O Acolhimento Residencial

Pensamentos de um jovem a residir numa Casa de Acolhimento

© Stockphoto

Chamo-me Fábio Micael, tenho 17 anos e vivo em colégios desde os 11 anos, mais exatamente desde o dia 1 de Agosto de 2008, quando fui retirado ao meu pai, tinha 11 anos.
Já passei por outras duas instituições e desde o início do verão que me estou a adaptar a esta. Prometeram-me que será a última, mas é difícil acreditar nos adultos. Desde que saí da casa do meu pai, já conheci mais senhoras da limpeza, monitores, auxiliares, educadores e doutores do que sei lá o quê! E quando me começo a habituar e a confiar numa ou noutra pessoa, a história repete-se. Por falar em história, vou abreviar a minha, até porque não é nada de especial.
Nunca conheci a minha mãe e o meu pai sempre me disse que é melhor assim! Antes de ir para o primeiro colégio, estava com o meu pai que tratava de se embebedar logo pela manhã.
Também lá vivia a minha madrasta que me odiava, apenas porque eu era filho do meu pai e porque ele lhe dava porrada quase todos os dias e depois ela descarregava em mim com o que tinha à mão. Não me lembro de algum dia terem trabalhado. Aquilo era um nojo! Detestava voltar depois das aulas e ver o mesmo filme todos os dias.
Às vezes tinha que pedir comida aos vizinhos porque a minha madrasta dizia “que não lhe apetecia cozinhar para um bêbado e para um filho que nem sequer era dela e que mais cedo ou mais tarde ia ser igual ao pai”.
Comecei a faltar às aulas e andava com outros putos a fumar charros e a fazer porcaria. Como não tinha dinheiro para comprar roupa de marca, roubava no Colombo e no Vasco da Gama. Quando o meu pai sabia que não ia à escola, no outro dia o meu corpo enchia-se de nódoas negras. Acho que a minha madrasta estava certa!
Um dia, as assistentes foram lá a casa e avisaram o meu pai e a minha madrasta que tinham que mudar algumas coisas e que eu não podia continuar a faltar às aulas. Mas eles não quiseram saber e alguns meses mais tarde levaram-me para uma instituição onde viviam para aí uns 50 putos. Depois fui para outro colégio, pior que o primeiro. Odiei!
Na primeira instituição, ainda com 11 anos, estava cheio de problemas. Passados seis anos, já perdi a conta às fugas, às ganzas e aos roubos. Já me disseram que devo ir para um Centro Educativo, mas também já não quero saber.
Vou contar algumas coisas dessas instituições. Por exemplo, os adultos davam-me carolos e quando os enervava e os mandava à merda, eles também me mandavam a mim. E eu depois ria-me e eles ainda ficavam mais furiosos.
Outras vezes, porque não ia à escola ou porque não respeitava algumas regras obrigavam-me a ir para a cama logo a seguir ao jantar.

Passavam o tempo zangados, a gritar e a chamar o segurança quando os mais velhos se começavam a passar da cabeça. Havia um ou outro adulto, que até parece que provocava. A sorte deles é que eu era um puto de 12/13 anos. Se fosse mais velho, “fazia-lhes a folha”.

Às vezes, a meio da tarde tinha fome, mas diziam que não podia comer fruta, porque era uma regra e porque se todos os jovens pedissem fruta à tarde, depois acabava por faltar…como se houvesse muitos rapazes a pedir fruta para comer a meio da tarde!?…
Muitas vezes andava com os ténis rotos e eram os outros rapazes que me emprestavam roupa, porque diziam que naquele mês já não havia dinheiro.
Nestes colégios andávamos muitas vezes à porrada, nem que fosse para sair da pasmaceira, porque de resto, era TV e Play Station… e castigos, muitos castigos! A instituição estava toda partida, com os rapazes a darem murros e pontapés em tudo o que nos aparecia à frente. Mas os adultos também não se entendiam. Cada um fazia o que queria. Só falavam dos horários, dos outros colegas que trabalhavam menos tempo e coisas dos turnos que eu não percebia muito bem. Esqueciam-se regularmente de lembrar os jovens das consultas de psicologia e nós até não nos importávamos nada, porque eram uma seca. E se eles se esqueciam, era porque não deviam ser importantes!
Quando chegávamos ao colégio mais cedo da escola, era raro perguntarem porque estávamos em casa aquela hora, e nós agradecíamos, porque muitas vezes baldávamo-nos e queríamos era vir para casa jogar play e ficar em frente à televisão, a pensar em nada! Alguns até diziam que acreditavam em nós. O problema era quando alguém fazia porcaria. Passávamos de meninos bacanos a bandidos com o destino traçado. Nessas alturas era só dar moral e castigos que podiam demorar semanas sem telemóveis ou obrigarem-nos a escrever 500 vezes, numa folha, que não nos podíamos portar mal.
Os adultos andavam sempre stressados e com um ar zangado e passavam a maior parte do tempo na sala dos adultos, a falar dos problemas dos adultos. Quantas vezes cheguei aos gabinetes para dizer alguma coisa e ouvi:

  • Agora não Micael. Tens que saber esperar Micael. Agora não dá!
    E depois achavam-se no direito de dar moral e de exigir que nos portássemos bem e que confiássemos neles, porque era uma sorte estarmos na instituição e que se calhar merecíamos era voltar para a nossa família. Quanto menos conversas, melhor para eles e sinceramente para mim também!

Às vezes gozava com eles. Dizia-lhes que já tínhamos comido a papinha toda, já tínhamos feito cocó e que já podíamos ir dormir o nosso soninho… e eles também! Sim, porque havia alguns que dormiam nos turnos da noite.
Alguns pareciam não ser humanos, tal a distância das crianças e a certeza que tudo o que faziam por nós era fantástico e quase de outro mundo. Como se o fato de estarem ali fosse o suficiente. Se assim fosse, podiam substituí-los por Pit Bulls.
Tantas vezes pensei que se fosse mais novo, se calhar podia ter ido morar para casa de uma família que quisesse uma criança para tomar conta e que me desse condições diferentes de uma instituição, onde estão mais 30 ou 40 miúdos com problemas iguais ou piores que os meus. Por outro lado, não tinha que partilhar o quarto (sem privacidade e com paredes vazias) com mais três ou quatro rapazes e onde ninguém se preocupava.
Quanto ao meu pai, ainda me visitou algumas vezes, mas acho que as senhoras da assistência e os técnicos da instituição nunca perderam muito tempo com ele e achavam que nunca iria deixar de beber. Só o criticavam! Os técnicos têm a mania! Acho que isso deve ter ajudado a que o meu pai também acabasse por nunca mais querer saber de mim.
Mas passemos à razão de estar a escrever este texto. Para isso, vou contar como foi a noite de ontem. A minha noite de ontem foi mágica! Ontem à noite tive um sonho e no meu sonho, estava a viver noutra instituição. Aliás, no meu sonho aquele sítio onde eu vivia não era como uma instituição. Ou então, até podia ser, mas em bom! No meu sonho decidi chamar ao sítio onde eu vivia “Casa”.
Adiante, no meu sonho, eu sabia que aquela “Casa” era mesmo a última por onde passava. Se tudo corresse bem, a próxima “etapa” seria morar num apartamento de autonomia, até conseguir terminar o curso, ter um trabalho e dinheiro para alugar uma casa ou um quarto só para mim. E sabia isto tudo, porque logo nos primeiros dias, os adultos da “Casa” falaram comigo sobre alguns objetivos para o meu futuro.
Nesta “Casa”, viviam mais sete rapazes. As pessoas que lá trabalhavam, homens e mulheres, eram quase sempre simpáticas e estavam disponíveis para me ouvir. Todos os dias me faziam perguntas sobre as aulas, as consultas, amigos, treinos de futebol e como eu me sentia. Às vezes até se tornavam “chatos”!

Falávamos sobre como era a minha vida quando vivia com o meu pai. Ajudavam-me a pensar que apesar de não poder estar com ele, o fato de conhecer outras pessoas que cuidavam de mim, podia ser uma oportunidade para que mais tarde eu ganhasse a minha autonomia, ser independente e fazer com os meus filhos algumas coisas diferentes. Estes adultos dos meus sonhos, tinham uma conversa positiva e sentia que estavam ali para me apoiar. Alguns faziam-me rir à gargalhada. Quando fazia asneiras (e no meu sonho também fazia muita porcaria), depois chegava a casa e eles já sabiam quase sempre o que se tinha passado. Não sei como é que eles descobriam. Só sei que quando chegava a “Casa”, “levava nas orelhas”. No entanto, sentia que eram tolerantes, que me compreendiam e que estavam do meu lado. Percebia que eles estavam mais preocupados em que eu mudasse os meus comportamentos, do que propriamente nas asneiras que eu fazia.
Apesar dos “ralhetes”, havia sempre uma mensagem de esperança…e isso era tudo o que eu nunca tinha tido até. Achava que era uma merda de um puto e que tudo que sabia fazer era roubar, gozar com os professores e fumar ganzas. E nisso eu era bom!
Nesta “Casa” eu sabia que todos os adultos agiam mais ou mesmo da mesma maneira com os miúdos. Não havia pessoas que me deixavam ver televisão e ter os mesmos direitos dos outros jovens, caso me tivesse baldado à escola. Não dava para os enganar e nunca mostravam medo, quando alguém se esticava.
Uns trabalhavam de manhã, outros à tarde e outros à noite. Quem terminasse o trabalho ficava sempre algum tempo a conversar com quem ia começar. Todos sabiam das coisas de todos os jovens, fosse pelas conversas que tinham, fosse pelos registos escritos. E esta atenção, dava-nos segurança.
Depois havia reuniões todas as semanas. Por vezes, um dos jovens também participava e falava dos nossos problemas e reivindicações.
Noutras reuniões vinha uma espécie de supervisor e que ouvia os adultos da “Casa” a falar sobre os jovens e sobre os stresses entre os próprios adultos. Às vezes eu ficava um bocadinho atrás da porta a ouvir. Dava para perceber que todos davam a sua opinião.

Todas as noites havia uma reunião com todos os miúdos, onde se falava de tudo e de nada. Nessas reuniões, aprendi a estar em grupo, a ouvir os outros, a respeitar opiniões. Aprendi a esperar pela minha vez para falar e a fazer críticas sem ser só para deitar abaixo.
Nos muitos momentos com os adultos desta “Casa”, eles ensinaram-me a pensar nas coisas más da minha vida, que era tudo aquilo que eu achava que não queria! Ajudavam-me a consertar o que eu partia e explicavam-me sempre porque é que era importante conversar depois das minhas fúrias e pensar em fazer diferente da próxima vez.
Muitas mais eram as vezes em que, mesmo nesta “Casa” me apeteceu partir mais coisas ou mesmo bater nos adultos. No entanto, raras foram as vezes em que foi necessário agarrarem-me e/ou levarem-me ao chão para me conterem.
Não sei bem explicar, mas havia alguma coisa nestes adultos e na nossa relação que me acalmava e muitas vezes me fazia parar a tempo. Algumas foram as vezes em que me contiveram fisicamente e me acompanharam até ficar mais calmo. Depois da “tempestade”, ficavam no quarto comigo e no final da conversa diziam-me sempre que da próxima vez, eu iria conseguir fazer diferente. Aqui, eu podia ir à cozinha e comer fruta quando eu quisesse.
Tinha um quarto só para mim e nas paredes havia pósteres do William Carvalho, uma bandeira da Argélia em homenagem ao ponta de lança do Sporting, Islam Slimani e algumas fotografias com a namorada e amigos na “night” (sim porque deixavam os miúdos mais velhos sair à noite nalguns fins de semana, quando cumpríamos com as nossas responsabilidades básicas). Podia estar no meu quarto a descansar, sempre que quisesse, tal como os jovens devem fazer quando estão nas suas casas.
A comida era feita na “Casa” e em cada dia da semana, um dos jovens escolhia a refeição da noite. Com a ajuda dos educadores e de outros jovens, preparávamos o jantar.

Semanalmente ia a um psicólogo, com quem simpatizei desde a primeira consulta. Se não tivesse sido assim, se calhar não tinha lá voltado. Ao longo do tempo, percebi que ele não me criticava, mesmo quando lhe contava as porcarias que fazia.
Os técnicos, adultos mais próximos da minha família, pediram a minha opinião sobre a possibilidade de voltar a ver o meu pai e tiveram-na em conta. Têm tido reuniões regulares com ele. No meu sonho, ele tinha deixado de beber e eu estava com ele com regularidade.
A “Casa” era o meu porto de abrigo. Era lá que estavam os adultos que considerava como referência para mim. Apesar de não serem meus pais, passados 6 anos, era neles que eu confiava verdadeiramente. Eram eles que me confrontavam e confortavam com as suas ideias e me diziam o que, a seu ver, poderia ser certo ou errado para mim. Eram eles que me davam concelhos e que me transmitiam valores. E mesmo que eu não concordasse, precisava que me estivessem sempre a orientar, como uma espécie de comboio, meio descontrolado, que mais do que ser travado, precisava que o guiassem para as estações mais adequadas.
Quando era pequeno, sonhava várias vezes que voava. Já lá vai o tempo que deixei de ter esse sonho! Aliás, já lá vai o tempo, que os únicos sonhos que tenho estão associados aos pesadelos da minha vida.
Até ontem à noite! Ontem à noite tive um sonho. Será que um dia este sonho passará a ser real? E se assim for, quanto tempo levará a acontecer?
Dizem os sábios que o caminho faz-se caminhando…

Micael

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