Horácio Dá Mesquita

Um guardião da Cultura Axiluanda

Horácio Dá Mesquita é uma cacimba da cultura axiluanda a qual a Plataforma História Social de Angola (HSA) foi colher factos. Cruzamos na festividade do 11 de Novembro de 2024, na diáspora lisbonense na Fábrica do Braço de Prata. Chegou discretamente e quando nos foi apresentado, percebemos que o “mais velho” da Rebita é um exímio concertinista e pianista há mais de cinquenta anos. Identificamos um amigo comum e apresentamos o propósito da HSA, prontamente aceitou prestar depoimento.

© História Social de Angola

Os motores de busca confirmam a nossa inquietação, é ínfima a informação sobre este artista, cuja multidisciplinaridade faz dele um dos expoentes da cultura angolana nos séc XX e XXI. Contrariamente, a maioria dos depoentes, não foi referenciado por outro. Era anónimo até termos “esbarrado” com esta humilde celebridade nacional.
O reconhecimento tardio chegou em 2017, ano de atribuição do 1º prémio nacional, os três prémios nacionais da cultura não o envaidece, pelo contrário regressa nostalgicamente a sua meninice e a outras idades numa tarde de uma chuva de bruxos, sentados no salão de dança da Rebita e ao som das suas concertinas, de forma didática descreve a Luanda colonial e a pós colonial. Foi tocando a medida que descrevia factos sociais do cancioneiro nacional e da massemba dos ilhéus de Luanda. Inevitavelmente, o lugar, a presença de amigos, de colegas e alguns comentários dos entrevistadores levaram-no a reviver o drama da guerra durante a qual o antigo soldado perdeu amigos de infância, colegas da escola 147, do escotismo, das matinés no Cine São Domingos…
Provavelmente por ser um “depoimento” o Mestre Dá Mesquita passou uma Bassula de Kissoco1 e esquivou-se de outras memórias, talvez não prevendo a ignorância dos entrevistadores sobre a sua multidisciplinaridade, o que do ponto de vista metodológico é ideal para se evitar a indução do entrevistado. Pois, foi no decorrer, da edição da transcrição do audiovisual que nos apercebemos da sua genialidade: música, artes plásticas, olaria, muito jovem eleito o primeiro grafiteiro de Angola, o senhor da filatelia, notafilia, numismática angolana, entre outras. As suas obras de arte se encontram no Museu da Moeda em Luanda e no Museu Nacional de Antropologia. Também é escritor e ilustrador de livros.
Falando da importância da preservação e resgate da história social descreve as virtudes da época citando dois exímios músicos, os irmãos Malé Malembá e Fontinhas, referências na educação, moralidade e musicalidade nacional.
Recomenda a juventude estar atenta ao decadente racismo estrutural, com características próprias em Angola e na diáspora, este residente em musseques desde o seu nascimento detalha o crescimento desta “enfermidade” consoante nos aproximamos do centro da cidade e desvanece conforme entramos nos nossos musseques axiluandas.
A aula não será a última porque aceitamos o convite para capturar os ritmos e os sons dos Novatos da Ilha, com a promessa de partilharmos este legado da riqueza cultural axiluanda na primeira pessoa.

Contexto

Alugamos este espaço para o rentabilizar, nós ensaiamos as quartas feiras, podem vir a quarta feira e fazer um audiovisual só da Rebita , era a sociedade angolana dos anos 1940-1960. Na época não havia conjuntos, havia turmas, não havia instrumentos musicais, ninguém tinha violas, era a época das concertinas. Vendiam-nas nas mercearias, ficavam em uma caixa de sapatos, antes ficavam em caixas de papelão, arrumadas ao lado das bolas de catchu, das câmaras de ar e dos brinquedos, naquelas vitrinas onde ficavam as prateleiras das sandes de chouriço, do bolo rocha, das sandes de peixe frito e de rabo de bode, os pirolitos… “A concertina já está gravada com o som da chuva, esta concertina é histórica, é das primeiras que marcaram os anos 40”.

Introdução

Chamo-me Horácio Dá Mesquita, nasci em Benguela, em 1953, fui baptizado na Igreja do Nossa Senhora do Pópulo, vim com cinco anos para Luanda e fui criado em Luanda, hoje tenho 70 anos, faço 71 no dia 26 de Dezembro, toda a minha educação foi aqui, “inaugurei” (aluno do 1º Ano Lectivo) a Escola 147, no Marçal, foi uma escola que me marcou muito e a muitos outros.

© História Social de Angola

Angola, Anos 1960

Vivi sempre em Luanda, toda a minha vida foi na periferia, mas também na cidade nos vários grupos sociais que havia. Portanto, eu neste país em que estamos, eu assisti as várias metamorfoses. A fase anterior a 1960 é uma fase em que nem se falava em guerras, muito boa em que quando era pequeno, brincávamos com papagaios, fazíamos papagaios, andávamos por todo lado. Jogamos muito futebol nos intervalos das aulas. Depois de 1961 foi uma fase turbulenta para nós, para mim com seis anos, não entendia bem o que se passava e a vida continuou.
A vida continuou, Angola deu um salto muito grande em termos económicos com a (as mudanças) administração portuguesa, houve um desenvolvimento notório, mesmo nós miúdos notamos, estava estagnada até ali. Nem havia conjuntos musicais até 1960-61 e não havia essa actividade turística que depois houve. Havia muitas boates, havia muito emprego para os músicos, havia muita Rebita. A Rebita, naquele tempo era o Abel Mona Dikota e outros, havia mais de onze grupos de Rebita, hoje só temos este onde eu estou como presidente, por incrível que pareça!
Tocavam com esta concertina (apontando), praticamente não havia violões, pouca gente tinha um violão, sabia tocar violão, sabia tocar a concertina. Isso é o som que se ouvia naquele tempo (toca a primeira concertina), é desconhecido; hoje temos essa concertina que é a única que se toca hoje. Mas, por incrível que pareça, o que sobreviveu de toda aquela história social está explanada no livro de Óscar Ribas, é esse grupo em que eu sou presidente, os Novatos da Ilha, não existe mais nenhum. A Rebita foi elevada a património material nacional e estamos aqui neste recinto a fazer isso, nesse recinto histórico, é o que resta. Os resquícios que restam daquele tempo airoso, hoje temos um desfasamento.

Ensino e Emprego

Voltando àquela data, depois de 1961 Angola começou a expandir-se em termos de prosperidade, havia emprego para todos, havia falta de trabalhadores para o novo desenvolvimento que Angola tinha, começou-se a falar do vadio. Portanto, naqueles que não trabalhavam porque não queriam, naquele tempo só não trabalhava quem não queria. Havia a polícia, a PSP (polícia) e os cipaios sabiam o nome de cada um de nós, sabiam o nome de quem era vadio e de quem não era, conheciam os nossos pais, todos se conheciam, daqueles que queriam estudar e dos que não queriam.
Não havia a escolaridade obrigatória, havia escolaridade obrigatória por consciência porque havia escola para todos. Essa coisa de dizer que no tempo colonial não havia escola, é mentira, e nós hoje vemos porque há documentação “não vale a pena brincar com o vento ou tentar travar o vento com os dedos”. Porque hoje nós vemos nos livros o Liceu Salvador Correia cheio de brancos e pretos, aliás há dirigentes que estudaram lá e em outros liceus, estudaram nas missões, seja em Malange, seja no Bailundo, havia escola para todos. Não havia descriminação racial e nem social, havia realmente as várias classes sociais, mas todos conviviam.
Havia um padrão social, mas todas as famílias tinham um padrão de educação, independente da sua raça, todos tinham aquele padrão de educação, todos, todos. E quando os filhos, o rapaz fazia alguma coisa, fazia um desmando próprio da rebeldia da sua juventude, vinham e chamavam os pais, vinham ter com os pais, era isso que se fazia naquele tempo! E tínhamos esse padrão.

Cultura Axiluanda 2

Houve um boom em termos culturais, começou a haver turismo, os barcos começaram a aportar aqui, muitos paquetes e cruzeiros aportaram aqui, conhecemos muita gente. A cidade de Luanda conservava os seus edifícios históricos, o seu património histórico, hoje “não temos nada”.
Era tudo conservado, lá em cima o palácio, a rua do Casuno, o Baleizão3 , tudo estava conservado, era uma cidade bonita, onde havia a parte moderna e a parte antiga. Portanto, havia um ambiente noturno muito activo por causa dos Cabreza Dias, dia e noite, com duzentos mil habitantes tínhamos onze grupos de Rebita, só a Rebita para não falarmos em outros.
A Ilha era conservada, a cultura dos Axiluandas, axiluandas no plural, axiluanda no singular. Todos andavam vestidos com os panos, com os kikongos, as bessanganas.
Depois, havia aquela parte romântica “a resistência” em que ouvíamos falar que o pessoal daqui apoiava essa luta descaradamente como a Dra. Medina, que defendeu o nacionalismo, isso são factos históricos. Depois, diziam “os terroristas”, falavam da Dra. Medina que era loira e ela defendeu até a última os nacionalistas, ali em cima onde está hoje o Ministério da Justiça, foi naquele local. Houve uma actividade muito grande dos conjuntos, as farras, o semba. O que foi o embrião do Semba? Naquele tempo não se falava em Semba, Semba era a Rebita, a Rebita é que era a Semba, porque dava a Semba, ou seja a Massemba4 , porque era a duplicado da semba, da umbigada. Portanto, eu tenho o livro do Lamartine, já mostrei aqui ao pessoal, um livro interessante, ainda não terminei, onde ele especifica também isso e há outros que sustentam essa versão, “a massemba são as várias umbigadas que a Rebita dá” que vamos ter a oportunidade depois de gravar aqui para poderem entender isso que eu estou a dizer, ensaiamos aqui todas as quartas feiras.

© História Social de Angola

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico


  1. A Bassula, Horácio Dá Mesquita, em Cultura | 23 de Julho a 5 de Agosto de 2012, pág 15 O verão era o período propício para a aprendizagem desta “arte marcial” onde os pescadores eram preparados para determinados desafios que teriam de enfrentar na vida social e na defesa pessoal em caso de conflitos com os rivais ou vizinhos. A Bassula de Kissoco (amizade) era a verdadeira luta desportiva e recreativa, juntando-se familiares, amigos, pessoas de confiança e praticando-se em ocasiões reservadas.https://imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_ix.pdf ↩︎
  2. Cerca de 1570, Duarte Lopes escreveu, na sua “Relação do Reino do Congo e das Terras Circunvizinhas”, que o lugar chamava-se “Loanda, que quer dizer, naquela língua, terra rasa, sem montes e baixa”, levando a concluir que o local se chamaria assim por ser um areal raso. No entanto, estudos etimológicos da palavra levam a outra conclusão.Seguindo o princípio da derivação das línguas bantas, o prefixo lu é aplicado em palavras que descrevem regiões alagadas, como ilhas, braços e bacias de rios etc., seguido da estilização ortográfica das características topológicas dessa região. Dessa forma, surge a palavra luando, que, por se referir a uma ilha, um vocábulo feminino, ao ser aportuguesada deu o atual “Luanda”, vocábulo obtido através da aglutinação de lu + (nd)ando, onde ando é o étimo comprimido de ndandu, que significa “mercadorias“, “objecto de comércio”, “valores” etc., relativo aos produtos retirados da ilha, como o peixe ou os pequenos búzios (cauris) ali apanhados, normalmente conhecidos como njimbo ou zimbo e que eram a moeda corrente do Reino do Congo.[4] Segundo este estudo, a ilha teria o nome de Luando por ser um local de comércio situado num areal. Uma outra versão refere que o nome deriva de “axiluandas” (homens do mar), nome supostamente dado pelos portugueses aos habitantes da ilha, porque, quando ali chegaram e lhes perguntaram o que estavam a fazer, estes teriam respondido uwanda, um vocábulo que, em quimbundo, significa “trabalhar com redes de pesca”. Os habitantes originais da ilha são os axiluanda (Axilwanda), um subgrupo dos ambundos, em tempos súbditos do rei do Congo.[8] Os seus descendentes, os “pescadores da ilha”, guardam até hoje alguns hábitos tradicionais. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilha_de_Luanda ↩︎
  3. O Prédio do Baleizão é um edifício histórico da cidade de Luanda, em Angola. Localiza-se no Largo da Amizade Angola-Cuba, anteriormente conhecido como Largo Infante D. Henrique e Largo do Baleizão. É um dos edifícios mais antigos de Luanda, tendo sido construído no século XVII, no início da colonização portuguesa de Angola. História A construção do edifício remonta ao século XVII.[1]Durante o período colonial, o edifício albergou o Colégio Dom João II,[2][3] vindo a ser classificado como Património Histórico Cultural, pelo decreto número 86, Boletim Oficial número 222 de 23 de Setembro daquele ano, em Luanda.[1]Em 1968, o colégio foi reaberto, partilhando então o edifício com o café Baleizão, onde se dizia serem feitos os melhores gelados de Luanda.[4]Nos anos 1970, o edifício começou a ser habitado por diversas famílias.[5]Em Janeiro de 2019, o edifício achava-se em avançado estado de degradação, sem água canalizada há dez anos e apresentando grandes fissuras, tendo ruído um dos apartamentos.[1][2] Em 7 de janeiro, as autoridades decretaram o seu encerramento, por falta de condições.[6] Todas as 24 famílias que aí habitavam foram desalojadas, sendo disponibilizadas três tendas no Bairro da Paz para o seu realojamento. Considerando a falta de condições do novo local, as famílias encontravam-se então habitando provisoriamente na via pública, no lado de fora do edifício.[1][6] Em Fevereiro do mesmo ano, dezasseis famílias haviam sido realojadas no Zango 4, no município de Viana.[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%A9dio_do_Baleiz%C3%A3o
      ↩︎
  4. Cecília Gourgel esclarece que a primeira designação do género era Massemba. “Nos nossos documentos registamos com Massemba. Quem designou por Rebita, foram os portugueses ao chegarem a Angola. Eles viram que a Massemba assemelhava- se a uma dança francesa denominada “Rebit”, enquadrada no português como “Rebita”, como nós chamamos ”https://somosportugues.com/2019/04/30/angola-rebita-protegida-da-extincao-pelo-estatuto-patrimonio-cultural-imaterial-nacional/ ↩︎

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