Grande Entrevista Maria do Rosário Pedreira

Editora, escritora, poetisa e letrista portuguesa

Fotografia ©Tiago Araújo

Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Depois de uma breve passagem pelo ensino, que a influenciou a escrever para jovens, ingressou na carreira editorial, sendo hoje editora de literatura portuguesa. Embora tenha publicado um romance e contos dispersos, é sobretudo conhecida como poeta.

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Maria do Rosário, vamos dar um saltinho à sua infância. Como nasceu este seu amor pelos livros, que se tornou em dupla carreira, de escritora e de editora. Quando era criança andava sempre agarrada aos livros?

O meu amor pelos livros nasceu por várias razões. A primeira das quais porque sou filha de um homem e de uma mulher que não sabiam cantar, mas que nos liam imensas lengalengas e historiazinhas. Acho que essa cadência da narração de histórias ficou para sempre no meu ouvido. Para além disso, nasci numa família de leitores. Sempre vivi com gente leitora, nomeadamente a minha avó paterna que vivia connosco e que tinha feito o liceu, o que na altura não era muito usual. Por outro lado, andei numa escola cujo patrono era um poeta e onde, para além das aulas normais, éramos desde muito pequenos ensinados a ler poesia e a recitar. Inclusive, tínhamos festas no final do ano para dizer poemas, em geral do próprio João de Deus. Portanto, houve desde muito cedo esse enraizamento da cadência do texto poético. A somar a tudo isso, eu era a mais nova de uma família grande, ou seja, raramente tinha tempo de antena. Acho que recorri um pouco à escrita como forma de “luta” pelo silêncio que me era imposto pelos outros, todos mais velhos do que eu. Lembro-me que comecei a escrever e a oferecer pequeninos poemas, quadras, às pessoas na altura dos seus aniversários, por exemplo.
Penso que essas são as principais razões para ter começado a ler e escrever muito cedo. Mas não era, de modo nenhum, uma “marrona”, pelo contrário. Não era uma aluna muito boa, porque estava sempre distraída com outras coisas e porque brincava muito. Apesar de gostar muito de ler e escrever, não era uma agarrada aos livros.

Depois esse amor aos livros transformou-se em formação académica com um curso de Línguas e Literaturas Modernas. A escolha desse curso foi inevitável ou poderia ter estudado outra coisa qualquer? Quais são as suas outras paixões além da literatura?

Naturalmente, pessoas que têm várias competências podem escolher muita coisa. Costumo brincar e dizer que, efetivamente, eu só sei fazer duas coisas, que hoje a grande maioria das pessoas também sabe fazer, que são ler e escrever.
Desde muito cedo fui um zero a matemática, nunca desenhei duas paralelas que não se encontrassem num lugar qualquer. Sou, ainda hoje, uma nódoa na cozinha e só consegui tirar a carta de condução depois dos 40 anos, porque chumbei imensas vezes. Na verdade, acho que fui para esse curso porque não poderia ir para mais nenhum. Era a minha única hipótese em termos de competências, mas gostei muito.
Depois da conclusão do curso, a saída natural era o ensino e eu ainda tive uma passagem de cinco anos pelo ensino. A verdade é que foi um amigo do meu pai que me fez ir parar aos livros. Na altura, eu já estava no ensino há quatro anos e esse amigo do meu pai conhecia muito bem um editor, que editava na altura, sobretudo, divulgação científica. Quando esse editor lhe perguntou se ele conhecia alguém que o pudesse ajudar na editora a ler, a fazer contracapas, a rever traduções, ele lembrou-se imediatamente de mim. Ainda estive na editora em part-time durante cerca de dois anos, mas entretanto o editor foi viver para Macau e pediu-me para o substituir. Aí deixei o ensino e passei a ficar na editora a tempo inteiro. Acho que foi uma bênção, porque era o emprego ideal para mim. Para uma pessoa que gosta de ler e escrever e que não sabe fazer mais nada.

Fotografia ©Tiago Araújo
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Pouco depois surgiu a escrita com a publicação do “Clube das Chaves”, uma longa e marcante coleção infantojuvenil que nos conta a história de Pedro, um adolescente de 13 anos. Houve até uma adaptação televisiva. Agrada-lhe a ideia de saber que há uma ou duas gerações, hoje adultas, que guardam com carinho esses momentos de leitura do “Clube das Chaves”?

Comecei a escrever essa coleção com a Maria Teresa Maia Gonzalez, ainda na altura em que ambas estávamos no ensino. Tínhamos alunos birrepetentes e trirrepetentes e os manuais da altura ofereciam textos que eram muito infantis para aquela faixa etária. Portanto, começámos a escrever contos e histórias que pudessem trazer esses jovens, um bocadinho mais velhos, para a leitura.
Na altura, apareceu um anúncio de uma editora num jornal, penso que no Jornal de Letras, sobre um concurso literário de romance juvenil, que fosse passível de ser continuado. Falei com a Maria Teresa e achei que ela devia concorrer, porque ela gostava muito de escrever livros juvenis. No entanto, ela disse-me que, como só tinha dois meses e meio para entregar o livro, não conseguiria sozinha e que eu tinha de a ajudar. Foi assim que fui parar à literatura infantojuvenil.
Os livros tiveram um sucesso extraordinário, venderam mais de um milhão de exemplares, e nós fomos sempre sendo solicitadas para continuar a coleção até ao momento em que percebemos que a geração que tinha lido o número um já estava demasiado crescida para saber o fim da história. Então, resolvemos por um ponto final à coleção e seguimos, cada uma, o nosso caminho.

Um dos objetivos da AILD é promover a leitura em português junto das crianças lusodescendentes que, muitas vezes, têm como língua materna o francês, o inglês ou o alemão. Dinamizamos, por exemplo, um Concurso Literário, que foi um sucesso, também no sentido de fazer com que os jovens lusodescendentes descubram o prazer da leitura e da escrita. Os pais dessas crianças queixam-se, por vezes, que o Estado português não faz tudo o que está ao seu alcance para trazer estes milhares de crianças para a aprendizagem da cultura e da língua portuguesas. Se fosse Ministra da Educação ou dos Negócios Estrangeiros o que faria de diferente para cativar estes jovens lusodescendentes de modo a que Portugal não os perca?

Há um ditado muito sábio que diz: “Em Roma sê romano”. Acho que temos de aprender a viver onde vivemos, temos de ser como os que vivem onde vivemos.
É muito difícil que uma criança portuguesa, que nasce ou vive desde sempre em França, por exemplo, não seja, imediatamente, aculturada. Imagino que seja praticamente impossível uma criança que vive noutro país e que está o dia inteiro ouvir falar outra língua, ser capaz de manter o Português tão vivo como uma criança que viva em Portugal. Se calhar não podemos ser tão exigentes. No entanto, é evidente que devemos evitar que as origens sejam esquecidas e que morra a língua materna.
No decorrer da minha experiência de escritora juvenil, fui uma vez convidada a ir a um festival à Suíça, onde me pediram para ir falar aos alunos portugueses, que lá estavam a viver. Ora, o que aconteceu foi que o dia escolhido para essa conversa era o único dia livre que essas crianças tinham. Resultado, grande parte delas estava lá contrariada. Se queremos cativar estas crianças temos de pensar melhor na forma como o vamos fazer. Penso que, na grande maioria destes países, as aulas de português são dadas nos tempos livres das crianças, o que contribui para que elas possam criar uma espécie de oposição ao Português. Elas acabam por encarar essa aprendizagem como uma obrigação. Acredito que talvez fosse mais interessante numa escola onde há muitos lusodescendentes criar uma turma que, por exemplo, num dia da semana tem mais uma hora de aulas. Mas que não lhes ocupe o único dia de folga que têm, porque assim eles não conseguirão encarar essa aprendizagem de forma prazerosa.
Para além disso, acho que também seria importante o Estado tentar fornecer às escolas mais materiais, como livros infantis, levar pessoas interessantes para falar com os alunos, que lhes falem do seu país e da cultura portuguesa. O Concurso Literário desenvolvido pela AILD é um ótimo exemplo do tipo de iniciativas que podem ser desenvolvidas com o objetivo de estimular a aprendizagem e leitura do Português.

Na sua opinião, num mundo dominado pelas séries em streaming ou os videojogos, a leitura é ainda o veículo cultural essencial para a formação da cidadania? A leitura, por exemplo, é ainda essencial para a construção do sentimento de “empatia” nas crianças?

É essencial e eu explico porquê. A literatura é uma arte completamente diferente de tudo o que hoje é oferecido aos jovens e que é sobretudo o facilitismo. Por exemplo, quando se vê uma série e existe uma personagem loira, ela é igual para todos. Por outro lado, se dermos um texto para ler a uma turma e nesse texto existir uma personagem loira, dentro da cabeça de cada um dos alunos, essa loira vai ser sempre diferente.
A literatura é importantíssima porque é uma forma de desenvolver as nossas próprias capacidades. O escritor e ensaísta sobre a leitura Alberto Manguel, um estudioso que sabe quase tudo sobre a leitura, disse que aprendeu o que era a compaixão, a tristeza e a empatia com o livro “Coração”, do Edmondo de Amicis. A literatura é muito importante, porque permite identificar-nos com aqueles personagens, mesmo sem saber quem eles são. Por outro lado, a literatura para além de desenvolver empatia e compaixão, ensinar sentimentos e desenvolver capacidades, têm a fantástica capacidade de nos permitir participar na história.
Há um vídeo muito bonito de uma escritora que, nos anos sessenta, fala sobre a questão de a televisão poder roubar gente à leitura. Essa escritora fez um vídeo com uma criança de nove anos e perguntou-lhe se ela gostava de histórias. Ao que a criança responde que sim, que gosta muito de histórias. “Mas gostas mais de histórias na televisão ou num livro”, perguntou-lhe. A criança pensa durante uns instantes e responde que prefere num livro, porque “num livro sinto que faço alguma coisa”.
Infelizmente, hoje vivemos num tempo de preguiça, de não querer fazer. A literatura ainda é o que salva as capacidades humanas de se desenvolverem. Há estudos que dizem que, desde a Segunda Guerra Mundial, o QI vinha sempre a aumentar. No entanto, desde 2000 que está a baixar progressivamente. Isto não quer dizer que hoje as pessoas sejam mais burras, quer sim dizer que não têm certas capacidades tão desenvolvidas.

Em 1993, a Maria do Rosário publicou o romance, “Alguns homens, duas mulheres e eu”, e depois centrou-se na poesia, tendo publicado várias obras premiadas. A poesia é o seu meio de expressão artística preferido? O que é que a poesia lhe permite e a prosa não?

Os meus livros são quase sempre terapêuticos. Quer os romances, quer os livros de poesia correspondem sempre a momentos em que preciso tirar de dentro de mim coisas que não me estão a fazer bem. Esse romance correspondeu a uma morte na minha família, a primeira “importante” e pesada. Acho que precisei escrever esse livro para poder falar dessa morte com outras pessoas, que também já não eram capazes de falar.
Um romance é uma coisa muito exigente. Como dizia uma famosa escritora, num romance os personagens levantam-se connosco de manhã e deitam-se connosco à noite. Eles não nos abandonam um único minuto do dia, enquanto estamos a escrever o romance. O mesmo não acontece com a poesia. Um poema pode-nos ocupar uma semana, mas nunca nos ocupará três anos.
Desde muito cedo que escrevo poesia e, portanto, diria que é a minha forma preferencial de comunicar as coisas que preciso de tirar de dentro de mim. Devo dizer que me sinto muito mais uma criadora a partir do que me é dado, do que uma criadora a partir do zero.

Fotografia ©Tiago Araújo
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Quando lemos o seu trabalho poético encontramos uma temática predominante: o amor. Acha que, de uma maneira geral, hoje existe mais ou menos facilidade em falar de amor se compararmos com o passado?

Acho que toda a literatura, em todos os tempos, fala basicamente de duas coisas: o amor e a morte. Portanto, não acho que seja precisa mais coragem hoje para falar do amor.

A Maria do Rosário também escreve letras para canções. Qual o lugar da música na sua vida?

É um lugar quase inexistente, porque quando escrevo não consigo ouvir música e quando trabalho também não. Gosto muito de ir a concertos, gosto de ouvir música no carro, mas a música não foi uma coisa determinante para eu escrever as letras. O que foi determinante foi, sim, a minha relação com o fado.
O meu pai e a minha mãe eram padrinhos de casamento do Carlos do Carmo e, por isso, desde muito pequenos começámos a ir aos fados. O fado fez desde muito cedo parte da minha educação, sobretudo, da minha educação musical.
Uma vez estava num lançamento do João Tordo e o Carlos do Carmo, que também foi a esse lançamento, disse-me que estava a pensar fazer um disco para mostrar às pessoas que os poetas da atualidade também sabem escrever para fado. Convidou-me para esse disco e essa primeira experiência foi muito bem-sucedida, o que levou a que outras pessoas me procurassem. A partir daí nunca mais parei. Acho que já devo ter 70 ou 80 letras escritas, não só para fadistas, mas também para outros cantores, como o António Zambujo. Escrever letras tornou-se assim uma outra atividade, que me dá muito prazer.

Fotografia ©Tiago Araújo
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Vamos falar um pouco do seu trabalho como editora. Como editora na Leya, a Maria do Rosário tornou-se uma espécie de “caça talentos” da literatura portuguesa. Existem autores portugueses que iniciaram a carreira tendo-a como primeira editora e, muitos deles, já foram traduzidos e são hoje autores consagrados. Ter encontrado esses “talentos” é fruto da sorte ou do trabalho e da persistência?

É fruto de “procurar a agulha no palheiro”, como se costuma dizer. Nem toda a gente tem paciência para fazer este trabalho. Diria que a primeira condição para se fazer um trabalho de procurar talentos é ler muitas coisas más. Às vezes em 100 livros não há um que preste. Portanto, é preciso, efetivamente, uma grande dose de paciência.
O fantástico deste trabalho é poder encontrar uma coisa que, embora já existam séculos e séculos de livros, nos parece nova. É fantástico como é que se consegue ao fim de tantos séculos encontrar ainda alguém que combina a linguagem de tal forma que parece uma coisa que nunca tínhamos visto. É isso que procuro. No entanto, desde o início de século, que foi quando comecei a procurar esses autores, tenho verificado que há um declínio enorme. Hoje, quando encontro um desses autores é, como diria a Agustina Bessa-Luís, uma “aberração”, alguém muito diferente das pessoas da sua idade. É cada vez mais difícil encontrar um autor jovem que escreva, de facto, literatura a sério.

Pergunto-lhe se já trabalhou, editou, autores lusodescendentes ou portugueses que vivam no estrangeiro? Se sim, sente que as experiências pessoais desses autores, que vivem por entre várias culturas e línguas, trazem uma perspetiva diferente ou nova à literatura portuguesa?

Não sei se publiquei de alguém lusodescendente. Publiquei de pessoas dos PALOP’s, publiquei de pessoas que vivem noutros países, mas não me lembro de ter publicado de alguém lusodescendente. A minha experiência com pessoas que nascem noutro lado é sempre enriquecedora. Ao contrário dos espanhóis, que têm uma literatura riquíssima, nós temos uma literatura um bocado macambúzia. Acho que falta mundo aos portugueses. Por isso, é sempre enriquecedor e gratificante trabalhar com autores, como por exemplo o Nuno Gomes Garcia, que nos traz um contributo diferente.

Sempre que se fala de meio editorial fala-se de crise. Diz-se que não se vendem livros, que as pessoas não gostam de ler ou que agora a literatura que se vende são obras de menor qualidade. Isto é tudo verdade?

Diria que é tudo verdade e sou, até, bastante derrotista quanto ao futuro dos livros.
Acho que hoje se publicam demasiados livros, mas demasiados livros maus. Deixou de haver um critério. As redes sociais, como dizia o Umberto Eco deram voz a todos os “imbecis” e, portanto, hoje toda a gente acha que pode publicar um livro. “Se fulana tal da televisão, que não é ninguém publica, porque é que eu não posso?”
Por outro lado, hoje em dia publicar um livro é barato. Enquanto para fazer um filme eu preciso de gastar muito dinheiro, para escrever um livro basta ter um computador e uma ideia. Este facilitismo gera situações muito graves, em termos de formação, porque as pessoas que vão acabar por comprar esses livros vão aprender com o que está errado. Isso é uma das razões de hoje haver tanta coisa má publicada e tanta coisa que não se devia ler.

Que tipo de literatura de ficção é que o público português gosta de ler?

As pessoas não são todas iguais e o público português é muito diversificado. No entanto, diria que gosta de romance histórico, porque gosta de aprender enquanto lê, mas dá preferência aos autores de fora. O que é uma coisa muito portuguesa, esta de achar que os outros são sempre melhores que nós. Por outro lado, há também autores que são uma garantia de sucesso, que fizeram a sua carreira lá fora, e que, portanto, têm sempre leitores, como o António Lobo Antunes, a Lídia Jorge, o Mia Couto, entre outros.

É verdade que as vendas de não-ficção aumentaram nos últimos anos e que as vendas de ficção diminuíram?

É verdade. Eu acredito que seja também porque a não-ficção subiu muito o nível. Ao contrário do que acontecia antes, começou-se a escrever para o grande público livros de reportagem, de história. Exemplo disso é o sucesso absolutamente extraordinário do livro “A mais breve história da Rússia”, escrito pelo jornalista José Milhazes, que mostra bem a quantidade de gente que quer realmente saber a história e a realidade deste país. Acho lícito as pessoas quererem estar informadas, sobretudo, com livros que falam para o grande público e que podem ser compreendidos pelo leitor comum.

Fotografia ©Tiago Araújo
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Na AILD gostamos da ideia, e tentamos levá-la a cabo, de criar uma rede que ligue entre si os 15 milhões de portugueses, os 10 milhões que vivem em Portugal e os outros 5 milhões que não vivem nosso território. Por isso, nada nos dá mais prazer do que ver os nossos autores traduzidos e apreciados no estrangeiro. Porém, quando olhamos para o panorama geral, vemos que poucos autores portugueses têm essa possibilidade. O que é que explica as dificuldades de internacionalização dos autores nacionais?

É fácil explicar. Apesar de o Português ser uma das línguas mais faladas no mundo, ninguém a fala nos países onde se publicam livros a sério. É muito difícil encontrar nas editoras de outros países pessoas que falem ou que leiam Português suficientemente bem para que possam apreciar um livro em Português e, posteriormente, publicá-lo.
O regime de internacionalização de um autor passa quase sempre por traduzir um excerto significativo que pode ser lido em inglês pela editora que, se considerar que aquilo lhe interessa, irá mandar traduzir o livro todo. Nós não podemos pagar esse valor porquê? Porque em Portugal o número de leitores é residual, são muito poucas as pessoas que compram livros habitualmente. Portanto, temos de ser muito criteriosos com as nossas escolhas e temos de publicar no máximo três mil exemplares. Numa edição deste tipo, tão pequena, os custos não se conseguem diluir. O que acontece é que nós não temos dinheiro para fazer essa amostra, enquanto os outros países têm. Por outro lado, não somos suficientemente exóticos em termos de literatura para que os estrangeiros nos queiram procurar, como acontece no Brasil.

Segundo um inquérito do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2020, 61% dos portugueses não leram um único livro em papel, e, dos 39% que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco. As conclusões deste estudo demonstram ainda para a existência de uma relação entre a educação e os hábitos de leitura, já que muitos não têm memória de os pais alguma vez os terem levado a uma livraria ou lhes terem oferecido um livro. Mais do que incutir este hábito nos mais jovens é necessário, primeiramente, estimular a leitura em contexto familiar?

Fazer um leitor é sempre uma lotaria. Um casal de leitores pode ter um filho que não gosta de ler. Não há receitas para fazer leitores, mas há duas coisas que acho que têm de funcionar.
A primeira é a família. As mães e os pais não se podem demitir de contar histórias às crianças desde pequenas. É fundamental. A história é o princípio da literatura. Para além disso, não nos podemos demitir de dar livros às crianças. Por outro lado, os pais têm de deixar de “depositar” as crianças em frente aos ecrãs.
A segunda é a escola. A escola não se pode demitir de dedicar tempo para a leitura. Para além disso, é necessário prover as escolas com livros. Há bibliotecas que não compram livros há 10 anos ou que têm livros sem interesse. Tem de se criar, efetivamente, um momento durante a semana para ir à biblioteca. Temos de procurar despertar este gosto nas crianças.

Falemos do “Horas Extraordinárias”, o blogue que a Maria do Rosário gere há já tantos anos e que mantém atualizado dia após dia. Num mundo em que tanta coisa é descartável e os projetos duradouros escasseiam, o que é que mantém este blogue ainda vivo?

Acho que são os seus leitores. Quando não escrevo, que é quando estou de férias, vêm logo “reclamar” a minha presença. Penso que se criou um grupo de aficionados do blogue que não me permite que desista dele. Embora, às vezes, me apeteça, porque dá muito trabalho escrever cinco posts por semana, desde 2010.

Há algum tempo, publicou em livro as crónicas escritas entre 2018 e 2020 no Diário de Notícias. O título é inquietante: “Adeus, Futuro”. A Maria do Rosário está pessimista com o andamento deste mundo?

Sim, muito pessimista e a acho que a falta de leitura é apenas uma parte do problema. Vejo o mundo a ser, cada vez mais, gerido por pessoas que não percebem nada. Nunca pensaria na minha adolescência que pessoas como o Trump ou como o Bolsonaro chegariam à presidência de países. Antigamente, tínhamos por líderes pessoas como o Felipe González ou o Mário Soares, pessoas que de facto queriam fazer alguma coisa pelas suas nações.
O que sinto hoje é um bocadinho aquilo que vi num filme sobre a Margaret Thatcher, que num momento diz uma coisa que acho absolutamente verdadeira em relação aos tempos de hoje: “Antes nós queríamos fazer coisas, agora eles querem ser alguém”.
Se olharmos para uma pessoa como o Mário Soares vemos que ele queria fazer coisas, queria enriquecer o país. Se olharmos para outra pessoa, que até é do mesmo partido, como o José Sócrates, vemos o exemplo de uma pessoa que quer ser alguém, que quer brilhar, que quer ser celebrado. Penso que isto é o que atravessa o mundo hoje. Olhamos para os líderes mundiais e temos pessoas como o Trump, um tipo que quer ser presidente porque é giro ser presidente, porque lhe apetece. Um tipo que é contra as minorias, que cria problemas económicos no país, que corta liberdades que já tinham sido conquistadas. Estamos a falar de pessoas perigosíssimas.
Se somarmos a isto as questões climáticas e tudo mais, estamos mesmo perante um “Adeus, Futuro”.

Fotografia ©Tiago Araújo

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