobretudo, uma caixa de surpresas.

© Vitor Oliveira

Há um ditado chinês que diz o seguinte: “se um forasteiro passar um dia na China escreve um tratado. Se alongar a estadia por uma semana compõe um artigo. Se ficar um mês redige uma página de um caderno. Se aí permanecer mais de um mês, inevitavelmente parte a caneta”. Ainda em Malaca, e após o seu regresso a Portugal, Mendes Pinto manteve-se fiel a essa máxima, recusando-se a falar gratuitamente sobre que vira, pois dissertar sobre a terra da China “seria um processo quase infinito” como escrevia ele numa carta datada de 1554. Ou seja, durante muitos anos Mendes Pinto sabiamente “partiu a caneta”. A informação que guardava só seria revelada em 1582, quando o livro estava praticamente concluído. Um ano depois Mendes Pinto morre. Havia cinco anos que D. Sebastião tinha desaparecido em Alcácer Quibir e há três anos que o próprio Portugal deixara de o ser. Seguir-se-ia o domínio dos Filipes de Espanha com os inimigos desta a passarem a ser inimigos nossos. Portugal jamais seria o mesmo.
Fernão Mendes Pinto começou a escrever a Peregrinação em 1560 e deu-a por concluída em 1580. Entre a morte do autor, em 1583, e a edição da obra, em 1614, decorreram 31 anos, embora já em 1603, depois de passada a pente fino, houvesse licença para a sua edição. Pressupõe-se que Francisco de Andrada, cronista-mor do ainda chamado Reino de Portugal, tenha demorado 10 anos a tomar o peso de cada uma das suas palavras e a castrar os parágrafos mais rudes para não ferir as susceptibilidades do monarca espanhol e dos novos inquilinos do Santo Ofício.
Não nos esqueçamos que a obra do aventureiro português é, sobretudo, um romance de crítica à sociedade do seu tempo que denuncia a hipocrisia, a falsa religiosidade e todo o tipo de atrocidades. Se calhar por essa razão ficou tanto tempo à espera de vez.
Infelizmente, ainda hoje certos temas, escritos e ilustrados, relativos a realidades que têm a ver com a nossa história ficam encalhados, à espera de um “buraco”, nas redacções de revistas conceituadas onde agora dita regras um novo escol de cínicos inquisidores. Falo com conhecimento de causa. Poderia falar de informação em primeia mão acerca do legado português em todo o Golfo Pérsico ou da usurpação pelos holandeses do legado português deixado em Nagasáqui. Graças à apertada guarda destes novos zelotas, os portugueses continuam praticamente analfabetos no que ao período mais fértil da sua História diz respeito. E também é verdade que para alterar essa situação o Estado pouco ou nada tem feito. A Peregrinação, servida como um romance de aventuras, deveria ser ensinada nos bancos da escola. Quanto às tradicionais viagens de finalistas dos estudantes do secundário, deveriam incluir visitas a pelo menos um dos países visitados por Fernão Mendes Pinto. Certamente que em menos de uma geração aumentaria a auto estima nacional.
“Tudo tem o seu Avesso”, disse um dia Sá de Miranda. Mendes Pinto, que era acima de tudo um humanista, soube, como poucos, mostrar o Avesso desse Tudo. O Tudo que se conhecia na época em que viveu.
A Peregrinação, que é também um produto da faceta dos lançados no Oriente – esse Avesso por revelar de um Tudo já ele mal revelado – continuar a ser uma obra praticamente desconhecida, mesmo entre os compatriotas de quem a escreveu. Mas é uma obra que deve ser lida. Absolutamente. E mais do que uma só vez.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Acompanhe-me nesta magnífica viagem

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