Fátima Vasconcelos

A trajetória de uma Enfermeira e o Sistema de Reforma em Angola

Maria de Fátima Rodrigues Vasconcelos é a primeira dos 23 depoentes cujas memórias constam na primeira fase do Projeto História Social de Angola (HSA). Para além, deste contribuiu para confirmar certos factos descritos pela autora no livro “A Juventude Angolana no Período Pós Colonial: Contribuição à Análise Qualitativa”.

© História Social de Angola

Introdução

Eu sou a Maria de Fátima Rodrigues Vasconcelos, natural de Luanda, nasci no muceque Rangel e tenho 81 anos de idade, casada, viúva há sete anos e tenho três filhos, dois rapazes e uma menina, muito bonitos, sou irmã de dez irmãos, seis falecidos e quatro vivos.
A minha infância não foi nada fácil e mesmo para começar a estudar eu e mais dois irmãos fomos os que aproveitamos mais, naquela altura havia muitas dificuldades, a minha mãe era doméstica e não havia grandes posses. Eu lembro-me de conversas das minhas irmãs sobre elas trabalharem de dia para estudarem à noite e mesmo assim só fizeram a quarta classe e só eu, a minha irmã Eduarda e o Lindo estudamos mais, eram elas que trabalhavam para ajudar os nossos pais, para podermos ter melhores condições de vida e estudarmos mais, portanto foi uma infância muito dura para não dizer mais.
Eu não vivi numa casa onde havia água canalizada e nem sequer luz elétrica, também naquela altura água e eletricidade não existiam. Eu morei na zona das Cajazeiras “estão a ver a bomba de gasolina, a praça de São Paulo”, eu morei por trás da bomba de gasolina agora há outro nome, o “Arreou Arreou” 1. Eu vivia no Marçal, não vale a pena as pessoas estarem a mentir, esta é a realidade dos factos 2 .

1 Arreou Arreou é um refrão propagado pelos vendedores de mercados informais e ambulantes que significa que os preços baixaram e geralmente ao final do dia estes comerciantes baixam os preços dizendo “Arreou, arreou”, neste caso se trata de um mercado informal.
2 Fazendo referência a maioria dos angolanos residem na periferia no período colonial

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Colonial
Uma aluna da Escola nº 8, Luanda, 1949

Eu estudei na Escola nº 8 que ainda hoje existe, talvez com outro número, é a escola que fica entre o Kinaxixi e o cemitério Alto das Cruzes. Houve coisas muito bonitas, muito boas, porque nós as colegas éramos muito solidárias, uma ia buscar a outra a casa e depois as duas iam buscar as outras e caminhávamos para a escola em fila, porque não íamos à escola nem de carro e nem de autocarro, a amizade era bonita por ser sincera.
Fazíamos as nossas brincadeiras, havia muitas alfarrobeiras como sabem são árvores que dão alfarroba, muito grandes e quando caiam as folhas para nós era uma alegria, havia casas com macieiras da índia e nós de quando em vez “às pedradas nos quintais dos vizinhos para apanharmos as maçãs”. Havia lutas entre meninos e meninas nas brincadeiras, não eram lutas para nos aborrecermos, não eram coisas agrestes. Jogamos muito ringue. Por exemplo, a Escola nº 8 contra a escola da Missão (aquela que fica ali, quem vai para Mutamba que pertence a Igreja Metodista). Aos sábados estudávamos também de manhã, mas quando saíssemos da escola combinávamos com colegas da mesma classe para jogarmos o ringue na escola delas ou na nossa, uns ganhavam outros perdiam e eram assim essas as nossas brincadeiras.

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Não tínhamos grandes coisas sem ser estas.
Na minha infância, como já expliquei, os nossos cotas eram duros e também não havia dinheiro, os nossos pais eram diferentes, nem nos deixavam ir à praia, eu fui à praia mais tarde.
Anos depois, já noutras condições, conforme disse, as minhas irmãs ajudaram muito os nossos pais, elas casaram e com os maridos foram transferidos para fora de Luanda e nesta fase quando nós tivéssemos de férias nós íamos passar férias onde eles viviam. Por exemplo, a minha irmã vivia em Cacuso, zona de Malanje e nós para viajarmos tínhamos de ir de comboio. E eu não ia sozinha, tinha de ir com uma amiga como a Marília Fernando Gaspar e para termos amigas era preciso a minha mãe ir pedir a mãe dela e trocar aquela amizade (como hei-de explicar, já não sei explicar bem agora), eram amizades de cola e gengibre. A minha mãe chegava lá e tinha que pedir a mão da minha amiga, através da mãe dela, para me deixar ser amiga, ficávamos quinze dias e voltamos de comboio. E claro fui crescendo e contava com a mana mais velha que hoje tem oitenta e três anos para me levar a umas festinhas, e eu ia com ela porque as amigas dela tinham que pedir aos nossos pais e eles autorizavam, eu aproveitava a boleia e ia com elas. Os alunos da Escola Industrial iam jogar contra o Liceu Nacional Salvador Correia, na altura o meu marido que era meu namorado estudava no liceu, íamos assistir aos jogos nestas escolas, eu estudava na Escola Industrial, de bola ou de patins, era uma grande alegria, mas com base no respeito, ali não havia outras coisas sem ser brincadeiras. Não foi fácil, a educação de outros tempos nada comparada a educação de hoje, entre aspas, nem todos têm a mesma educação.

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A Escola de Enfermagem de Luanda, Anos 1960

Eu devo dizer que não fui uma aluna brilhante na teoria mas a prática contava muito, nenhuma aluna que fosse indisciplinada ou agreste passava, tivesse as notas que tivesse. As nossas monitoras eram muito fortes, uma delas ainda vive em Portugal deve estar com quase cem anos, a Maria Eduarda Bento Alves Ferronha[1]. Contava muito, muito a presença da aluna de enfermagem e da enfermeira ao paciente, se aos olhos de um doente fosse agreste, do género “levanta-te lá que eu quero por a rastadeira”, esta aluna nao passava.

Os professores eram muito rígidos, nós íamos altamente fardadas, não podíamos usar brincos e nem anéis por causa das temperaturas dos termômetros, algum termômetro que partisse o anel ia logo a vida, brincos, anéis, roupas compridas, nada disso, entravam e saiam com a farda, pela porta fora vestias a roupas que quisesses, mas também naquela altura escusado será dizer que não podíamos ir de mini saia ou de calças… As nossas monitoras eram tão exigentes que até a aba dos nossos aventais tinham de ser gomadas, assim como os chapéus de enfermagem que a gente usava, eu gomava a minha com maizena, os sapatos, as fardas tudo por igual, não havia fardas de uma forma, outras de outras e nem podíamos ir sem os sapatos e a roupinha engomada, era aquela farda para todos.

Havia muito boa colaboração entre as colegas e havia  boa relação com as freiras. Quando eu era aluna iniciei o meu trabalho no antigo hospital Maria Pia, hoje Josina Machel e naquela altura trabalhávamos muito com as freiras, ensinavam-nos muito  elas tinham muita atenção para connosco.

Houve vários momentos marcantes que não eram marcantes como ver pacientes a morrer, “ter de ir para atrás da cabeceira da cama, chorar e limpar as lágrimas”  muitas vezes eu fiz isso, voltar para junto do doente sem que ele se dê conta da tristeza dos enfermeiros.

Nas nossas horas vagas de piquete, os nossos chefes preparavam um bom lanche da noite, juntavam-se enfermeiros e enfermeiras e fazíamos uma  espécie de ceia para comermos juntos. Ninguém ia para cama, nao tens doente para tratar, o doente estava a dormir , ias para uma mesa fazer compressas e esterilizar as luvas, naquele tempo as luvas não eram descartáveis, agora deitemos fora, mas naquele tempo eram tratadas e esterilizadas, vais te levantando naquelas horas livres  para vigiar os doentes e voltas a fazer outras tarefas, até para fazer as horas de trabalho passarem.

Era completamente diferente, para dizer que nós saímos de uma folga mesmo não dormindo ficávamos compensadas “depois de um bom banho, comiamos um bom bife, não um bifinho, bife com batatas fritas e ovo estrelado, fruta podia ser banana, laranja, maçã e uma boa quantidade de leite, não era um copinho”, punham ali leite para bebermos o que quiséssemos, mesmo durante a noite bebíamos leite, saíamos de uma folga não com fome como a gente vê agora mas nutridas, ainda dava para ir fazer umas horas no particular.

Felizmente, nós no Ministério da Saúde não se via aquilo que agora há gente vê, “quer ir trabalhar vai, não que vir trabalhar não vai” porque mesmo os médicos das casas de saúde[2]     tinham de primeiro trabalhar no estado durante o dia e depois iam trabalhar a noite na casa de saúde, tanto era assim que as operações eram feitas a noite, eles tinham o serviço particular, mas tinham de trabalhar no estado, se falarem com um médico já velhinho como eu eles contaram,  tínhamos de coordenar, as vezes, “oh Marília eu tenho este turno na casa de saúde” e trocávamos, os turnos tinham de ser preenchidos.


[1] Maria Eduarda Ferronha, nas Memórias Africanas, com Paulo Salvador, 24 de Novembro de 2012. Convidada:  Maria Eduarda Bento Alves Ferronha. Uma filha de Angola que cedo começou a lutar pelos direitos cívicos. Nasceu do amor de um engenheiro agrónomo português, de Caminha, e uma africana das terras do Curoca, Porto Alexandre. A maior parte da vida esteve em Sá-da Bandeira e Luanda. Cresceu num meio estudantil com vários nacionalistas africanos. Foi vigiada pela Pide. Cumpriu o sonho de estudar medicina e tornar-se enfermeira. No hospital de Luanda assistiu a muitas mortes. Em plena guerra entre os partidos angolanos, combateu o racismo da guerra, que separava os feridos nas macas. Uma vida longa e cheia de memórias. http://recordarangola.blogspot.com/2012/12/maria-eduarda-ferronha-nas-memorias.html

[2] Casas de Saúde antigo nome que se dava às atuais Clínicas Privadas.


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