Henrique Levy
Poeta, romancista e ensaísta é portador de uma identidade com várias pertenças.
Cidadão português, nascido em Lisboa, com nacionalidade caboverdiana. Viveu em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Reside, por opção, nos Açores, na ilha de São Miguel.É autor de oito romances, um deles galardoado com o Prémio Literário Natália Correia, e de oito livros de poesia.
Assinou vários ensaios e crónicas publicadas na imprensa e em revistas literárias.
Tem poemas e contos dispersos por diferentes revistas e antologias. É Coordenador da Nona Poesia, única editora açoriana dedicada exclusivamente à poesia.
“Eu não sei respirar sem escrever”. Quando descobriu a paixão pela escrita?
Desde cedo que me apercebi que a Humanidade, capacitada pelo mistério de comunicar através de palavras orais e escritas, pode usar essa poderosa ferramenta para operar o bem ou espalhar o mal. Aos oito anos, escrevi o que posso chamar «primeiros versos». A partir desse momento, fascinou-me a possibilidade de viajar para diferentes universos, através da escrita e da leitura. Por diversas razões, ao longo da vida, convivi com povos de diferentes culturas, surgindo, em mim, uma curiosidade imensa pela forma como esses povos produziam memória através da oratura ou da literatura. Apercebi-me da existência de virtudes e fraquezas em todas as comunidades humanas. Muitas delas, fora dos territórios primordiais, continuavam a manter hábitos e costumes com que se identificavam e davam significado às emoções transmitidas através da oratura, ou da literatura.
Escritor, professor, editor e investigador. Em qual destes papéis se sente mais realizado?
Existe nobreza em todas as profissões. A grandeza humana não se revela através do trabalho. Tal como toda a restante Natureza, também a Humanidade, nela integrada, foi chamada a variadíssimas funções. A organização da maior parte das sociedades humanas levou-nos a gastar grande parte da vida a trabalhar para enriquecer terceiros. Dito isto, penso que ser professor é a profissão que melhor contribui para a sobrevivência de uma língua e de uma cultura. Ao professor foi sempre atribuído um papel político, pois é ele é o veículo de um sistema de ensino que obriga o docente a pôr em prática um programa ideológico. Senti que ser professor era a minha mais importante missão, sempre que me foi possível fazer diferente, ou seja, não compactuar com ideologias que limitam a capacidade de pensamento de crianças e jovens. Infelizmente, tive pouco sucesso neste desiderato. Por essa razão, sinto mais realização pessoal, com a liberdade encontrada em qualquer atividade relacionada com a criação literária. A Literatura levou-me à compreensão e integração do outro, através do amor e da compaixão, sentimentos que parecem cada vez mais afastados da realidade humana.
No silêncio, a ouvir música, mais pela noite dentro, como é o seu processo criativo de escrita?
ou um escritor das madrugadas. Acordo muito antes da aurora se anunciar. Escrevo no silêncio da alvorada que dá lugar às manhãs. Ouço o cantar dos galos, o acordar do canto da passarada, o vento e a chuva nas janelas. Às 4 horas da manhã, o mundo faz um «reset». Realiza «redefinições». Congela erros. Mostra novas soluções… É o momento certo para fazer cópias de segurança para alojar a Memória.
Em 2022 venceu a segunda edição do Prémio Literário Natália Correia, com o romance ‘Vinte e Sete Cartas de Artemísia’. Os prémios atribuídos aos escritores são importantes? No seu caso teve alguma repercussão?
Esse Prémio foi-me atribuído pela Câmara Municipal de Ponta Delgada. Apesar do investimento no Prémio Literário que transporta o nome da poetisa açoriana Natália Correia, o município não sentiu interesse em divulgar o Prémio nem a obra premiada. Por essa razão, o facto de ter vencido este Prémio não teve qualquer repercussão na minha vida de escritor, não fora, ter sido distinguido por um conjunto de jurados especialistas, estudiosos e críticos de Literatura. Ver uma obra referenciada pelos maiores dos nossos pares, para além de ser um importante estímulo para continuar a escrever, é, também, um privilégio e uma intensa alegria.
Um estudo de 2022 revela que mais de 61% dos portugueses não leram um único livro no ano anterior. Para um escritor certamente que estes dados são motivo de tristeza e incerteza, mas o que acha que pode ser feito para inverter esta cultura da não leitura de livros?
Não me admiro com essas percentagens. A grande maioria dos portugueses, ao frequentar a escola, é chamada a conhecer autores de língua portuguesa e a manter contacto com a História da Literatura Portuguesa. Apesar disso, os programas escolares não permitem aos professores tempo para estimular o interesse pela leitura. Por assim ser, muitas vezes os jovens vêem-se apartados, para sempre, de hábitos de leitura. Alguns interessam-se por ler, mas por as famílias não possuírem capacidades económicas para comprar livros, que em Portugal são um bem só alcançado por algumas classes sociais, frequentam bibliotecas. Em muitas delas, por os governos não investirem na Cultura, não encontram obras recentes. Parece um paradoxo, mas há muitas bibliotecas que não têm fundos para adquirir livros. Quanto mais as ideologias de direita e extrema-direita avançam na Europa, cada vez é maior o desinvestimento na Cultura. Os Açores não são exceção.
Há uns anos Miguel Real considerou-o “um perfeito novelista Camiliano”, um neo-romântico. Continua a escrever com o coração?
Ao contrário de Camilo Castelo Branco, eu escrevo com o coração voltado para o respeito pelo feminino, para o universo onde as mulheres se movem tentando resistir a uma sociedade misógina e patriarcal. Por essa razão, não me identifico com Camilo, muito menos com Eça de Queirós. Reconheço a excelência da escrita destes dois grandes novelistas portugueses, mas a um escritor não cabe, exclusivamente, ter uma escrita inovadora. Deve sentir a necessidade de propor um novo olhar sobre o mundo. Denunciar injustiças sociais, alertar para a necessidade de abandonar certas realidade e abraçar outras que tragam progresso e novidade à organização das sociedades humanas. Escrever é essencialmente refletir sobre o mundo. Um romance que não nos leva à reflexão, ou em que o autor é incapaz de refletir criticamente sobre a realidade que o cerca, pode ser muito divulgado, vender um grande número de exemplares, mas está condenado a nem sequer constar numa nota de rodapé da História futura da Literatura. O mesmo acontece com a poesia. A Literatura propõe o contato com o transcendente, um voo. Grande parte dos autores não tem a capacidade de levantar os pés do chão, de abandonar o óbvio, de não temendo ascensões e epifanias, deixar-se levar por voos transformadores.
O que é o projeto Nona Poesia? Vê com futuro as editoras?
A editora N9na Poesia surgiu da necessidade de criar, nos Açores, uma editora que publicasse exclusivamente Poesia e Ensaios Poéticos. Apresentei, à Publiçor, a proposta de criação da editora N9na Poesia. Ernesto Rezende, a quem a Região será para sempre devedora, pelo seu empenho na divulgação da literatura produzida nos Açores, aceitou, de imediato, a criação desta editora. Assim, foi criada uma nova chancela que tem o objetivo de promover poesia cuja qualidade tem vindo a ser comprovada em cada título editado. Com dificuldade, as pequenas editoras sobrevivem às editoras, agentes do grande capital, que tomaram para si a edição e o comércio de livros, independentemente da qualidade das obras divulgadas. O que interessa às chamadas grandes editoras é o lucro obtido com a venda de livros. Essas editoras não estão vocacionadas para divulgar os autores pela sua qualidade literária, mas, antes, por saberem que, depois de bem manipulados, na comunicação social, os livros por elas editados serão um filão apetecível. Desta forma, surgem, no mercado editorial, autores que, apesar de venderem muitos livros, em nada contribuem para engrandecer a Literatura Portuguesa, acabando até por afastar futuros leitores. Felizmente, há um considerável número de editoras alternativas que com esforço resistem à mediocridade imposta.
Lançou recentemente um novo romance, O Drama de Afonso VII de Portugal. De que trata esta sua nova obra?
Este romance pretende ser uma homenagem ao 25 de abril de 1974.
Com ele quis demonstrar que há, e sempre houve, alternativas políticas para a construção da paz entre os povos. Que a guerra só serve para a Humanidade retroceder na sua evolução. Que todos nós estamos cercados pelo medo, pela culpa e pela solidão, delas nos libertando, unicamente, através de processos que nos levam à filosofia, à poesia, à teologia, à política etc.
Afonso VII de Portugal é um rei que não consta da História do nosso país. Ao fazê-lo surgir, nesta obra de ficção, pretendo demonstrar que a paz na Europa teria sido possível, se para isso tivesse havido vontade política e não o apelo do comércio de armamento, que leva à morte, todos os anos, milhões de inocentes. O Drama de Afonso VII de Portugal convoca-nos a refletir sobre as possibilidades e impossibilidades humanas e também, sobre a importância de implementar políticas de paz e cooperação.
Poesia ou prosa?
Ambas. Sempre que escrevo ficção, sou levado a escrever simultaneamente poesia.
É um dos artistas colaboradores da MiratecArts. Como é que esta entidade tem contribuído para a evolução da sua vida no setor artístico?
Participei, este ano, no Azores Fringe Festival, organizado pela MiratecArts. Fiquei verdadeiramente impressionado com a organização do Festival e com a diversidade e qualidade dos convidados. Além disso, é um Festival, que tal como o nome indica, é uma Festa. A festa das várias criações artísticas, do encontro de artistas populares com o seu público, a festa da divulgação da Arte e da Cultura da nossa Região, de Portugal e do Mundo.
O Azores Fringe Festival devia ser um exemplo para as organizações públicas que têm a responsabilidade de divulgar as Artes na nossa Região. Imagino que com um subsídio justo o Fringe podia tornar-se no Festival de referência incontestável.
Projetos para este ano?
Como sou um homem de Fé, os meus projetos futuros serão sempre o que Deus quiser e decorrerão conforme a inspiração do Divino Espírito Santo. Este ano, a N9na Poesia editará mais 4 títulos. Em novembro conto editar um livro de poesia. O resto, é como digo: fica nas mãos de Deus.
Uma mensagem para todos os artistas do mundo.
A todos os artistas compete, antes de mais, lutar pela liberdade de expressão artística e nunca esquecer que em qualquer cultura, independentemente, das formas como se atinge o conhecimento, o ato de criar estrutura e organiza o mundo, respondendo aos desafios que dele emanam, num constante processo de transformação do homem e da realidade que o circunda.