#IamWithGary
Gary Lineker foi afastado da BBC devido a um Tweet em que comparava a retórica do governo conservador do Reino Unido à utilizada nos anos 30 na Alemanha. O ex-futebolista e actual jornalista desportivo apresentava o programa “Match of the Day” na dita estação televisiva. No dia seguinte, outros jornalistas e apresentadores da BBC, em solidariedade, declararam que não apresentarão o programa hoje, sábado. Clubes de futebol de todo o país também afirmaram que não darão mais entrevistas à BBC.
Inúmeras personalidades, da direita à esquerda, manifestaram-se repudiando a afirmação de Lineker. A maioria afiança que comparar as políticas do RU com as políticas Nazis e o Holocausto é uma hipérbole imperdoável. Quem se insurge parece não compreender que a comparação é outra: o que ele realmente disse é que a retórica deste governo em relação aos imigrantes e refugiados é comparável à retórica usada na Alemanha em relação aos judeus, no período que conduziu ao Nazismo.
E a comparação faz todo o sentido. Aqui no RU temos sido constantemente bombardeados com a “invasão” através do canal. “É preciso parar os barcos!” – ouvimos e lemos nos jornais e na televisão. Os refugiados já foram apelidados de “hordas” e outros nomes menos próprios. O governo prepara-se para aprovar uma lei que criminaliza qualquer pessoa que chegue ao RU por meios ilícitos – essa pessoa será expulsa do país e ficará permanentemente impedida de pedir asilo – o que entra em conflito directo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há quem defenda, inclusive, que nos devemos desvincular dessa directiva para resolver este problema – já que saímos da União Europeia, não faz sentido regermo-nos por leis europeias. Quer dizer, este governo está disposto a revogar a carta dos direitos humanos para se livrar do dever – que também está previsto na lei – de aceitar pedidos de asilo no país e de ter uma política de refugiados adequada e eficiente. Para além disso, vai ser construído um centro de detenção em França e aumentado o policiamento nas praias, e o governo já anunciou que não abrirá rotas seguras enquanto não puser fim ao problema dos barcos – o completo absurdo, já que as pessoas continuarão a usar as vias clandestinas enquanto não tiverem alternativa. Se o RU estivesse realmente empenhado em resolver este problema construía antes um centro de acolhimento na costa francesa, um local onde as pessoas se pudessem dirigir e tratar do processo de imigração dentro da legalidade.
E isto não se passa apenas no RU. Um pouco por todo o mundo persiste a mesma retórica, principalmente contra a migração económica, que parece representar, no momento actual, o cúmulo do oportunismo e da vigarice. Como se a grande fatia da migração não se devesse a razões económicas. Tirando algumas excepções – nas quais se incluem os refugiados – as pessoas migram em busca de uma vida melhor em termos económicos. E, na verdade, contribuem para, e enriquecem, a economia, ao contrário do que se tenta apregoar. A mão de obra imigrante é um dos principais motores da economia de um país, e se não há condições de trabalho para todos (ou de habitação, educação, saúde, etc), a falha está do lado de quem governa. Mas claro que é mais fácil culpar “os outros”, “os invasores”, e os governantes sempre o souberam e sempre se aproveitaram disso.
No passado 14 de Março discutimos, no Portuguese in Translation Book Club, o livro do escritor angolano José Eduardo Agualusa “O Vendedor de Passados” na belíssima tradução inglesa de Daniel Hahn. No livro, escrito há coisa de duas décadas, Félix Ventura, um albino angolano, vende passados aos novos ricos; aqueles a quem, apesar do futuro assegurado, falta um bom passado. Ora, nos dias que correm, aqui no RU – e em muitos outros lugares do mundo – daria muito jeito um Félix Ventura. Aposto que muitos governantes, se pudessem, apagariam do seu passado o facto de descenderem de imigrantes, em tudo iguais à “turba” que “assola” neste momento o país – apesar de se quererem convencer de que nada têm em comum com ela.
Eu sou imigrante económica e, assim como tantos outros, contribuo para a economia de um país que hoje me fecharia as portas. O RU está a tornar-se, cada vez mais, uma ilha, no pior sentido da palavra – o do isolamento e da incapacidade de estabelecer pontes com o outro – e, em consequência, com o resto do mundo.
Nota: Gary Lineker foi, entretanto, readmitido na BBC.
A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico