Grande Entrevista Manuel Heitor
Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
Manuel Heitor nasceu em Lisboa, em 1958.
É doutorado pelo Imperial College de Londres, na área de Engenharia Mecânica, tendo feito um pós-doutoramento na Universidade da Califórnia em San Diego, em 1986. Prosseguiu posteriormente uma carreira académica no Instituto Superior Técnico em Lisboa, onde começou por desenvolver a sua atividade de investigação na área de Mecânica de Fluídos e Combustão Experimental. Atualmente é Professor Catedrático no Instituto Superior Técnico (IST), Lisboa, onde dirige o “Centro de Estudos em Inovação, Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento, IN+” e coordena os programas de doutoramento do IST em “Engenharia e Políticas Públicas” e em 2Engenharia de Conceção e Sistemas Avançados de Manufatura”. Para além disso, é desde 2015 Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em Portugal e foi nesse âmbito que estivemos à conversa com ele para mais uma edição da Descendências Magazine.
A pandemia fez aumentar o risco de abandono escolar em Portugal. No entanto, como nota positiva, destaca-se o aumento de candidatos ao Ensino Superior em 2020 – foram 62 675, mais 11 mil do que em 2019. Este crescimento leva a crer que a pandemia não terá inibido as pretensões de prosseguimento de estudos dos alunos que concluíram o Secundário no primeiro ano da pandemia?
Pela primeira vez, devemo-nos orgulhar enquanto sociedade, que face a uma crise, primeiro pandémica e depois socioeconómica, tivemos um aumento, por dois anos consecutivos, do número de estudantes. Naturalmente, existem várias razões para este acontecimento, mas a questão crítica é manter esta posição. Certamente, a pandemia mostrou às pessoas que a ciência cria saúde, que ciência cria empregos e que vale pena investir nela. Mas mais do que isso, no caso português, esta tendência é também resultado de um esforço feito nos últimos anos de estimular um Ensino Superior de proximidade. Este crescimento não aconteceu por acaso, nem só devido à pandemia. O que se fez nos últimos anos foi sobretudo valorizar socialmente o Ensino Politécnico, através de formações curtas (cursos tecnológicos). Se em 2015 estes cursos tecnológicos eram oferecidos em menos de 40 localidades, hoje são oferecidos em cerca de 140 localidades, ou seja, um terço dos municípios portugueses têm hoje Ensino Superior. Atualmente, entram nestes cursos cerca de 10 mil novos estudantes todos os anos. Acredito que a pandemia despertou nas pessoas a necessidade de estudar e, ao mesmo tempo, o processo de transição digital e ecológica que vivemos mostrou que as sociedades, das quais evoluímos, são economias do conhecimento. Por outro lado, alargando, intensificando e diversificando o Ensino Superior conseguimos atrair mais pessoas e chegar onde estão. Acredito, sem dúvida, que esta diversificação do Ensino Superior foi, absolutamente, crítica nos últimos anos para conseguirmos alargar o número de estudante no Ensino Superior em Portugal.
Estudos revelam que o abandono escolar no Ensino Superior é mais elevado entre os alunos mais desfavorecidos. Os estudos alertam ainda para o facto de as famílias portuguesas fazerem um esforço financeiro acima da média europeia. O problema poderia ser minimizado com a atribuição de mais bolsas de estudo?
Não necessariamente, mas obviamente também é importante continuarmos o reforço da Ação Social Escolar. Hoje, já temos cerca de 90 mil bolseiros em Portugal, dentro de um universo de 400 mil estudantes, mas devemos continuar este trabalho. Há estudos que comprovam que há uma relação direta entre o sucesso escolar e as condições socioeconómicas, sempre foi assim no Ensino Básico, no Ensino Secundário e também no Ensino Superior. Por isso é que temos de ter cada vez mais pessoas com Ensino Superior e, cada vez mais, pessoas com bons empregos. Sabemos que em Portugal o nível salarial das pessoas com formação superior é bastante superior ao nível salarial das pessoas que não têm formação superior. Por outro lado, aquele que tem hoje o Ensino Superior, por norma, tem um salário que vai aumentando ao longo da vida, ao contrário do que não tem, cujo salário, por norma, se mantém constante ao logo de toda a vida profissional. Estes dois factos mostram-nos que para aumentar a riqueza da população é necessário estudar mais.
No ano passado, o Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior subiu o valor da bolsa mínima (ficou em 871 euros), alargou o universo de bolseiros e reforçou o complemento de alojamento para quem estava a estudar fora da sua residência. Será necessário fazer ainda mais?
Em 2015, aumentou-se o apoio em dois aspetos. Em 2015, tinham direito a bolsa jovens que tivessem um rendimento familiar per capita de cerca de 7.700€ por ano. Hoje é 9.000€, ou seja, alargamos o âmbito de atribuição de bolsas. Para além disso, aumentamos também o valor da bolsa, sobretudo, para os estudantes deslocados. O esforço que foi feito, e que tem hoje um volume por ano de cerca de 150 milhões de euros, é um esforço que valeu a pena e que deve continuar a aumentar. Por isso, o nosso objetivo é chegar aos 100 mil bolseiros de Ação Social Escolar. Para além disso, existem também outro tipo de bolsas que não são, necessariamente, para estudantes carenciados, como são exemplo as bolsas de mérito. No âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência foi dada a capacidade às Instituições de Ensino Superior de concederem bolsas de mérito, e parte do financiamento pode ser utilizado para atrair estudantes, sobretudo para as áreas de ciência e tecnologia e engenharia. Apesar disso, não há dúvida nenhuma que hoje é uma necessidade crítica continuar a reforçar o orçamento da Ação Social Escolar, direta e indireta. Não é só o valor da bolsa é também o apoio ao alojamento e é por isso que, no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência, foi lançado um programa para construir, nos próximos sete anos, cerca de 15 mil camas, exatamente porque sabemos que grande parte dos custos hoje suportados pelas famílias têm a ver com o alojamento dos estudantes universitários.
Este ano entraram no Ensino Superior em Portugal 664 emigrantes e seus familiares ao abrigo do contingente especial, um número que representa quase mais 60 por cento do que o registado no ano anterior, quando entraram 416 alunos. Quais os cursos mais procurados e quais os principais países de origem dos candidatos?
Diria que os cursos são genéricos e ainda bem que são. Cada vez mais o que é importante é que um jovem, aos 17/18 anos, vá estudar naquilo que verdadeiramente tem interesse, que adquira o gosto por estudar e vá evoluindo no seu percurso. Neste momento, não se vê nenhuma tendência específica e, quanto a mim, não se deve impor nenhuma tendência específica. Naturalmente que os jovens, há medida que adquirem a sua maturidade, vão desenvolvendo interesses e sendo atraídos por áreas com maior capacidade de emprego. Sabemos que há uma atração muito grande e salários melhores nas áreas das tecnologias de informação, ou das ciências da vida, e cada vez mais, na próxima década, haverá uma necessidade intrínseca de competências nas áreas da transição ecológica. Mas também sabemos que não podemos ser todos engenheiros. Para além disso, as empresas e empregadores que têm atividades de base tecnológica precisam de pessoas com diferentes competências e de equipas transversais. Diria que é bom ter um Ensino Superior com estudantes em cursos que vão desde as áreas das humanidades, às ciências sociais, às engenharias, às tecnologias, ou até às ciências culturais.
Hoje, temos sobretudo uma relação, particularmente, importante com os países onde há mais emigrantes. Naturalmente, dentro dos chamados lusodescendentes, a grande maioria dos estudantes que ingressaram no contingente especial são oriundos de França, Bélgica, Luxemburgo Suíça e Inglaterra. Para além disso, temos verificado uma adesão cada vez maior, por razões diferentes, de estudantes vindos do Brasil.
Apesar do aumento do número de candidatos emigrantes nos últimos dois anos, o Governo português pretende aumentar ainda mais essa fasquia. O objetivo é chegar ao fim de 2030 com seis em cada dez jovens a frequentar o Ensino Superior e que estes números sejam preenchidos também pelos emigrantes e seus familiares, bem como pelos lusodescendentes. Por onde passará a estratégia para motivar os lusodescendentes a aderir este contingente?
O aumento do número de estudantes lusodescendentes que ingressaram no último ano é bom, mas acho que não chega, ainda é pouco. Hoje, Portugal tem uma capacidade de Ensino Superior que poderia formar mais. Certamente que para muitas dessas famílias aprender e estudar em Portugal é bastante mais económico do que ingressar no Ensino Superior nos países de origem. Por outro lado, Portugal é um país seguro e tem sido uma forma de atrair, não apenas estudantes, mas também outras pessoas, nomeadamente franceses, que têm vindo viver Portugal. Para além disso, destaca-se ainda a capacidade de Portugal de atrair os chamados “nómadas digitais”, pessoas que durante a pandemia procuram trabalhar de forma remota. Isto mostra que Portugal tem uma capacidade de atração de pessoas e de talentos muito importante.
Penso que neste contexto é, particularmente, crítico o papel das associações de lusodescendentes. O que me tenho percebido, nos encontros com várias associações e grupos de emigrantes com quem tenho reunido, é que a falta de informação ainda é o principal problema. Por isso, é sobretudo preciso fazer chegar essa informação junto das comunidades. Se hoje é verdade que em Portugal conseguimos aumentar o número de estudantes, através do Ensino Superior de proximidade dando oferta em vários municípios, é muito claro que temos que mobilizar as instituições de Ensino Superior para irem falar com os emigrantes e com as suas famílias aos locais e às escolas onde eles estão. Por outro lado, não podemos esquecer que uma das melhores formas de chegar às pessoas e às famílias é através das associações de emigrantes que hoje têm um poder e uma ação local muito forte. Apesar de não parecer um trabalho muito complexo, requer muita insistência, ano após ano, para que se possa fazer chegar a informação às pessoas. O processo de recrutar o estudante é um processo muito descentralizado. Não é o Estado que faz isso, são as instituições de ensino, são as pessoas. Nós podemos e temos o interesse de facilitar, mas é algo que tem de ser feito pelas instituições, são elas quem deve manter o contacto e criar essa relação de confiança.
A burocracia enfrentada por estudantes estrangeiros é um dos principais desafios para a internacionalização do ensino universitário em Portugal. Esta realidade é hoje um considerável fator de desvantagem competitiva para as universidades portuguesas?
Penso que esse processo foi muito simplificado. Hoje, temos linhas de acesso muito rápidas. O acesso ao Ensino Superior está totalmente simplificado e, portanto, não temos recebido nenhuma queixa de que é um processo burocrático, antes pelo contrário. É verdade que há burocracia noutras questões, nomeadamente com os vistos, mas que se prendem com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Naturalmente, defendo que, a partir do momento em que uma pessoa é aceite numa instituição de Ensino Superior, deve ter um visto automático. Devemos caminhar nesse sentido. Nestes casos não estamos, obviamente, a falar de lusodescendentes, mas sim, sobretudo, de estudantes estrangeiros que vem, por exemplo, do continente africano. Neste âmbito, considero que era, particularmente, importante dar maior responsabilidade às instituições de Ensino Superior, para que, quando o estudante seja aceite, o visto seja dado automaticamente, pelo menos durante o período de tempo do ano letivo.
Recentemente, defendeu a necessidade de um reforço da qualificação, em Portugal e no mundo, bem como de um Ensino Superior mais ativo, em resposta aos dois processos de transição atualmente em curso, a digital e a ecológica. Quais os desafios que se colocam hoje ao Ensino Superior?
Temos tentado desenvolver uma política e uma estratégia baseada em quatro desafios. Alargar a qualificação é o primeiro grande desafio. Hoje, temos mais de 50 por cento dos jovens, com 20 anos, a residir em Portugal e a estudar e conseguimos ter cerca de 46 por cento dos adultos residentes em Portugal, entre 30 e 34 anos, já com nível de Ensino Superior. Temos que continuar a alargar esta base, para conseguirmos atingir a meta dos 60 por cento nos jovens e os 50 por cento nos adultos.
Para qualificar mais, sabemos que temos de diversificar e especializar. Para termos mais pessoas a estudar, temos que diversificar o ensino. Ao mesmo tempo que temos que diversificar, temos que especificar, sobretudo ao nível da pós-graduação. Hoje, em determinadas áreas é necessário ter características muito especializadas. O sistema de Ensino Superior reforçou-se, modernizou-se, tem mais estudantes, mas também tem que se diversificar e especializar.
O terceiro desafio crítico é inovar mais para empregar melhor. As instituições de Ensino Superior também são corresponsáveis pela criação de emprego. Este desafio consegue-se reforçando, cada vez mais, as relações entre as instituições de ensino, as empresas e empregadores, sobretudo, através das redes de inovação.
O quarto desafio é a internacionalização. As instituições devem estar, cada vez mais, envolvidas em redes internacionais. Isto é particularmente importante para os lusodescendentes, para aqueles que vivem fora de Portugal, mas também para as próprias instituições portuguesas. Temos, cada vez mais, de nos inserir no contexto europeu e, por isso, temos estimulado, nos últimos anos, as redes das universidades europeias, que são associações e alianças de instituições para os estudantes e professores, que permitem a sua circulação e, consequentemente, criar um ensino mais internacionalizado. Apesar de em algumas áreas o corpo docente já estar algo internacionalizado, temos ainda esse desafio de internacionalizá-lo mais, tendo mais docentes e investigadores internacionais a trabalhar em Portugal.
O Plano de Recuperação e Resiliência tem dois programas específicos na área do Ensino Superior, que devem ser interpretados na articulação com todas as outras áreas. Estes fatores irão condicionar a modernização do Ensino Superior em Portugal e no mundo, sobretudo no contexto europeu?
Sim. Hoje temos uma urgência em perceber as oportunidades de transição digital para também fazer face aos desafios da chamada transição ecológica. Isso não são desafios únicos de Portugal, são desafios do mundo e, por isso, o Programa de Recuperação e Resiliência, que foi um mecanismo único desenvolvido a nível europeu, tem como objetivo posicionar melhor a Europa e criar mais emprego, face a estas duas grandes tendências. Digitalizar mais, ser cada vez mais verde e caminhar no sentido efetivo da neutralidade carbónica, são alguns dos desafios e metas que temos para o futuro. Sabemos que a qualidade de vida das futuras gerações, depende de enfrentarmos de uma forma séria estes desafios e acredito, sem sombra de dúvidas, que a Europa tem hoje capacidade de mudar esse processo e dar respostas aos atuais desafios que se impõem neste âmbito.
Em setembro, enfatizou a necessidade de aumentar o número de clínicos formados, manifestando o desejo de chegar a 2023 com três novas escolas médicas. Estudantes e sindicatos criticaram esta intenção, reiterando a que não há falta de recursos humanos. Concorda com estas declarações?
Poderia dar inúmeros argumentos, mas vou destacar essencialmente dois, que me parecem óbvios. Por um lado, os portugueses querem estudar mais Medicina e mais áreas da saúde, e, a meu ver, não há razão nenhuma para não facilitarmos isso. Por outro lado, a pandemia tornou mais do que evidente que não há médicos, técnicos de saúde, nem há enfermeiros a mais. Depois, não nos podemos esquecer de outros fatores. Hoje, temos uma perspetiva de vida muito mais longa e temos cada vez menos jovens. Portanto, temos que educar mais para tomar conta dos cuidados de saúde de pessoas, que têm hoje uma esperança média de vida maior. Por outro lado, também temos que pensar no mundo. Hoje, o mundo tem 7 biliões de habitantes. Como é que vamos conseguir garantir condições de saúde a uma população que cresce em todo o mundo? Têm que ser certamente os países ricos, no qual Portugal se enquadra, a formar médicos para uma população que irá crescer, exponencialmente, sobretudo em África, onde a população em 30 anos vai duplicar. Perante todos estes fatores, não vejo razão nenhuma para que um país como Portugal não se melhor posicione no mundo, formando mais médicos. Não só considero que já não temos médicos suficientes, como, num período de 30 anos, vamos precisar de mais médicos, técnicos e enfermeiros. Para além disso, não nos podemos esquecer que devemos ter uma responsabilidade coletiva de garantir condições de vida, não apenas aos nossos cidadãos, mas também à população mundial. Vejo todas as razões e mais algumas para reforçarmos o ensino da Medicina em Portugal. Aliás, esta é uma tendência em muitos países e não há razão nenhuma para Portugal não a seguir.
Quando olhamos para as empresas que mais conseguiram crescer, nas chamadas deeptech, elas têm um valor superior a mil milhões de euros, sendo que temos seis dessas empresas em Portugal. No entanto, considera ainda haver muita dependência europeia relativamente a investimentos privados norte-americanos. É um desafio para a Europa garantir mais investimento?
Portugal tem hoje uma das maiores concentrações, na Europa, destas empresas que crescem muito, chamadas de “unicórnios”, e que têm uma valorização no mercado, acima de mil milhões de euros. Neste momento, temos seis destas empresas, sendo que só estamos atrás da Estónia, que tem sete. É curioso ver que todas estas empresas nascem através de projetos de investigação de âmbito internacional. Portanto, investir nas ciências e nas relações internacionais é importantíssimo. Também temos que ver que estas empresas têm hoje a maior parte dos seus trabalhadores em Portugal, mas são todas financiadas, maioritariamente, por fundos americanos. A indústria do financiamento destas empresas ainda está, de facto, muito pouco desenvolvida na Europa e urge mudar essa tendência. Por isso, trabalhámos nos últimos anos para desenvolver uma nova linha, para estimular o financiamento de novas empresas de base tecnológica. Não há dúvida nenhuma que a modernização do apoio financeiro na Europa é particularmente urgente, sobretudo em áreas que atraem muitos jovens e que requerem muito investimento.
Que mensagem gostaria de deixar aos nossos leitores, em especial a todos os lusodescendentes que nos seguem um pouco por todo o mundo?
Estudem mais. Aprender é um esforço, mas vale a pena. Se quiserem ter um lugar seguro para aprender, venham aprender para Portugal.