Doñana
à beira de um novo desastre
Doñana, uma das maiores regiões húmidas da Europa, localiza-se no sul da Espanha e é uma região conhecida pela sua biodiversidade e notável importância ecológica. Todavia, esta região, está à beira de um novo desastre ecológico. O primeiro aconteceu a 25 de Abril de 1998, quando uma barragem de contenção da mina de Los Frailes cedeu e libertou entre 4 a 5 milhões de metros cúbicos de rejeitos ácidos, com níveis perigosos de metais pesados, directamente para os rios Agrio e Guadiamar. O material contaminante percorreu cerca de 40 quilómetros até ser retido numa operação de limpeza que se prolongou por três longos anos e custou cerca de 240 milhões de euros.
Se o primeiro desastre resultou em elevados níveis de contaminação da região envolvente provocada pela exploração mineira, o segundo, tem-se revelado uma tragédia anunciada a curto prazo e deve-se à produção intensiva de morangos e outros frutos vermelhos que, desde finais dos anos 90, estão a deixar a região sem água e têm provocado fortes impactes na biodiversidade local. São mais de 100 km² de estufas ao redor do Parque Nacional de Doñana.
Como é do conhecimento empírico, a plantação intensiva de morangos requer uma quantidade substancial de água para sustentar o crescimento saudável das plantas, logo, tem sido exercida uma forte pressão sobre os aquíferos subterrâneos e as escassas fontes de água disponíveis à superfície.
Por outro lado, a plantação de morangos em Doñana também está associada ao uso intensivo de fertilizantes e pesticidas, que podem ter efeitos negativos na qualidade da água, contaminando as águas superficiais e subterrâneas.
A região de Doñana é um importante habitat para uma ampla variedade de espécies, incluindo cavalos selvagens, águias-imperiais, aves migratórias, linces e outros mamíferos, répteis e anfíbios. Por conseguinte, a falta de água compromete esses ecossistemas vitais para muitas espécies que deles dependem para se alimentarem, reproduzirem e descansarem durante as migrações. A diminuição da disponibilidade de água afecta a qualidade e a disponibilidade dos recursos alimentares necessários, prejudicando a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dessas mesmas espécies.
A situação apresenta-se catastrófica. A antiga lagoa rasa que alimentava flamingos com caranguejos, caracóis e larvas de insectos, deu agora lugar a uma estepe em tons castanho-amarelados, rodeada de pinheiros. Outras lagoas da região seguem o mesmo destino. Cerca de 60% delas já secaram. A diminuição dos lençóis freáticos transformou-as em áridos desertos de lama seca. Consequentemente, muitas espécies animais que tinham como refúgio essas lagoas, desapareceram.
Devido à pressão exercida pelas instâncias internacionais e por organizações ecologistas, muitos consumidores já se aperceberam desta situação e os boicotes ao consumo dos morangos de Huelva já começaram. Por outro lado, aqueles mais sensíveis à defesa dos direitos humanos não aceitam a utilização de imigrantes, alguns deles ilegais e com salários e condições de trabalho miseráveis.
Por outro prisma, as plantações de morangos de Doñana têm gerado uma verdadeira guerra pela água. Há centenas de agricultores a bombearem água ilegalmente dos lenções freáticos. A nível político, a tendência do governo regional vai no sentido de legalizar as captações de água ilegais, em vez de actuar na redução do seu consumo e no combate a essas práticas ilegais. Importa dizer que estas plantações abastecem um grande número de supermercados em vários países da Europa e são uma grande fonte de receita para os produtores locais. A par do turismo, o negócio dos frutos vermelhos, é um dos sectores económicos mais importantes da província de Huelva, no Sul de Espanha.
Devido à inacção local, a União Europeia e outras instâncias internacionais, têm exercido forte pressão sobre a Espanha para que tenha controlo sobre a situação. O país foi condenado pelo Tribunal Europeu de Justiça devido ao roubo de água e a falta de protecção sobre o Parque Nacional de Doñana. Centenas de poços ilegais foram cimentados pela fiscalização ambiental, todavia, outros foram abertos e a repressão parece não ter surtido efeito. Por outro lado, outra guerra da água parece estar a surgir em paralelo – entre os que possuem os direitos legais de exploração e os ilegais.
Na verdade, esta guerra desenfreada pelo consumo exagerado de água para irrigar os morangos está a fazer outra vítima – os próprios morangos. Estima-se uma forte quebra na colheita deste ano, devido à escassez de água provocada, não só pela sobreexploração, mas também pela falta de chuva. As consequências deste frenesim, além de ecológicas e económicas, serão também sociais.
Recuando algumas dezenas de anos, podemos verificar que, em Doñana sempre houve colheitas, mas diferentes das actuais e assentes em outros modelos de produção. As culturas tradicionais baseavam-se no sequeiro, com clara aposta nos cereais e na vinha. Algumas, a custo, ainda sobrevivem, mas a sua rentabilidade económica dista anos-luz dos números avançados pelo sector do morango, que factura valores exorbitantes, na ordem dos 300 milhões de euros por ano. E são estes valores que justificam uma espécie de carta-branca concedida ao sector que lhes permite uma expansão sem regras, captações de água ilegais (cerca de 1.000) e, em alguns casos, ocupação de terras do domínio público, florestas e leitos de rios. Motivos eleitoralistas estão por detrás da falta de intervenção das entidades públicas – a oposição a este modelo de negócio paga-se cara nas urnas de voto.
Concluindo, a problemática da plantação de morangos e de outros frutos vermelhos em Doñana está estritamente relacionada com a escassez de água na região e tem implicações significativas na biodiversidade local e é geradora de conflitos sociais. É fundamental adoptar medidas de gestão sustentável da água e buscar alternativas agrícolas que sejam menos prejudiciais a este frágil ecossistema, garantindo a conservação da biodiversidade e a protecção desse valioso património natural, onde se inclui o Parque Nacional de Doñana – Património Mundial da Unesco.
Doñana chegou a uma encruzilhada – ficou sem água para os patos, mas também não a tem para os morangos. Em Doñana, o futuro afigura-se incerto.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico