O sermão aos peixes, numa época de viveiros

Com um pouco de História em mente, ninguém duvida hoje que estamos perante um novo ciclo económico, um novo paradigma. Para o iniciarmos, foram séculos de História que foram erguendo condições de vida cada vez melhores e que permitiram o desenvolvimento da ciência de uma forma nunca antes vista. Mas foi um vírus que premiu o gatilho, enviando um “tiro ao ar” que marcou o início da partida. O Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira sj, tem essa representação histórica. Foi o sinal de um movimento que visava a proteção dos indígenas brasileiros e o fim da escravatura. E conseguiu os seus intentos, para tristeza dos colonos, que dependiam de mão-de-obra barata. A revolução industrial, que marcou o ciclo que vivemos até hoje e se iniciou em meados do séc. XIX, foi outro momento histórico. O fim da manufatura permitiu a produção em série; a produção em série permitiu o acesso a mais e melhores bens materiais; a produção explodiu; o consumo também. E as economias dos vários países seguiram o seu ciclo de crescimento.
Hoje vivemos um momento histórico em tudo semelhante. Há cerca de 60 anos, um conjunto de profissionais de várias áreas juntou-se para pensar o futuro da cozinha. Sociólogos, gestores, arquitetos juntaram-se para pensar como seria a cozinha nas décadas seguintes. E imaginaram algo parecido com o que estamos a construir hoje – um espaço de produção rápida, que retira carga de trabalho a quem precisa de tempo para se ocupar com outras coisas. A imaginação não foi exata: o espaço estava carregado de roldanas e motores; e tinha, até, um frigorífico com chave que, movimentada uma roldana, se virava para o exterior das casas, de forma a que o merceeiro da rua pudesse colocar as compras diárias no frigorífico enquanto as mulheres (sempre as mulheres!) estavam no seu trabalho. Desta forma, as mulheres teriam menos uma preocupação – fazer as compras diárias, antes de preparar o jantar. É óbvio para nós, hoje, que a sociedade não evoluiu exatamente assim. Mas as compras chegam a casa, via online. E há frigoríficos que avaliam o estoque de produtos e encomendam diretamente aos grupos de distribuição, sem exigir o controlo humano diário dos gastos. Hoje, à industrialização juntou-se o papel da comunicação. Tão simples como isso. John Locke sentir-se-ia orgulhoso – foi o conhecimento baseado na experiência que exigiu a evolução a que assistimos hoje; o empirismo deu um empurrão à ciência.

Platão ou Descartes também teriam motivos de orgulho: o racionalismo permitiu que a ciência evoluísse, para responder às necessidades provocadas pela experiência. Eu, que gosto de sínteses, acredito que o racionalismo e o empirismo, juntos, nos trouxeram até aos dias de hoje, que nos apresentam uma realidade nunca antes vista.
Para mim é claro que a evolução não se faz sem perdas. Muitos dos que estão e estiveram habituados a um estilo de vida e, sobretudo, muitos dos que só sabem produzir trabalho que deixa de ser necessário, vão sofrer com o novo ciclo económico a que demos início. Mas outros vão adaptar-se. Vamos ter um novo perfil de novos ricos. Em todas as aceções da expressão. Como será o vinho, neste novo modelo económico?
Tudo aponta para que também o sector do vinho vá sofrer alterações significativas.
Do ponto de vista agrícola, novas práticas vão necessariamente influenciar o perfil das produções. Na Holanda, a produção intensiva deu uma resposta extraordinária às necessidades de consumo. Mas a perda de sabor dos alimentos foi uma evidência. Os preços baixos dos vinhos têm vindo a empurrar produtores para um incremento do volume de produção por hectare. Mas a falta de concentração das uvas obriga a mais intervenções enológicas, com as leveduras produzidas em laboratório a fazer o seu papel de “adaptação ao gosto do consumidor”. Muito provavelmente, vamos ter cada vez mais vinhos para consumo em série. E os vinhos que vão manter o perfil “antigo” vão ser praticamente inacessíveis ao comum dos mortais.
Na distribuição vamos assistir a um fenómeno não muito diferente. As marcas mais conhecidas vão investir primeiro na disseminação e na produção barata, para que mais pessoas possam continuar a beber. As encomendas automáticas vão privilegiar as marcas mais disseminadas. Mas o prazer de beber um vinho único, que respeite a Natureza e os métodos naturais, vai continuar a exigir canais próprios e conhecimento de especialistas. Uma coisa é certa – vai ser cada vez mais caro e difícil encontrar produtos com um sabor único, sem intervenções massivas. O que revela uma oportunidade de investimento muito interessante: hoje, há vinhos que prometem evoluir (e encarecer bastante) nos próximos – pelo menos – 50 anos.

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