Virgínia Graça Amorim

A Enfermeira e as Fugas dos Universitários Nacionalistas dos PALOP`s

A estudante de enfermagem Maria Virgínia Graça Amorim Liahuca frequentou o Lar da Liga Evangélica de Lisboa a partir de 1957. Os dados encontrados no livro de registo da Residência da Liga de Acção Missionária e Educacional indicam ser uma estudante residente no interior de Portugal e depois em Lisboa, embora não residente a historiografia desta memória material – O Lar 122 – estará incompleta se não forem incluídas as atividades extracurriculares dos estudantes universitários angolanos, realizadas em camaradagem com outros estudantes protestantes e não protestantes.

© História Social de Angola

Este relacionamento é um veículo para novas gerações conhecerem a dinâmica das relações sociais e outras entre os vários estudantes provenientes das diversas missões protestantes de Angola e residentes em diversos bairros de Lisboa, maioritariamente associados à Casa dos Estudantes do Império, ao Movimento Estudantil Angolano (MEA) e a Operação Angola realizada em 1962 a qual esta estudante, não interessada em política, foi uma das cem protagonistas.

A entrevistadora Judite Luvumba inicia a conversa apresentando o propósito da HSA “antes da Plataforma História Social de Angola (HSA) várias pessoas convidaram-me a dar testemunhos para estudos e livros e sempre recusei, mas desta vez alguém inteligentíssimo falou-me de um trabalho interessante de uma plataforma online sobre de história social de Angola apresentada na primeira pessoa, life history contada na primeira pessoa. Ela editou um livro, referindo-se à fundadora e neste processo verificou a quase inexistência de dados biográficos da história social contada por angolanos e depois há dois anos contou-me as intenções da plataforma”. Estamos a trabalhar já há dois anos e nesse trabalho falamos deste Lugar de Memória dos bolseiros missionários e um dia fala-me da existência de um livro onde os visitantes foram deixando assinaturas e eu noto o teu nome, e disse-lhe seres uma pessoa que pode ajudar e organizamos esta visita”.

Depoimento realizado na pizzaria, praia da Areia Branca, em Lourinhã, onde fomos atendidas por um angolano descendente de santomenses e de ovimbundos, naturais da província do Huambo que se consideram “retornados” e pergunta-nos se falamos umbundu, Virgínia diz-lhe “sou enfermeira, estudei aqui, vim para aqui aos doze anos, pago pelos meus pais, sou enfermeira obstetra e escolhi Lourinhã há 30 anos”, e ele diz ser filho de Avelina uma contemporânea de Virgínia, natural do Huambo. O jovem demonstra alegria por encontrar pessoas da terra, por persistir na procura dos seus familiares em Angola, e a mãe dizer-lhe sempre “diz sempre de onde vens” e como bons angolanos ligamos a Avelina para falar-lhe em umbundu. E dissemos-lhe “agora encontrarás a tua família” e nesta espontaneidade africana interagimos com o nosso conterrâneo.

Centrou o seu depoimento na Operação Angola, uma heroína desta operação também conhecida como a Fuga dos 100. Não se considera política, mas a companheira do político José João Liahuca e amiga de políticos e por isso torna público o traumático desaparecimento físico do seu esposo, não na perspetiva de história política ou dos partidos políticos angolanos, mas na perspetiva da história social dos primeiros estudantes universitários beneficiários de bolsas missionárias protestantes cuja juventude e história social é intrínseca a uma época da história das sociedades da África lusófona, o início da época denominada “nacionalismo angolano” que a nível organizacional levou a formação de três movimentos de libertação nacional em Angola cuja maior realização foi a libertação do império colonial português.

Finalmente, nunca é demais recordar que a história da sociedade angolana pós independência também deve tratar da inclusão da história social destes jovens cujo desempenho social foi predominantemente político, caso contrário criar-se-ia um hiato entre a história política e a história social deste país. Uma outra dimensão da história das sociedades na primeira pessoa é a relação social com cidadãos de outros países, por isso é incontornável a inclusão de depoentes não angolanos, como é o caso desta cidadã santomense cujo desempenho na sociedade de refugiados angolanos nos Congos e mais tarde em Angola, sobretudo no sector da saúde contribui para a saúde e bem estar.

© História Social de Angola

Introdução
Eu conheci o Liahuca em 1955, apresentado por Pedro Sobrinho, irmão do Paulo Silvio de Almeida, Desidério Verissimo da Costa e ainda um outro sobrinho, e ele diz-me “Virginia temos um colega, um amigo…”.

Estudantes São Tomenses em Lisboa (1949-1961)
Eu já estava em Lisboa, vim em 1949, tinha doze anos, os meus pais mandaram-nos estudar para aqui, eu e a minha irmã gémea Lourdes. Apanhamos o barco, passamos mal, enjoamos, mas cuidaram muito bem conta de nós, a enfermeira e o médico, deram-nos uns comprimidos para enjoos e depois era só brincadeira até chegarmos a Lisboa, em Setembro de 1949, fizemos dez dia de São Tomé a Lisboa. Desembarcamos, tínhamos família à nossa espera, a família materna, meu nome é Maria Virgínia da Graça de Amorim. O meu falecido tio, Dr. Dias da Graça era irmão da minha falecida mãe Maria Helena, estava casado com uma cabo verdiana, a Dona Áurea, a que chamávamos tia-mana, residimos na Estrela, Rua Dr. Teófilo Braga n.º 25, com esta família.

Lá vão as belezas de doze aninhos, cheias de frio, em Setembro, vestidinhos todos bonitos, feitos pela mamã, iguais aos casaquinhos e a tia trouxe umas mantas, porque já sabia como iríamos chegar a Lisboa, desembarcamos e lá fomos para casa.

Estudantes africanas do Colégio Nossa Senhora da Bonança (1949-1953)
O colégio era em Vila Nova de Gaia, Colégio Nossa Senhora da Bonança, para onde os santomenses normalmente enviavam as filhas para prosseguirem os seus estudos. Estávamos todas lá, a Joana, a Marina Santiago e a Alice Menezes, todas estudavam ali e então o papá pôs-nos todas ali, como eram mais velhas assim tomavam conta de nós e as freiras. Até hoje existe, no meu tempo, em 1949 era internato e externato e nas férias íamos para a casa da tia-mana. Fizemos aqui a admissão ao Liceu e estudamos até ao terceiro ano.

Na passagem do 4º ano para o 5º ano como tínhamos exames fomos para o colégio em Parede, a tia-mana disse que como já estávamos crescidas podíamos ficar mais próximos. No entretanto, passamos por Santarém, Bafureira. Eu tive um episódio no colégio porque a madre bateu-me com a régua e eu peguei na régua e bati na madre, revoltei-me, adolescência! “Não tens nada de me bater, quem me bate é o meu pai e o meu pai não está cá e nem a minha mãe; oh pai tira-nos daqui porque aqui gostam muito de bater”. Fomos para o colégio das Baforeiras, eram mais liberais, madres franciscanas, não havia aquelas regras rígidas, indumentárias, etc. Estivemos neste colégio entre o 3º e o 4º ano.

© História Social de Angola

A seguir, fomos para o colégio em Parede onde fizemos o 4º e o 5º ano, fizemos no liceu de Oeiras. No entretanto, quando chega a altura das provas, como éramos gémeas “éramos cara chapada”, a minha irmã faz primeiro por se chamar Lourdes e eu a última por me chamar Virgínia, e o professor começa:
– Tu quem és?
– Eu sou a Virgínia
– E a outra?
– A Lourdes, já fez exames
– mas, vocês são muito parecidas
– Somos gémeas!
Ele desata-se a rir e então:
– Isto é uma brincadeira!
– Pois é! Somos parecidas, o senhor professor tem razão
E depois começa a prova de matemática que se inicia com geometria e diz-me:
– Olha ali para aquele cantinho
– Aquele cantinho está cheio de teias de aranhas
Ele desata-se a rir, não faz a pergunta, não faz nada, e foi para o quadro, todos desatam-se a rir, ganhei (sorrisos)
– Para já é um retângulo, mas está cheio de teias de aranhas.
Era verdade!

Passei e um certo dia pergunto a mana Lourdes:
– Oh mana Lourdes o papá é que está a pagar os nossos estudos, é um sacrifício, já viste que aqui é tudo caro, embora em escudos, mas é muito caro! Eu pensei fazer um curso médio e se eu quiser continuar a estudar continuo a minha custa, já não vou por o papá a pagar”
– Eu concordo, olha eu quero ser professora
– Eu quero ser enfermeira.


Escola de Enfermagem Rockfeller
É assim que aparece em 1955 o meu nome na Escola de Enfermagem Rockefeller, que hoje é a Escola Nacional de Saúde, Instituto de Oncologia, faço o 1º ano e depois falo com a diretora:
– Olhe, eu tenho ideias de ir para África, quando acabar o curso eu vou para São Tomé, aqui é só cancro, oncologia, mas na minha terra há outras doenças, há obstetrícia, e há pediatria, há outras necessidades.
– Muito bem.

Vamos estudar, entretanto as aulas começaram em Setembro e a Casa dos Estudantes do Império (CEI) tinha sempre reuniões, atividades e nós frequentamos e é por aí que eu conheço o Sobrinho e os outros angolanos que depois vêm apresentar o José João Liahuca, em Dezembro havia uma festa de natal ou do fim do ano.

Qual é a diferença entre a CEI e a Hospedaria da Liga Evangélica?
A CEI é a associação que ficava no Arco do Cego, onde todos os estudantes das antigas colónias se encontravam, na altura a Casa das Colónias, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Moçambique e Timorenses que na altura vinham poucos, eram mais os de Goa, Damão e Dio. Não era internato, realizavam-se conferências, festas, jantares, almoços, carnavais, danças e outras atividades. O Lar Alameda da Linha das Torres ficava no Lumiar e recebia os estudantes que vinham das Missões. Então, todos os que tinham a bolsa missionária, como o Calvino, Liahuca, o Silvio, o Sobrinho e o Desidério, o Daniel Chipenda também esteve, mas depois foi para Coimbra, mas continuou a ir ao Lar ter com eles. Não conheci o José Chipenda, conheci também o Teodoro Chitunda e muitos mais.



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