Obra de Capa novembro

Anazanga, os filhos da ilha

Um conto de Luanda sobre a sorte de 3 peixes siameses

Numa noite chuvosa, o pescador Ngabaxi e seu filho primogénito Muxima, desistiram de se fazer ao mar.

Ali na ilha de Luanda onde viviam, temeram que, para além da chuva torrencial, as calemas, ondas grandes agitadas, poderiam a qualquer momento engolir ao seu ndongo, ou chata, a canoa baptizada de Anazanga, os filhos da ilha de Luanda, assim registada na Capitania do Porto pela avó de Muxima, o dikota Leão Trungungueiro.

Naquele ano de 1945, ano em que se dizia ter terminado uma Grande Guerra Mundial, que arrasou muitas nações e dizimou muita gente lá nas bandas da velha Europa e na Ásia. Essa onda de destruição pareceu não ter afetado a costa angolana do Atlântico Sul, na costa angolana, na ilha de Luanda, sobretudo, estava autorizada, registada e legalizada a atividade da pesca artesanal.

“O peixe é a nossa vida. O peixe é a nossa comida”. Estas eram as palavras sábias que mestre Ngabaxi incutia na juventude e rematava exigindo o coro à sua claque: “Kiesse-Kiesse. Alegria- Alegria”.
Também se podia pescar ali com redes de malha fina nas poucas milhas ao seu redor da ilha do Mussulo, mesmo na Ilha do Cabo, incluindo a área circunvizinha do farol da Baía, onde à noite se refletiam as luzes da Marginal e dos prédios, especialmente do Banco de Angola, um edifício emblemático da cidade que já foi uma autêntica pérola do Oceano Atlântico.
O velho Ngabaxi sabia de muitas histórias por intermédio dos marinheiros, embarcadiços dos paquetes que atracavam periodicamente no Porto de Luanda vindos de várias metrópoles. Sabia de, por exemplo, notícias e histórias do ano de 1945, que gostava de partilhar até com pessoas que não conhecia bem.

Assim justificava o quão importante era a sua embarcação que tinha esse ano registado na sua matrícula. Uma herança do seu progenitor o dikota Leão Trungungueiro, um homem de mil ofícios no seu tempo: pescador, alfaiate, sapateiro, pedreiro, pintor de residências e tanta coisa, incluindo as atividades desportivas que praticava no Estádio dos Coqueiros. Na luta era bom na baçula e no Kafrique.

Mais tarde, o velho pescador Ngabaxi ouviu falar do Japão, da Tailândia, da Índia, da China e de Macau, na Asia. E disseminava as notícias para os filhos, amigos e vizinhos. Seu filho Muxima tinha que estar sempre por perto, a ver se seu pai não se repetia na tarefa de contar um conto sem acrescentar um novo ponto.
Ngabaxi dormiu cansado e sonhou: Era um sonho com o seu falecido pai , de quem sentia imensas saudades. Os peixes ficaram infetados de tal sorte que um dia o avô Leão Trungungueiro , na sua pescaria, ao içar a rede, teria encontrado três peixes muito lindos, vistosos e coloridos, mas quando verificou melhor e percebeu que eles eram inseparáveis, como um só corpo, alarmou-se . Será que ficaram afetados pelas bombas atómicas que foram lançadas no Japão no final da Segunda Guerra Mundial?

O velho Ngabaxi, seu nome de Baptismo Sebastião Miguel da Assumpção, revirou-se no seu leito enquanto sonhava e continuava a ver três peixes muito lindos. Vários tons de amarelos sobre o mar azul? Três peixes? Sim três peixes siameses. Assustado devolveu-os ao mar. Jurou nunca contar esse absurdo da natureza a ninguém. “ Acho que foi um pesadelo”.

Acordou sobressaltado e trémulo. Sentou-se. Pediu um copo de quiçângua à bessangana Fefa, sua mulher, que prontamente o atendeu. E mastigou cola e gengibre. Voltou a beber outro copo de quiçângua.
Foi dar uma volta descalço pela praia. O vento soprava ainda a ponto de mover as palmas dos coqueiros. O som das ondas no seu vai e vem. Amanheceu.

O mar continuava agitado, mas a chuva já tinha deixado as suas marcas habituais. As gaivotas e outras aves que habitam nas árvores mais altas da ilha de Luanda já ensaiavam os seus voos matinais de liberdade.
Observou seu filho Muxima e alguns amigos que substituíam na embarcação algumas madeiras desgastas pelo salitre e pelo sol escaldante. Depois pintavam-na de vermelho na proa. Todo o resto era de um amarelo luminoso, seguindo as orientações antigas do avô Leão Trungungueiro, fazia naquele dia 3 anos desde que partira para o além, num ritual que se repetia todos os anos pelo mês de Novembro. A velha canoa rejuvenescera. Brilhava. Repintaram de preto, uma tinta marítima mais densa a já lendária matrícula: 003- LD- 1945.

Porquê tanto amarelo, pai? Indagou Muxima. O velho Ngabaxi respondeu logo, sem vacilar: “Se naufragarmos, mais depressa se avistará a nossa canoa sobre o azul profundo do oceano. E não seremos confundidos por peixes siameses. Ou seja: o amarelo é o melhor contraste do azul”.
Muxima sorriu. Em seguida pôs-se a pensar nas palavras avisadas do seu progenitor. “O meu velho é um sábio”.- Comentou baixinho para os seus botões.

Glossário
Dikota, ou kota – Mais velho, ancião.
Kiesse – da língua Kimbundu falada em Angola, significa Alegria.
BAÇULA- Luta tradicional da ilha de Luanda que faz lembrar o judo.
Kafrique – Golpe sobre o pescoço e as mãos que neutraliza o adversário.



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