Patrícia Garrocho

A construção da memória coletiva pressupõe a inclusão e a integridade moral. Os angolanos são confrontados com um dos maiores traumas sociais conhecido como o 27 de Maio e uma das suas consequências foi o desaparecimento físico de cidadãos. Tal como a guerra, esta tragédia provocou danos diretos às famílias sendo incontornável escrever a história social do país se estes órfãos não expressarem os sentimentos que norteiam a sua orfandade.

© História Social de Angola

Alguns dos nossos depoentes têm contornado esta questão, mas sem esquecer este facto marcante na sua vida. No verão de 2022, a primeira angolana residente na diáspora londrina a encomendar o livro em diálogo com a HSA disse “Vocês deveriam incluir memórias dos órfãos do 27 de Maio residentes em Angola e na diáspora porque a última vez que estive em Angola conheci uma angolana cuja trajetória de vida se cruza com a minha e os sentimentos de esquecimento, de silenciamento deste segmento da população, da exclusão da memória coletiva e outras questões sociais foram compartilhados, apresentando semelhanças”.
Excluir esta franja de “jovens da geração que viu Angola a nascer” não seria academicamente credível e porque outras purgas e expiações sociais nos demonstram a necessidade de abordar as componentes menos positivas enquanto forma de preservação e de construção da cultura de paz. Aliás 47 anos depois, o Governo de Angola na 125ª Sessão do Comité para os Direitos Humanos das Nações Unidas desencadeou um processo abrangente a outros casos de direitos humanos ocorridos durante o período de guerra civil que de acordo com a sua condução poderá se assemelhar ao de outro país da SADC, a Comissão da Verdade da África do Sul.
A HSA agradece o interesse da Patrícia Garrocho em partilhar suas memórias com as atuais gerações visando como sempre o conhecimento e o estudo da história social de Angola na versão de quem a viveu, pois o 27 de Maio para além de ser narrado por vários protagonistas, tem sido objeto de teses na CPLP, sobretudo pela academia brasileira e esta é mais uma razão para inclusão destas memórias. Felizmente a reposição da memória está em curso, este depoimento traz-nos a dimensão social, esta filha de Angola foi “arrancada” do seu país e pretende regressar e colaborar na melhoria da condição de vida dos recém nascidos e das suas mães. Alguns angolanos possuem forte capacidade de perdoar e de reintegração social, esperemos que este depoimento contribua para o reforço da cultura de paz a nível nacional.
Não pretendendo tornar este depoimento “coletivo” pelo facto da entrevistadora ter conhecido os pais da depoente, surge aqui como co-depoente com o objetivo de contextualizar ausências de memória (a depoente não tem memórias antes dos cinco anos). Também, se incluiu extratos de uma conversa em torno da declaração do Governo de Angola. Afinal, os mais velhos devem se preparar para novos questionamentos destes órfãos conforme a tradição, se previa o “levantar de poeiras”. Finalmente, porque a prática da entrevista muitas vezes coloca o entrevistador no papel do entrevistado, o que acontece neste depoimento, vários profissionais o omitem. Neste caso a HSA se permitiu incluir de acordo as boas práticas.

© História Social de Angola

Chamo-me Patrícia Garrocho Cardoso, tenho 49 anos, nasci em Luanda nas Ingombotas


“É quase uma geração perdida, porque não somos de lá, nem somos de cá”, somos quase uma geração perdida, viemos para Portugal com um saco às costas, ninguém fala destes angolanos. As famílias de indivíduos mortos no 27 de Maio residentes em Luanda estão a dizer a mesma coisa. O trauma de quem ficou viúva e órfã, dou o exemplo da minha mãe, a maneira como o comportamento dela na sequência do ocorrido e provavelmente de outras mães afetam a nossa geração porque da última vez que estive em Angola encontrei uma rapariga da minha idade que o pai desapareceu na mesma circunstância do nosso pai “só quando nós falamos uns com os outros, entendemos a nossa condição”. A outra órfã que conheci em Angola teve um percurso diferente uma vez que não saiu de Angola e por isso sempre esteve no meio da família e da sua cultura. O nosso entendimento em que não foi preciso palavras “foi no aperto forte de mãos e abraço com lágrimas, olhos nos olhos, quando falamos sobre as mães viúvas e como isso nos afetou…”. Eu só a conheci naquele dia, mas quando começamos a falar foi como se nos conhecêssemos há anos, talvez devido a experiência comum, quem sabe.

Faz várias referências às consequências indiretas ao estado de saúde e às crises da sua mãe. Como isto afetou a sua família?

Exatamente, porque toda vida vi a minha mãe como a viúva de vinte e três anos, a contornar as crises de coração partido recorrendo aos antidepressivos para tratar as depressões profundas a ponto de ir parar a reabilitação várias vezes, com outras sequelas na saúde mental derivadas pelo estado constante de revolta e injustiça.
Em relação ao meu irmão, ele não fala sobre o assunto, indivíduo tranquilo e alegre, ele diz-me “não vale a pena sofrer, porquê que queres saber disto, já aconteceu!”, ele conseguiu crescer e reagir a orfandade de forma diferente.
As pessoas falam de quem morreu no 27 de Maio e nós, os órfãos? Somos a geração sofrida, o trauma de te veres crescer e constatar que o teu pai, a tua mãe nunca foram pessoas (emoção). Não somos pessoas comuns, eu posso dizer que os problemas de saúde que a minha mãe teve foram consequências deste facto, é uma bola de neve e afeta as pessoas durante a vida toda. Falando com outros descendentes podemos explicar como lidamos com a situação, com o estigma e com os danos morais.

Faz parte de uma geração de órfãos esquecidos

As pessoas subestimam a falta de família e da comunidade na vida delas e por isso existem tantos problemas mentais, atualmente há tantos suicídios e solidão. Porque por exemplo “ vives aqui na Inglaterra, na grande cidade, mas vives isolada… continua isolada” por estares na cultura inglesa ou portuguesa. A sociedade mudou substancialmente num curto espaço de tempo e isso está a afetar a forma como vivemos, saíres da tua cultura africana que na altura ainda era orientada para a família e a comunidade e de repente te apercebes estar num sítio onde vives a vinte anos e nem sequer sabes quem são os teus vizinhos, eu acho que isso desestabiliza. A maioria das pessoas pensa que por residirmos na Europa, julgam “eles estão bem, aquilo é tudo o que é bom” mas, nós não fazemos parte de nada, “nós não temos nada”, ter bens materiais não é tudo na vida, há muita coisa que nos falta, sobretudo a consequência de não termos laços nenhuns com a terra.
Eu não sigo muito a história do 27 de Maio, mas por vezes chegam notícias das redes sociais e dos chamados “revús”. Mesmo as pessoas que ficaram em Luanda que percurso de vida é que elas levaram? Mas, enviam-me livros nacionais e internacionais e os que ficaram o que é que se passa com eles, onde é que eles andam? São as inquietações e perguntas que ocorrem no meu pensamento.

Leia o depoimento completo

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