Mário Cesariny

Visto a esta luz

Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços

Constroem-te um ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre

O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar

Quero-te sempre como nã querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade

Mário Cesariny

Mário Cesariny

Poeta, pintor e referência fundamental do surrealismo português, é tido como uma das maiores vozes da poesia portuguesa do século XX, sendo de destacar ainda o seu trabalho de antologista, compilador e historiador, um tanto polémico, das atividades surrealistas em Portugal. Alguns dos seus títulos são: “A Literatura de Teixeira de Pascoais” (2000), “A Rainha Morta e o Rei Saudade” (2003), “Viagem a Pascoais” (2006), “O Apocalipse de D. Carlos” (2008), “Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal” (2013) e “O Estranhíssimo Colosso” (2015). Militante e defensor acérrimo do Surrealismo, Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006) dirá mais tarde: “Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”.

Esta rubrica pretende dar a conhecer ao mundo o melhor da poesia por diversos autores lusófonos. Os poemas são selecionados por Gilda Pereira, uma fã incondicional de poesia.

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