Pequena História das Línguas

Todas as línguas têm uma gramática — e esta gramática faz-se de elementos que existem numas línguas e não noutras e podem funcionar de maneira diferente em cada uma delas. A existência de artigos, os tempos dos verbos ou a falta deles, o sistema de pronomes, as construções proibidas, as palavras consideradas sagradas ou proibidas, a maneira como os verbos se conjugam para criar tempos compostos, a ordem típica das palavras na frase, os géneros dos nomes, a existência de um, vários ou nenhum plural, a maneira de expressar carinho e um grande et caetera – tudo isto pode mudar e muda de língua para língua. Não é só o vocabulário – não, a ideia um pouco ingénua de que para saber uma língua é preciso apenas decorar palavras é fácil de desmontar depois de alguns minutos a tentar aprender outra língua.
A nossa língua é descendente em linha directa da língua de algum caçador antigo. Muitas das características do português decorrerão ainda das características dessa língua — por exemplo, termos a tendência para pôr o verbo a seguir ao sujeito (uma tendência muitas vezes contrariada, mas ainda assim uma tendência) pode muito bem ser resultado da maneira como uma tribo particular, há muitos milhares de anos, construía as suas frases, ao contrário do que acontecia na tribo mais próxima, que punha os verbos sempre no início das frases. Esse traço gramatical aguentou-se. Outros mudaram. A nossa gramática, a nossa língua, chega-nos da mistura daquilo que se mantém ao longo dos séculos e da acumulação de pequenas mudanças, graduais, ao longo da História — um processo ininterrupto de transmissão e mudança, que chegou até nós desde esses tempos em que os seres humanos andavam pelo mundo em tribos, a caçar, sem poiso fixo.
Digo ainda isto: as línguas das tribos divergiam, mas nunca estiveram isoladas. Sempre houve contactos entre pessoas de várias línguas. Sempre houve gente a aprender várias línguas. Estes contactos levam a interferências, mortes de línguas, misturas, complicações. Esses milhares de anos antes da escrita representam uma História de conquistas, vitórias e derrotas que eram transmitidas de geração em geração, pelas línguas que já não existem, histórias que hoje já ninguém pode reconstruir, mas cujo ritmo ainda se nota nas nossas próprias histórias, medos e paixões.
As línguas assentam arraiais
A certa altura, deixámos de ser nómadas. Com a invenção da agricultura, alguns grupos de seres humanos começaram a viver num mesmo local ao longo de toda a vida. Nunca deixaram, claro está, de falar – mas a língua começou a estar ligada a determinado território.
O território de cada língua podia confinar com outro, colonizado originalmente por outra tribo, onde a língua podia ser tão diferente que encontramos aí uma clara fronteira linguística. Se virmos bem, esse conceito de fronteira não fazia sentido entre tribos.
Começam então outras histórias: conquistas, invasões, línguas que são abandonadas perante a força da língua dos invasores, línguas antigas que continuam a ser faladas em casa, mas esquecidas na praça, entre muitas outras voltas e reviravoltas.
Mesmo no território onde os falantes duma língua se estabeleceram, a distância cria diferenças. Os habitantes de um povoado percebem bem os habitantes da aldeia vizinha, que percebem bem os habitantes da aldeia seguinte – e por aí fora. Mas se juntássemos os habitantes de duas aldeias distantes, talvez tivessem muita dificuldade em compreender-se. Nestes casos, não é fácil saber onde começa uma língua e começa outra. Estamos perante aquilo que se chama actualmente um continuum dialectal. Não há fronteiras marcadas, mas há uma grande diversidade no território.
Pois bem. Neste território de línguas que ora mudam abruptamente ora vão divergindo subtilmente de terra para terra, temos pontos nevrálgicos: as cidades, centro de reinos, impérios e poderes vários. Esses poderes dão um prestígio superior à maneira de falar típica do local onde se instalam — o que também podemos dizer em relação à classe social dominante, seja ela qual for. Afinal, a variação linguística não é — nem nunca foi — uma questão meramente geográfica.
Há formas de falar que ganham um prestígio imenso — e começam a expandir-se, apagando formas de falar de outros locais ou regiões — e isto acontece tanto a um traço gramatical, a uma palavra, como a uma língua inteira. No fundo, a linguagem humana está sujeita a forças centrífugas — as línguas estão sempre a mudar, estão sempre a surgir palavras novas, ninguém fala precisamente a língua dos pais nem dos filhos, há uma necessidade inerente de dizer coisas novas, de novas maneiras — e a forças centrípetas — há sempre formas consideradas de prestígio que exercem a sua força de atracção. Há um ponto importante: estes centros de poder atraem muitas pessoas, de muitos locais. Assim, o seu dialecto particular tende a incorporar características de muitos locais. A forma de prestígio atrai outras formas, tanto no sentido de lhes roubar elementos, como de apagar aqueles que não são «escolhidos» para fazerem parte da língua de prestígio — e agora já uso a palavra «língua» precisamente porque é o termo que foi sendo dado aos dialectos de prestígio, assumindo depois um território que inclui outros dialectos. Temos ainda a considerar uma das grandes invenções da Humanidade: a escrita. Sabemos que foi inventada em vários locais. Um dos primeiros foi a antiga Suméria, onde um sistema de registo contabilístico evoluiu para um sistema de registo da língua. Já a nossa escrita em particular aparece numa sucessão que remonta — pelo menos — ao Antigo Egipto. Se a escrita dos egípcios tem ou não relação com a língua dos Sumérios é um ponto controverso nesta história. Seja como for, a escrita baseia-se sempre no dialecto de prestígio de determinado território, falado numa ou várias cidades. Ficamos assim com um território com muitas diferenças e alguns pontos em que a forma de falar tem um prestígio imenso, plasmado no seu uso na escrita. Este uso começa a ser descrito e modelado em obras que tinham — e têm — o objectivo de regular o uso da língua: as gramáticas, os dicionários, os livros de estilo e listas de «erros comuns». Entramos no território da norma da língua, que pode ser encarada de forma mais aberta ou dinâmica ou mais fechada e restrita. Pois bem: num mundo em que as línguas estão, muitas delas, ligadas a um território e têm uma norma escrita, todas continuam a mudar, com mais ou menos tropeções. E, como há tantos milénios, continuamos a usá-las para contar histórias, avisar dos perigos em redor, dizer mal do vizinho, ensinar e aprender, explicar a criação do mundo, namorar em sussurros, mentir descaradamente, contar anedotas à volta da mesa…
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico




