A arte e o vinho

Duas facetas da intervenção humana

Entendi sempre que os Pais educavam, mas os Avós concediam identidade e profundidade. Pois eu tive a sorte de ter uma Avó que contava a História do Mundo através da História da Arte. Era uma delícia ouvi-la narrar como a evolução humana estava toda ali, ilustrada nas pinturas rupestres, nos clássicos, nas várias tendências artísticas que foram marcando os séculos. O declínio e o apogeu artístico anteciparam sempre a forma como a economia, a demografia, as invenções e as construções foram ocorrendo. E a expressão artística foi ilustrando a forma como os homens se comportavam noutras áreas sociais.
Ora, tendo estado em férias, disponível para me dedicar a um “produtivo” modo de vida ocioso, dei por mim a pensar na arte produzida hoje: tantas vezes marcada por barroquismos sem sentido, vincada por formas que perseguem inovações sem senso, sem utilidade, sem estética. Sempre em nome de uma espécie de modernidade, incompreendida pelos outros.
Também o vinho é uma expressão artística do Homem, que influencia e adapta o que a Natureza proporciona. Sim, o vinho é natural e é produzido agricolamente. Mas já não somos nómadas-colectores: influenciamos a Natureza, escolhendo os locais de plantação das vinhas, optando por determinadas castas em detrimento de outras, selecionando as uvas, desenhando os lotes e assumindo um conjunto de outras decisões importantes. Ao valorizar o papel do Homem sobre a Natureza na produção do vinho, pareceu-me legítimo equacionar: se a humanidade está culturalmente perdida (ou quase), será que também o mundo dos vinhos está corrompido? A resposta não é linear, mas pareceu-me potencialmente interessante. Ao valorizar as falhas, podemos sempre melhorar e atingir novos patamares de exigência. Então vamos a essa reflexão…
A uniformidade dos sabores
A sobrevalorização de alguns líderes de opinião, sobretudo internacionais, cria condicionantes ao futuro dos sector. Quando um líder de opinião sugere um determinado caminho, há uma maioria de produtores que uniformiza os seus vinhos, para responder às tendências momentâneas. Como consequência, a maioria das castas portuguesas tem vindo a ser abandonada. A introdução de castas internacionais e o abandono de castas locais tem um efeito dramático no potencial de diversidade de que Portugal será um dos países mais bem preparados para assumir. Por outro lado, o uso de leveduras comerciais (em substituição das autóctones) concorre também para a uniformização dos aromas e dos sabores. O seguidismo e as modas são claramente um passo atrás na exploração da localidade, da regionalidade e da cultura dos vinhos. Fica uma nota negativa para aqueles que, na intervenção humana sobre o vinho, não privilegiam o terroir como expressão máxima de um vinho: porque, como na arte, é importante criar correntes e saber contornar modas passageiras.

As consequências de preços baixos
O preço baixo dos produtos finais é uma barreira ao bom investimento. O uso de produtos químicos em excesso – panaceia para os problemas das uvas – é também uma limitação para a afirmação do vinho em todo o seu potencial. Há produtores que, para assegurar preços competitivos, investem mais nas adegas e na enologia do que nas vinhas e na viticultura. Mas assim como há vinhos mais comerciais e com preços mais baixos que pouco respeitam a Natureza, a fileira dos produtores que assume cuidados crescentes com a naturalidade dos vinhos tem vindo a engrossar de forma determinante. Aqui as posições estão a extremar-se, com o meio termo a perder adeptos. Nota negativa para os produtores, distribuidores e consumidores que se focam apenas no preço – sem perceber as consequências para o sector e para a saúde individual. E nota positiva para aqueles que valorizam a essência, a origem, a singularidade proporcionada pela Natureza, se for protegida pelo Homem.

O esdrúxulo que enjoa
Alguns produtores têm sido pródigos no investimento em marketing e na criação de marcas bombásticas. A utilização de cores berrantes, de figuras estranhas, de garrafas que parecem candeeiros e de designações pomposas é um subterfúgio para a falta de identidade dos seus vinhos. O Marketing é a adaptação ao consumidor, sim. Mas o consumidor preza a identidade, a autenticidade, a originalidade com sentido. Uma descoberta que não introduz nada de útil, não deve ter palco. O Marketing verdadeiro não inventa nem interpreta; faz chegar os bons vinhos, sem os adulterar: com as suas qualidades intrínsecas e com uma comunicação simples, sem barroquismos excessivos. Uma marca pode ser “artística”. Mas só dá nas vistas de forma positiva se tiver um sentido lógico. Nota positiva para os “clássicos”, que privilegiam a Natureza; e nota negativa para quem entende que cada marca de vinho deve ser introduzida no mercado com “neons a piscar”: sejam estes histórias do fantástico ou pinceladas sem relação com o produto.
Em modo de conclusão, o sector parece ter suficientes artistas originais, que vale a pena estudar e que, num ou noutro caso, podem mesmo fazer História. Mas alguns dos vinhos produzidos hoje têm apenas a arte de ser resultado do seu enquadramento histórico actual: sem rasgo, sem diferenciação, sem proporcionar a capacidade de nos fazer parar para os observar com mais atenção.

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