Os filhos não devem morrer antes dos pais…
Pretendo com este artigo homenagear os pais que perderam um filho.
Em julho de 2018, foi criada a Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos (EIHCPP), do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), da qual faço parte como psicóloga.
Para a OMS (2002), os Cuidados Paliativos correspondem a uma abordagem de intervenção que permite melhorar a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias que
enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento pela identificação e tratamento precoce da dor, assim como outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. Os Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) são cuidados holísticos e proativos para todas as crianças, adolescentes e suas famílias, com doença crónica complexa, limitante ou ameaçadora da vida.
As doenças pediátricas com necessidade de cuidados paliativos podem dividir-se em 4 grupos diferentes:
Grupo I – Doenças que são curáveis, mas podem causar morte. Ex.: cancro, doenças agudas ou acidentes em cuidados intensivos, prematuridade extrema.
Grupo II – Doenças que causam uma morte precoce (antes da idade adulta) mas podem ter sobrevivências longas. Ex.: fibrose quística, falência respiratória ou renal, doenças neuromusculares.
Grupo III – Doenças de agravamento progressivo, sem cura possível. Ex.: doenças metabólicas, cromossomopatias.
Grupo IV – Doenças irreversíveis não progressivas, com muitos agravamentos e com probabilidade de morte súbita. Ex.: paralisia cerebral grave, lesões graves acidentais do sistema nervoso central ou da medula, malformações cerebrais
De todos os grupos referidos, apenas no grupo I, a criança pode ficar curada, deixando por isso de necessitar de cuidados paliativos pediátricos.
Quando fui convidada para fazer parte da Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos,
senti um misto de emoções. As minhas maiores dúvidas prendiam-se com as minhas competências profissionais e pessoais. Nesse sentido, o primeiro passo foi receber formação, especificamente, na área dos Cuidados Paliativos. Esta formação tem de ser contínua, de modo a aumentar a eficácia das intervenções.
Relativamente às competências pessoais, confiei na minha experiência de mais de 20 anos no Serviço de Pediatria, do Hospital São Francisco Xavier.
A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) divide as funções e as tarefas do psicólogo, nas Equipas de Cuidados Paliativos, em três áreas:
- Intervenção e acompanhamento do doente e da família, no âmbito da equipa dos Cuidados Paliativos;
- Intervenção e acompanhamento no luto, pois, tal como está definido, a intervenção da equipa dos Cuidados Paliativos não termina com a morte do doente;
- Intervenção e acompanhamento dos elementos das Cuidados Paliativos e dos restantes profissionais de saúde que estiveram a prestar cuidados ao doente.
O luto deve ser compreendido como um processo que integra um conjunto de reações emocionais, físicas, comportamentais, sociais e espirituais que surgem como resposta a uma perda, que poderá ser real (como a perda de uma pessoa) ou simbólica (como a perda de um ideal/expectativa/potencialidade).
Vários têm sido os autores que se têm dedicado a elaborar teorias explicativas deste processo.
O modelo, mais comumente utilizado, conceptualiza o processo de luto em 5 estádios: negação, revolta ou raiva, negociação, depressão e aceitação.
O processo de luto é individual, multidimensional, ativo e determinado por inúmeros fatores de vida e tem início desde o diagnóstico / reconhecimento da situação clínica.
Nos Cuidados Paliativos Pediátricos é fundamental que o processo de luto se baseie nos seguintes princípios:
• Considerar a criança – família como unidade única de cuidados;
• Estabelecer uma relação de ajuda com a criança-família;
• Considerar todos os elementos da família alargada;
• Promover a construção de memórias positivas;
• Respeitar as práticas culturais, étnicas e religiosas.
A partir de fevereiro do presente ano, passei a exercer funções no Serviço de Cardiologia Pediátrico, do Hospital de Santa Cruz.
Em julho, conheci o José (nome fictício), um menino de 14 anos.
O José era um jovem que residia no Alentejo, com a mãe e o padrasto. A mãe estava grávida e o irmão nasceu quando o José já estava internado.
Até abril, era um jovem que frequentava a escola, jogava à bola – um filho exemplar, dizia a mãe.
A partir dessa altura, a sua saúde começou a degradar-se e em julho foi-lhe diagnosticado uma Cardiopatia Dilatada de etiologia a esclarecer.
O José era um jovem calmo que fazia poucas perguntas e que anuía positivamente às explicações que lhe transmitiam sobre a sua doença.
A mãe, por ter um filho recém-nascido, não conseguia visitar o José como gostaria.
O José passava muito tempo sozinho, sem nunca se queixar, mesmo quando tinha dores.
As minhas visitas tinham como objetivo averiguar o seu estado emocional e otimizar os seus próprios recursos.
Estes momentos passaram também a ser momentos lúdicos, jogámos ao Uno e abordávamos assuntos sobre os seus amigos e família. Ficou um jogo por terminar.
A saúde do José piorou muito rapidamente.
É de extrema importância respeitar as crenças religiosas das famílias.
Estava a organizar-se a visita dos amigos mais próximos, o que não viria a acontecer.
Juntamente com a Assistente Social do Serviço, arranjámos quem ficasse com o irmão mais novo, de modo a que a mãe pudesse ficar durante a tarde no hospital.
Com o agravamento do estado de saúde do José, em conformidade com toda a equipa médica, coube-me a mim começar a falar da morte à mãe e aos familiares mais próximos. É um processo muito doloroso e difícil. Há uma zanga latente, uma tristeza imensa.
Os dias vão passando, com recuos e avanços de um fim que se torna cada vez mais evidente.
O José faleceu em setembro.
A Equipa ficou enlutada. Muitos abraços sentidos foram dados. Um pedaço de nós morreu também.
Despedi-me do José, numa tarde quente, no Alentejo. Os amigos estavam inconsoláveis.
O apoio à família não termina quando a criança morre. Cabe à Equipa dos Paliativos disponibilizar recursos, com vista a que a família consiga aceitar a sua perda.
Maria caldeira de sousa
3 anos agoTenho muito orgulho em ti.
Alexandra
3 anos agoSimplesmente sem palavras, mas com um orgulho gigante por todo o trabalho desenvolvido. Nunca é fácil, mas marcar a diferença é tão importante. Grata! 🙏
Marta de Brito Ribeiro
3 anos agoParabéns.
Gostei muito.
Obrigada pela partilha.