Leonardo Ferreira

Cientista luso-americano

© Clif Rhodes

Radicado nos Estados Unidos desde que concluiu a sua primeira licenciatura na Universidade de Coimbra, percorreu um caminho académico notável, incluindo doutoramentos e pós-graduações na área científica ligada à imunologia, prevenção e cura de doenças como a diabetes tipo 2 e cancro. Depois de colaborar em vários laboratórios, abre o seu próprio laboratório e integra a academia como professor universitário. As suas descobertas têm sido alvo de foco por parte dos ‘media’, médicos e comunidade científica mundiais. Palestrante internacional, Leonardo Ferreira concede-nos uma grande entrevista exclusiva com a sua história de vida, o seu último trabalho científico aprovado e as suas aspirações para o futuro de uma saúde mundial ligada à Inteligência artificial e à robótica.

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Quem é o Leonardo Ferreira? Quais as suas origens, onde nasceu, quais os estabelecimentos de ensino que frequentou em Portugal, entre outras curiosidades que nos queira contar?

Sou natural de Coimbra. Tenho 34 anos. Sempre quis ser cientista e inventor, desde que me lembro. Quando era criança ficava fascinado pela forma como os meus joelhos se curavam e regeneravam sempre que os magoava. Também fiquei particularmente intrigado com uma novela brasileira que vi em criança, “O Clone”. Nessa telenovela, um cientista clonou secretamente alguém pouco antes de morrer. Frequentei a escola primária na Escola da Almedina, em seguida ingressei na Escola EB2/3 Martim de Freitas do quinto ao nono ano. No restante secundário transitei para a Escola Secundária José Falcão. Foi nessa fase que comecei a ter as minhas disciplinas de eleição como estudante: matemática e físico-química, bem mais complexas e difíceis do que ao nível do ciclo anterior. Foi também nessa altura – através do Parlamento Europeu dos Jovens – que viajei para um país estrangeiro pela primeira vez, tendo sido também o meu primeiro voo. Essa experiência causou-me uma imensa transformação, porque esses eventos tiveram lugar em países estrangeiros onde se falava, lia e escrevia em inglês ao alto nível de 24/7, durante uma semana. Essas experiencias despoletaram em mim um imenso interesse em viajar. Entretanto, completei a licenciatura em Bioquímica na Universidade de Coimbra. A Universidade de Coimbra é a mais antiga de Portugal (1290) e foi a primeira a ter um curso de bioquímica. Consegui a BII para o ano letivo 2009/2010, a minha primeira bolsa. No meu segundo e último verão na universidade preparei-me para os exames de entrada em doutoramento nos Estados Unidos, submetendo-me ao Graduate Record Examination (GRE) ao Test of English e ao Foreign Language (TOEFL, teste especifico para quem não tem inglês como primeira língua). Em setembro de 2010 fui a Lisboa realizar os dois testes (em segredo) e enviei candidaturas para programas de doutoramento nos Estados Unidos. No início de 2011, começaram as entrevistas. Foi a primeira vez que visitei os Estados Unidos. Em julho de 2011, dei início ao meu doutoramento em Harvard. Como estudante de doutoramento em Harvard, uma conquista foi ser o primeiro a relatar o uso de edição genómica em células T e células estaminais do sangue humanas usando CRISPR/Cas9. Em 2013, também descobri um elemento no DNA que controla a expressão de um gene envolvido na tolerância imunológica durante a gravidez. O ano de 2013, foi muito produtivo e 2014 foi um ano de colher alguns dos louros. Em 2019, estando eu já noutro laboratório do outro lado dos Estados Unidos a fazer um pós-doutoramento há vários anos. Essa pós-graduação focou-se em estudar a tolerância imunológica, o processo pelo qual o sistema imunitário não reage especificamente com um dado alvo, chamado antigénio. De 2016 a 2021,foram cinco anos de intensa aprendizagem e trabalho e, talvez mais importante, obtenção de independência no laboratório. Comecei a trabalhar no laboratório primeiro sozinho, depois treinando outros para me ajudar. Foi também lá que me candidatei e obtive a minha primeira bolsa como investigador principal (uma “Grant”, em contraste com uma “Fellowship”, onde se concorre para conseguir suporte de salário para trabalhar com um investigador principal). Em 2020, o mundo sofreu uma transformação por causa da quarentena e isolamento para conter a COVID 19. São Francisco, California, implementou medidas bem restritas durante mais de um ano. Todo este isolamento e mais tempo para pensar também me levou a tomar uma decisão: candidatar-me a posições de professor assistente para ter o meu próprio laboratório! A ciência é difícil e demora muito tempo (eu posso contar pelos dedos das mãos quantas descobertas que me dão animo e são reconhecidas pelo mundo, que eu fiz em 15 anos de investigação científica), mas não consigo imaginar não ser cientista e inventor.

Insere-se em alguma comunidade de Portugueses? Frequenta alguma atividade com essa comunidade?

Quando morava em Cambridge, Massachusetts, durante o meu doutoramento, uma das minhas colegas de laboratório, Ângela Crespo, também portuguesa, era a presidente do capítulo de Boston da Post-graduate Portuguese American Society (PAPS). Então, um ano depois de me ter mudado para os Estados Unidos, finalmente entrei em contacto com uma comunidade portuguesa nos Estados Unidos. Através dela fiz vários amigos portugueses e falei em alguns eventos sobre o meu trabalho no laboratório. A presença portuguesa em Boston é forte, com uma população notável de lusodescendentes em East Cambridge, MA, e bastantes estudantes de Portugal em Harvard e MIT (o que faz sentido, visto essas serem as duas universidades americanas de que se ouvia falar em Portugal quando eu crescia lá). Quando me mudei para São Francisco para o meu pós-doutoramento, descobri, por acaso, um grupo chamado Portuguese in the Bay Area. Tinham encontros uma vez por mês e eu compareci em alguns até se dissolver quando o presidente, um empresário, voltou para Lisboa. Mas durante esse tempo conheci pessoas que trabalhavam no consulado português em São Francisco, algumas das quais me convidaram mais tarde para um jantar em 2018, onde eu conheci o primeiro-ministro António Costa e com ele conversei sobre a minha investigação no único restaurante português em São Francisco chamado «Uma Casa». Este evento aconteceu em junho, quando o então primeiro-ministro e assessores viajaram para a Bay Area e Silicon Valley por conta de algumas parcerias entre empresas no Silicon Valley e empresas portuguesas. Em Charleston, SC, só conheci uma pessoa de Portugal até agora, Ana Mafalda Velez de Castro, a qual também trabalha na Medical University of South Carolina, e não tenho conhecimento de nenhuma comunidade ou evento português.

Vota nas eleições partidárias portuguesas? Pensa que se o voto fosse eletrónico haveria mais participação nas urnas da parte dos emigrantes portugueses espalhados pelo mundo?

Eu votei em eleições portuguesas no Consulado de Portugal em San Francisco, Califórnia. Eu não trabalho no campo de computadores, mas imagino que não seja seguro votar por computador devido à possibilidade de os resultados serem alterados por hackers. Nos Estados Unidos, onde a tecnologia abunda, o voto ainda é feito em papel precisamente por essa razão.

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Tem sorte pela proximidade do consulado. Tem conhecimento de que Portugal tem neste momento, de acordo com estatísticas, quase seis milhões de emigrantes e lusodescendentes espalhados pelo mundo?

Acredito. Portugal é um país de exploradores e descobridores. É também um país cuja economia não suporta todo o seu capital humano, então que, num mundo globalizado, já há várias décadas que há talento português pelo mundo inteiro.

Muitos desses emigrantes pagam IMI (Imposto Municipal sobre imoveis) e outros impostos indiretos quando visitam Portugal. Entre esses emigrantes muitos são jovens e não conseguem deslocar-se a um consulado ou uma embaixada por terem de percorrer, em vários casos, mais de 500 km. A par disso muitos dos votos por correspondência são desviados e não chegam a Portugal. Não lhe parece mais preocupante do que o voto digital? Não é injusto?

Não sei o suficiente para opinar sobre esta situação. Mas posso relatar da minha experiência pessoal que eu recebo cartas e encomendas em casa e no laboratório de diferentes países no mundo sem aparente problema. Inclusivamente, cartas de Portugal (família, governo, finanças) são recebidas aqui na minha casa na Carolina do Sul, Estados Unidos e são enviadas de cá para Portugal e outros países sem nunca nenhuma se ter perdido. Então, parece-me bizarro e preocupante que votos por correspondência não cheguem a Portugal.

Gostaria de votar nas próximas eleições autárquicas para escolher o próximo presidente de câmara de Coimbra e escolher o presidente de junta da freguesia de Almedina?

A liderança ao nível de freguesia, de concelho, e de distrito é muito importante e o nível a que mais cidadãos tem acesso. Quando estava na Escola Secundária José Falcão em Coimbra e era parte da delegação representado Portugal em foros do Parlamento Europeu dos Jovens em vários países da Europa, recordo-me de um encontro com o presidente da câmara municipal de Coimbra Dr. Carlos Encarnação juntamente com outros colegas parte da delegação e com a professora responsável pela equipa Dra. Ana Pato Catroga. Ele contou-nos sobre a sua experiência como político e do seu tempo na Suíça, recontando que o chocolate lá tinha demasiado açúcar para o seu gosto. Talvez mais relevante, ele disse-nos o quão importante era viajarmos e ver outros países e outras realidades e ajudou a providenciar algum financiamento para as nossas viagens. Ele deixou de ser presidente da câmara um pouco antes de eu sair de Portugal, há mais de treze anos. Ao nível da freguesia não me recordo se interagi com alguém da liderança. Eu morava na freguesia de Santa Cruz, a qual foi extinta depois de eu ter saído de Portugal. Não tenho uma opinião forte sobre portugueses no estrangeiro votarem em eleições de freguesia e de concelho. Eu pessoalmente estou muito mais a par e sou mais afetado por aquilo que se passa ao nível local onde vivo em Charleston, Carolina do Sul, Estados Unidos, do que em Coimbra, Portugal, onde já não vivo há mais de treze anos.

Com que regularidade visita Portugal nas suas férias?

Visitei Portugal três vezes nos últimos treze anos e meio: primavera de 2016 para mudar o meu visto para presença no Estados Unidos (quando acabei o meu doutoramento em Harvard em Maio de 2016, tive que visitar a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa e receber uma extensão para pós-doutoramento e depois reentrar os Estados Unidos com esse novo visto, verão de 2019 (visitei família e amigos aproveitando ter dado palestras ali ao lado em Paris), e inverno de 2021 (assisti à defesa de tese de mestrado em biologia molecular da minha mãe na Universidade de Aveiro).

Conhece alguma publicação portuguesa que acompanhe? Tem conhecimento de uma publicação luso-americana chamada Jornal Luso-americano sediada em Newark?

De momento não acompanho nenhuma publicação portuguesa e infelizmente não conheço o jornal Luso-americano. Devido a restrições de disponibilidade de tempo, as únicas publicações que se pode dizer que acompanho são a Science magazine e a Cell magazine. Recebo ambas em versão impressa em casa, todas as semanas, para me forçar a ler artigos que não são diretamente relacionados com a minha investigação. Sou um grande crente na polinização cruzada entre diferentes campos de estudo e ler artigos de física, neurociência, entre outros, o que poderá levar à descoberta de ideias ou métodos adaptáveis aos meus questionamentos e estudos em imunologia no laboratório.

Como é a sua rotina profissional?

Para ser cientista é preciso ser-se muitas coisas ao mesmo tempo: ter destreza manual para fazer experiências, lêr e compreender artigos de investigação, escrever artigos de investigação e pedidos de financiamento com planos de trabalho, potenciais alternativas, e orçamentos, ensinar no laboratório e na sala de aula, dar palestras, falar com jornalistas e resolver problemas em geral. Talvez o mais importante é a paixão por querer fazer algo único. Sem isso nada feito. O primeiro passo para alcançar um objetivo é querer alcançar o objetivo. Também penso sempre que talvez existam outros que são melhores a fazer aquilo que eu faço, mas que isso não importa porque não são esses que estão a fazê-lo, sou eu. A minha rotina profissional é quase não existente. Não há dois dias iguais. Alguns dias faço cirurgias em animais que duram o dia todo das 9 da manhã até as 7 da tarde, sem tempo para ler e-mails ou comer. Outros dias, estou fora da cidade ou do país numa conferência a assistir ou a dar palestras. Na maioria dos dias, começo por vir ao laboratório de manhã e entro e saio para reuniões ou experiências que estão a decorrer. Continuo a ter uma secretária no laboratório e a fazer experiências. Passo tanto tempo no laboratório quanto possível para que os meus estudantes de doutoramento e pós-doutoramento me possam questionar ou mostrar novos resultados rapidamente sem ter de marcar reuniões. Por vezes, as ideias surgem ao falar com eles e elas ou de ver algo pela primeira vez no laboratório. A descoberta continua a ser o motor da minha dedicação à ciência. Mas claro que por vez passo horas em salas de reuniões ou fechado no meu gabinete a escrever uma bolsa, um relatório ou um artigo de investigação. Algumas noites não chego a dormir porque tenho um prazo ou porque começo a analisar resultados e não largo o trabalho enquanto não tiver um entendimento bem documentado daquilo que observo e o contexto em que se poderá enquadrar. Por vezes, tenho encontros no meu gabinete individualizados com membros do meu laboratório que duram duas, três ou quatro horas. Fazer ciência é constante e absorvente.

Na atualidade, reunimos um conjunto de portugueses que se situam muito confortavelmente nos EUA, na política, como autarcas e senadores; gente ligada à medicina e à Biologia, como colaboradores de grandes laboratórios luso-americanos, e em várias empresas de relevo. Mantém contacto com esses portugueses? Associam-se de algum modo? Falam em língua portuguesa?

De momento, não mantenho contacto com portugueses fora da família e professores orientadores da Universidade de Coimbra, mas estou sempre aberto a conhecer novas pessoas e personalidades. Conheci alguém de Portugal nas Honduras numa conferência o mês passado, por exemplo. Utilizo a língua portuguesa raramente, especialmente em forma escrita, uma vez que o meu telemóvel e computadores todos têm os parâmetros em inglês como língua e então é muito difícil escrever algo em português no dia-a-dia sem ser autocorrigido para uma palavra similar em inglês ou dar erro. Uma forma para mim de não esquecer o português é falar com os media portugueses.

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Que tipo de reconhecimento sente por parte de autoridades portuguesas? E pelas autoridades americanas?

O meu trabalho tem sido reconhecido por autoridades americanas ao longo dos anos. Recebi prémios, dei palestras e apresentei posters em conferências de várias organizações americanas, fui também convidado a dar seminários em várias universidades americanas. O trabalho no meu laboratório tem sido financiado pela Medical University of South Carolina e Hollings Cancer Center, NIH, e fundações americanas como a Diabetes Research Connection, American Cancer Society e Swim Across America. Também sou chamado para rever bolsas e manuscritos e dar consultadoria a empresas americanas a trabalhar em terapia celular e genética. Em relação a autoridades portuguesas, tive o prazer de conhecer em pessoa, em São Francisco, em 2018, o na altura, primeiro-ministro António Costa. Falamos um pouco sobre a minha investigação e referiu-se à questão de que financiamento e infraestrutura Portugal precisaria para melhor atrair de volta cientistas portugueses radicados nos Estados Unidos. Ele parecia ser fã da investigação científica e disse na altura, como parte do seu discurso depois do jantar, num evento com o Consulado de Portugal em São Francisco, que Portugal era sempre caracterizado por pessoas que vão para fora explorar e conquistar o mundo. Há muito tempo, esses foram os navegadores que desbravaram e descobriram novos mares e novas terras, agora no século XXI são os cientistas que fazem descobertas e produzem avanços científicos. Alguns dos meus artigos científicos apareceram nos ‘media’ portugueses como o Jornal 2, Antena 1, a revista Público, a revista Sábado, e a revista Super Interessante. Já fui convidado para dar uma palestra no Instituto Pasteur em Paris, mas nunca fui convidado a dar uma palestra em nenhuma universidade portuguesa. Imagino em parte que será porque não trabalho na Europa e não tenho colaboradores na Europa de momento.

Quem sabe depois desta entrevista, surgirá um convite de alguma universidade portuguesa. Que sabor teria esse momento para si?

Ser convidado a falar numa universidade portuguesa seria ótimo. Há muito talento e investigação importante a acontecer em Portugal e o meu laboratório está numa fase de planeamento e expansão agora que vários projetos têm bases sólidas e parte dos seus resultados foram publicados no ano passado. Então há que estabelecer novas colaborações e recrutar mais estudantes. Da mesma forma que é sempre especial voltar ao campus de Harvard University onde fiz o meu doutoramento, seria também especial voltar ao campus da Universidade de Coimbra onde fiz a minha licenciatura e a Lisboa, onde realizei os testes de candidatura para doutoramento nos Estados Unidos.

Em que medida pensa que a Inteligência Artificial, tão acelerada e frenética no momento, pode contribuir nas suas descobertas?

A Inteligência Artificial tem progredido a um passo assombroso. Há várias formas em que pode contribuir para as nossas descobertas. Vou elencar por números: 1. Leitura e análise da literatura com velocidade imbatível. Ainda que a análise cuidadosa de artigos científicos continue a necessitar de especialistas humanos, a Inteligência Artificial (ChatGPT, Perplexity, etc) agora, consegue responder a perguntas científicas de forma coerente, detalhada e com referências que se podem consultar para verificar a resposta. 2. Análise e visualização de resultados. Se se estiver a lidar com grandes quantidades de dados, por exemplo, quando se realiza sequenciação de RNA tal que se obtém um documento com várias colunas, uma para cada condição sendo testada, e trinta mil ou mais linhas, uma para o nível de cada gene, a inteligência artificial pode escrever um código de computador para realizar a análise estatística e gráficos no sentido de representar esses dados de forma compreensível para humanos. Um corolário desta função é que a Inteligência Artificial será superior a humanos a encontrar padrões em grandes bases de dados. Por exemplo, se o objetivo é encontrar um grupo de genes que se expressam preferencialmente num cancro em relação a tecidos saudáveis, a inteligência artificial pode navegar milhões de dados para providenciar uma reposta que, mesmo que não seja final, pode ser um ótimo ponto de partida que se pode testar no laboratório rapidamente. 3. Predição de resultados. O tempo de professores, estudantes e investigadores em geral é limitado para testar todas as suas ideias. Tentando não correr o risco de eliminar importantes descobertas que ocorrem por acaso (a penicilina é um exemplo famoso), a inteligência artificial pode construir modelos baseados em dados existentes no sentido de prever resultados de experiências. Isto pode ser útil para priorizar experiências. Conheço quem esteja a construir empresas na tentativa de criar modelos virtuais de animais para se diminuir o número de animais necessários às experiências e também quem se dedique a criar “cientistas de inteligência artificial” que podem propor experiências, conectar com equipamento automatizado para realizar essas experiências e posteriormente, sumarizar os resultados e usá-los para desenhar a próxima experiência. A utilidade e o progresso da Inteligência Artificial dependem, claramente, do progresso da computação quântica (quantum computers) capaz de realizar novas computações hiper complexas. Também depende do desenvolvimento da robótica, que dá um corpo físico a agentes de Inteligência Artificial. No contexto do laboratório, há vários anos que existe um esforço para automatizar certas tarefas. No meu laboratório tenho um robô que purifica tipos de células imunes especificas (por exemplo, células T) de forma automatizada, por exemplo. De momento, nós temos de programar cada detalhe e colocar cada tubo de reagente na máquina para o isolamento de células. Quando existir uma conexão desse robô com a Inteligência Artificial poderemos automatizar ainda mais o processo de obtenção de células. Prevejo que num futuro próximo, teremos secções inteiras de laboratório com robôs com Inteligência Artificial. Isto é uma visão de que a Inteligência Artificial não só ajudará a gerar ideias, como também a analizar os resultados de testar ideias e ajudará no processo de testar as suas próprias ideias, havendo um envolvimento completo do princípio ao fim do processo cientifico.

É inevitável referirmos, nesta entrevista, a mudança na politica americana. Sabemos que os cientistas são pouco vocacionados para se enredarem em política. Contudo, não resistimos a perguntar: dado o atual protagonismo de Elon Musk nos sectores das descobertas a vários níveis, gostaria que Elon Musk visitasse o seu laboratório? Em que poderia ele ajudar a alavancar algum estudo ou descoberta?

Sim, adoraria que o Elon Musk visitasse o meu laboratório. Ele tem várias empresas que dependem da inovação tecnológica, como carros eléctricos e carros que se guiam a si mesmos. (Tesla). Também desenvolve naves espaciais reutilizáveis (SpaceX), e até desenvolve a conexão entre computadores e o cérebro (Neuralink). Todas estas iniciativas estão mais relacionadas com a engenharia em grandes escalas e com objetos inanimados. Penso então que seria interessante para ele olhar atentamente para a engenharia genética de células humanas e assim potencialmente provocar um grande impacto no campo da biologia e da medicina. Trabalhar com objetos inanimados como peças de carros, foguetes e computadores é bem diferente de trabalhar com células e animais, os quais têm o seu próprio ritmo e requerem um diferente tipo de planeamento. As células não se dividem mais depressa por passarmos muitas horas no laboratório, nem obedecem aos prazos que temos para cumprir. Ainda assim, o objetivo é o mesmo: fazer descobertas científicas e fomentar o progresso, mudar a forma de fazer acontecer as realidades, movendo a civilização para a frente. O Elon Musk poderia sem dúvida ajudar em alguns estudos.

O que teria para lhe sugerir no âmbito da ciência médica?

Muitas ideias. A empresa de Elon Musk NeuraLink conectando chips de computador ao cérebro marca o primeiro golo biológico ao ajudar pessoas a controlar dispositivos usando os seus pensamentos, o que se revela muito útil especialmente para pessoas paralisadas. Vejo isso como um prenúncio de que Elon Musk poderá a começar a imiscuir-se na ciência médica. Não vai ser necessariamente fácil. Tendo vivido em Boston, onde a medicina e biotecnologia dominam, e em São Francisco, onde a engenharia de computadores domina, posso afirmar, por experiência própria, que as duas áreas podem desenvolver-se a velocidades muito diferentes. Em São Francisco há muitas histórias de pessoas que não acabaram o ensino e começam empresas nas suas garagens, são autodidatas e revelam ter muitas capacidades. No mundo do software virtual, se alguém for muito inteligente, ambicioso e trabalhador, pode desenvolver um novo software ou aplicativo em meses. Isso demonstra um grande contraste com o mundo da biotecnologia, no qual pode demorar em média 20 anos desde a descoberta de um novo fármaco até estar aprovado para usar em humanos pela FDA (U.S. Food and Drug Administration). Em biologia e medicina há que fazer ensaios pré-clínicos, clínicos fase I, clínicos fase II, e clínicos fase III. As linguagens de código de computador são rígidas, enquanto os sistemas biológicos tem quase sempre surpresas em termos da função de um determinado gene ou proteína ou uma diferença entre ratinhos e humanos. Mesmo que seja possível condensar o tempo que demora a gerar candidatos a fármacos que podem ter êxito e gerir tudo quanto sejam formulários a preencher com inteligência artificial, nada pode substituir testar intervenções, sejam de moléculas, de terapias celulares ou de dispositivos médicos. Os testes são feitos primeiro em animais e depois em pessoas durante anos e anos para se certificar a eficácia e a segurança. No entanto, o que constato é que a tecnologia avançou suficientemente para que seja possível gerar certos tipos de dados biológicos em grande quantidade e depressa. É também possível agora fazer-se engenharia genética com grande precisão com CRISPR/Cas9. Alguém como o Elon Musk poderia sem dúvida constatar aquilo que já foi feito e aquilo que precisa de ser feito no campo da terapia celular e genética e, fomentando-se grande progresso na área, transformar aquilo que pensávamos ser possível. Se a sua inovação e empreendedorismo tem sido de valor em objetos como carros e foguetes, potencialmente de mais relevo ainda serão na biologia e medicina, visto todas estas áreas obedecerem às mesmas leis da física e necessitarem verdadeira ruptura com paradigmas anteriores para verdadeiro progresso ocorrer.

Vamos então aprofundar a temática especifica das suas descobertas e contributos para a ciência. De que se trata, quando falamos de medicina regenerativa?

A medicina regenerativa consiste na ideia de curar doenças causadas pela perda ou dano de um ou mais tipos de tecido ou órgãos através da sua substituição por tecidos e órgãos sãos. Ainda que o termo seja relativamente recente, uma forma de medicina regenerativa existe já há muito tempo: o transplante de órgãos. Num transplante de rim, um rim saudável é transplantado para substituir um rim que não funciona bem. Em tempos mais recentes, no entanto, o conceito da medicina regenerativa está ligado às células estaminais, que são células pluripotentes que podem dar origem a qualquer tipo de célula no corpo humano. Inicialmente isoladas de embriões humanos, agora podem criar-se células estaminais pluripotentes através de células adultas, como células da pele ou do sangue, com base daquilo a que se chama reprogramação. Estas células pluripotentes induzidas podem depois dar origem a qualquer células do corpo humano desejada. Um grande ênfase agora e em gerar células especificas funcionais desde de células pluripotentes e usa-las para construir tecidos e órgãos inteiros no laboratório. Imagina-se um futuro onde se podem fazer tecidos e órgãos de encomenda sem se necessitar de corpos humanos como dadores. Parte das estratégias da medicina regenerativa também incluem claro ativar células adultas dentro do corpo do paciente, não havendo assim necessidade de um transplante. Por exemplo, poder-se-iam ativar as células do fígado a dividirem-se e repararem um fígado danificado em vez de transplantar um novo fígado.

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Soubemos que o seu primeiro trabalho de investigação no seu próprio laboratório, acabou de ser aceite na comunidade cientifica. Por favor, fale-nos desse trabalho e esclareça-nos sobre a génese de células estaminais modificadas.

Sim, o primeiro trabalho de investigação do meu laboratório acaba de ser publicado! Nele reportamos uma nova estratégia para curar diabetes tipo 1. É uma bela história colaborativa onde criamos células beta produtoras de insulina originárias de células estaminais geneticamente modificadas de forma a que as células e tecidos derivados delas são especificamente reconhecidos por células regulatórias T (Treg) imunossupressoras geneticamente modificadas que criamos para protegerem os tecidos derivados dessas células estaminais modificadas do ataque do sistema imunitário do recipiente após o transplante. Tive como colaborador o Doutor Holger Russ, Professor Associado da Universidade da Flórida especialista em diferenciar células estaminais em células beta e em diabetes tipo 1. A medicina regenerativa promete tratar muitas doenças, substituindo os tecidos danificados por novos feitos de células estaminais. Mas o nosso corpo rejeita tecidos que não são nossos. Este obstáculo é particularmente difícil de resolver no caso da diabetes tipo 1, uma doença autoimune em que o sistema imunitário dos doentes destrói as células beta pancreáticas produtoras de insulina, tornando-os dependentes de insulina exógena para controlar o açúcar no sangue. Este tratamento não é perfeito, claro. O transplante de ilhotas pancreáticas pode torná-las novamente independentes da insulina exógena, mas o transplante tem de ser acompanhado de medicamentos imunossupressores para o resto da vida, que causam danos a múltiplos órgãos e inibem todo o sistema imunitário, criando suscetibilidade a infeções e ao cancro. As Tregs são um tipo de células imunitárias que podem ser encontradas no sangue e que se dedicam a inibir respostas imunitárias específicas. Direcioná-las para um local específico do corpo, como um órgão transplantado, protege esse local da inflamação e do ataque imunitário. No entanto, encontrar uma proteína alvo única que esteja presente apenas num local e em mais lado nenhum é muito desafiante e as Tregs com alguma especificidade são muito raras no sangue. Para contornar estes desafios, Co modificamos geneticamente células estaminais e Tregs para que as Tregs modificadas protejam os tecidos derivados de células estaminais modificadas. Especificamente, modificámos geneticamente células estaminais para expressar um ligando proteico inerte único na sua superfície. De seguida, diferenciamo-los em células beta que ainda expressam esse ligando. Paralelamente, isolámos as Tregs do sangue e modificámo-las geneticamente com um receptor de antigénio quimérico (CAR), de modo que agora reconheçam o ligante único nas células beta projetadas. Prosseguimos mostrando que esta dupla engenharia genética permite a proteção localizada contra o ataque imunitário de células beta humanas que expressam um ligando por CAR Tregs humanas específicas para esse ligando num modelo de ratinho humanizado. Em conclusão, abordámos tanto a perda de células beta como a resposta imunitária da diabetes tipo 1 nesta nova estratégia terapêutica, com alguns outros desafios também abordados. Especificamente, utilizámos células beta derivadas de células estaminais, um recurso inesgotável disponível no mercado, para resolver o problema da falta de ilhotas pancreáticas cadavéricas de alta qualidade; Como os transplantes de ilhotas são rejeitados pelos pacientes com diabetes tipo 1 devido à rejeição alogénica (as ilhotas de um dador cadavérico e o paciente não são compatíveis) e à autoimunidade (o sistema imunitário do doente destrói células beta), protegemos as células beta do ataque imunitário com Tregs específicas para um antigénio presente nas células beta; Como as Tregs funcionam bem quando são específicas para um antigénio, mas as Tregs específicas para um determinado antigénio são muito raras e por vezes o antigénio é desconhecido, utilizámos CAR Tregs desenhadas especificamente para se ligarem e serem estimuladas por um antigénio à escolha; Modificámos células estaminais para introduzir um antigénio único (ausente em qualquer outra célula do corpo), criámos um CAR específico para esse antigénio e colocamo-lo em Tregs, pois é extremamente difícil encontrar uma proteína de superfície celular que esteja presente somente nas células beta e em mais nenhum local do corpo.

Para além de todo este trabalho científico gostaríamos de saber se pratica hábitos de bem estar como o cuidado na alimentação e a prática de desporto. Em que medida a nossa genética pode ser contrariada e preventiva de doenças por assumirmos esses hábitos?

Sim, a alimentação é muito importante e também o exercício físico. Depois de décadas de estudos em biologia, esses continuam a ser os dois cuidados que todos devemos ter e para os quais há evidência concreta de benefícios para a saúde e também para retardar o envelhecimento de muitos tipos de animais, incluindo humanos. A genética proporciona certos limites, por exemplo a altura máxima, a acuidade de visão, e a quantidade de produção de musculo esquelético. Para alguns destes traços genéticos há intervenções biológicas e cirúrgicas que poderão alargar os valores destes parâmetros. Eu sempre vivi a curta distância das diferentes escolas e universidades em que estudei e trabalhei e por isso caminhei e caminho muito. Atualmente, desloco-me de bicicleta todos os dias para a universidade, em Charleston. Em alguns fins de semana ando de bicicleta 50 km com outros ciclistas que também são professores na Medical University of South Carolina. Também vou ao ginásio todas as semanas, onde pratico uma mistura de boxe, basketball, rowing, biking, lifting, e claro, a sauna e steam room no fim. No que toca à alimentação, todos os dias como frutas e vegetais e raramente como antes do meio-dia. Provou-se em muitos estudos que fazer jejum e restrição calórica aumenta a longevidade. E há que evitar comidas muito processadas e com altos níveis de açúcar ou de sal. E difícil desfazer o mal causado por comidas processadas através de exercício, porque não há exercício que chegue para queimar todas as calorias sem danificar o corpo no processo. Trabalho na engenharia genética de células do sistema imunitário como terapias vivas para doenças autoimunes e o cancro, mas prevenir continua a ser o melhor remédio.

Terminamos, desejando-lhe muito sucesso. Estamos em crer que vai continuar a ser um grande embaixador de Portugal e a progredir nas suas descobertas a bem da saúde humana. Gostaríamos de dar conta de uma visita sua a uma universidade portuguesa. Que mensagem deixa aos jovens que estão a estudar nas universidades portuguesas?

Muito obrigado. Aos jovens que estão a estudar nas universidades portuguesas, continuem com o trabalho e a dedicação a ciência. Uma grande vantagem e aspecto especial da investigação científica é que é uma atividade global. As leis da física e o método científico são os mesmos em todos os países do mundo. Então, independentemente de onde se começa, não há limite para onde se acaba ou aquilo que se pode atingir. Rodeiem-se também de mentores e colegas que não só suportam, mas também criticam. Sem constante zelo e aperfeiçoamento não se atingem objetivos na ciência. E finalmente, talvez o mais importante: divirtam-se! A ciência, o perseguir da descoberta, é algo inerentemente inebriante e divertido. Vão haver altos e baixos e períodos de muito trabalho e de dúvida e de desespero, mas o ânimo e prazer em interrogar o universo, bem como conhecer e interagir com outros, com a mesma paixão, são dádivas insubstituíveis. Boa sorte!

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